Em 2019, 467 novos agrotóxicos foram registrados no país pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Até ali um recorde, ultrapassado no ano seguinte, quando 493 novos produtos foram liberados para serem comercializados por aqui. Em 2021, até o momento, foram 205 novos agrotóxicos registrados, um total de 1.165 desde 1º de janeiro de 2019.
Mas o ritmo das liberações ainda não é satisfatório para o governo, que está prestes a publicar um decreto com mudanças nas regras para o registro de agrotóxicos no país.
O anúncio foi feito recentemente pela ministra da Agricultura Tereza Cristina ao jornal Valor Econômico, e acendeu um alerta nas organizações que há anos vêm lutando pela redução do uso de agrotóxicos no país.
Duas frentes
Em nota enviada à reportagem do Portal EPSJV, a Campanha Permanente contra os Agrotóxicos e pela Vida afirmou que o anúncio “não causa estranhamento”. “De 2017 para cá o número anual de registros vem mais que dobrando. A princípio o que o governo diz é que apenas reorganizou o trabalho para dar celeridade, atendendo uma demanda dos grandes produtores. Mas não houve aumento de equipes ou investimentos em estrutura nos órgãos reguladores que justifiquem tamanho aumento. O que houve foi comprometimento político do governo com aqueles que fabricam venenos e aqueles que fazem seu uso para garantir a produção de commodities”, diz a nota.
Segundo Fernando Carneiro, pesquisador da Fiocruz Ceará e membro do GT Saúde e Ambiente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), a ideia do governo é trabalhar em duas frentes: com o decreto, fazer mudanças mais imediatas nas normas infralegais sobre os agrotóxicos.
E, simultaneamente, trabalhar no Congresso Nacional pela aprovação do PL 6.299/2002, que vem sendo chamado de ‘Pacote do Veneno’ – que flexibiliza as regras para o registro dos agrotóxicos no Brasil.
“É plano A e plano B. Ela [a ministra Tereza Cristina] quer garantir o que é possível desde já por decreto, e já tem o compromisso do Arthur Lira [presidente da Câmara] para votar o Pacote do Veneno no primeiro semestre”, destaca Carneiro.
Leitura semelhante faz a Campanha Permanente contra os Agrotóxicos e pela Vida, que em nota alertou para a retomada da tramitação do PL 6.299 na Câmara a partir do anúncio do decreto do governo.
“O Pacote do Veneno está pronto para ser votado pelo plenário desde 2018, mas os parlamentares sabem que não é um tema de fácil aceitação da população. O povo quer é alimento saudável. Como a bancada ruralista ocupa lugar estratégico no governo, não movimentou mais essa pauta no cenário legislativo, mas partiu para as tais medidas infralegais. Só que elas podem ser alteradas e revogadas em um próximo governo. Por isso o agronegócio vem aumentando a pressão para que o Congresso delibere sobre o PL 6.299 ainda esse ano”, avalia a Campanha.
Fernando Carneiro alerta: “Está se preparando o ‘estouro da boiada’ do agrotóxico no Brasil. O plano já foi desenhado e está em marcha. Toda a sociedade tem que se manifestar contra essa mobilização, que pode ser o maior retrocesso na regulação dos agrotóxicos na história do Brasil. É uma questão muito cara, porque tem a ver com o que vai para a mesa de todo brasileiro”.
Nova classificação reduziu em 93% número de agrotóxicos considerados extrema e altamente tóxicos
Segundo a reportagem do Valor, o texto do decreto – construído em conjunto pelos ministérios da Agricultura e Meio Ambiente, além da Anvisa – já teria sido encaminhado ao Planalto para publicação, e deve incidir sobre áreas que já passaram por mudanças no próprio governo Bolsonaro, como a avaliação do risco dos agrotóxicos e sua rotulagem.
Em julho de 2019, a Anvisa publicou resoluções alterando a forma como classifica os agrotóxicos de acordo com o risco à saúde que eles representam, bem como a maneira como esses produtos são rotulados.
Com isso, diz o pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz) Luiz Cláudio Meirelles, o número de agrotóxicos classificados como “extremamente” e “altamente” tóxicos – os quais a Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda que sejam banidos – caiu, em uma só tacada, de 702 para 43, uma redução de 93%.
“Pegaram o capeta e botaram nele o manto de santo, porque os produtos continuam com uma toxicidade importante”, destaca. Isso porque, a partir das resoluções, apenas o risco de morte passou a ser utilizado como critério para classificação de um produto como extremamente tóxico, e não mais seu potencial de provocar irritação nos olhos ou na pele, por exemplo, como era feito anteriormente.
Além disso, a advertência “cuidado veneno”, antes presente em todos os rótulos de agrotóxicos, dos menos tóxicos aos mais, deixou de ser utilizada. A caveira, símbolo tradicional usado para alertar sobre a toxicidade dos produtos, passou a ilustrar apenas os rótulos daqueles classificados como altamente e extremamente tóxicos – cujo número, como dito anteriormente, foi reduzido significativamente.
Os demais recebem apenas a advertência “cuidado”, com a respectiva tarja colorida, que vai do azul (pouco tóxico) ao vermelho (extremamente tóxico).
“Os rótulos eram organizados de uma maneira a chamar a atenção do trabalhador para o perigo daquela substância. Já existia uma dificuldade mesmo quando você tinha esses códigos muito claros do perigo, imagina sem eles. O trabalhador vai olhar uma embalagem de agrotóxico e não vai diferenciar de uma embalagem de um produto qualquer de limpeza, por exemplo”, alerta Meirelles, completando em seguida: “A gente está fragilizando mais as nossas possibilidades de controle e causando muito mais dano ao trabalhador, e também ao meio ambiente”.
Segundo o pesquisador da Ensp/Fiocruz, os principais argumentos utilizados pelo governo e por representantes do agronegócio para justificar a liberação acelerada de agrotóxicos nos últimos anos não fazem sentido.
“Eles argumentam que a liberação é para diminuir a fila, mas eu nunca vi faltar agrotóxico no país, infelizmente. Gostaria de ter visto um problema de fornecimento, até para a gente buscar alternativas e não ficar em cima desse modelo químico, mas não aconteceu”, observa Meirelles.
Ele também critica o argumento de que a maioria das liberações é de produtos genéricos de compostos já registrados no país.
“Com isso você tem a entrada de muito mais empresas no mercado, que vão fazer pressão por mais uso, vão querer abrir mercado. Isso é um problema para a estrutura de fiscalização que a gente tem”, diz.