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Infância, adolescência e trabalho

Propostas de aumento da idade para início do trabalho contrastam com exploração do trabalho infantil no Brasil
Leila Leal - EPSJV/Fiocruz | 09/11/2010 09h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h44
Foto: Arquivo ABr

Determinada pela Constituição Federal e regulamentada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), a proteção integral às crianças e adolescentes estabelece uma idade mínima para o início do trabalho, a garantia de direitos previdenciários, trabalhistas e do acesso do trabalhador adolescente à escola. A fixação da idade mínima para o trabalho nunca foi, no entanto, uma tarefa fácil. Ainda hoje, quando comemoram-se 20 anos da aprovação do ECA, há debates sobre qual o melhor momento para os adolescentes começaram a trabalhar. As discussões levam em conta as atuais configurações do mercado de trabalho, as particularidades da condição de pessoa em desenvolvimento e a priorização da educação para a formação dos indivíduos. Ao mesmo tempo, persistem no Brasil práticas de exploração do trabalho de crianças e adolescentes, que desrespeitam a lei. Nesta matéria, a Revista Poli apresenta as discussões sobre a relação entre trabalho, infância e adolescência sob suas diferentes vertentes.

Constituição e ECA: educação, saúde e tempo livre

A Constituição Federal define: é proibido o trabalho noturno, perigoso ou insalubre a menores de 18 anos e de qualquer trabalho a menores de 16 anos – salvo na condição de aprendiz, a partir dos 14 anos. A decisão de estabelecer os 16 anos como a idade mínima para o trabalho e os 14 para o início de atividades de aprendiz não foi um processo simples. Para se ter uma ideia, só se chegou a um acordo sobre isso dez anos depois da aprovação do texto da Constituição, em 1998. Foi nesse ano que uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) alterou o texto originalmente aprovado, em 1988, para aumentar a idade mínima para o trabalho no Brasil. De acordo com o texto original, a idade mínima era de 14 anos, salvo na condição de aprendiz – que poderia ser antes disso, sem um limite mínimo de idade.

Portanto, quando o ECA foi aprovado, em 1990, ainda valia o texto original da  Constituição. O Estatuto, assim, definia originalmente a idade de 14 anos como a mínima para o trabalho, o que só foi modificado depois da alteração do texto da Carta Magna. Mas, regulamentando a proteção integral às crianças e adolescentes, o ECA determina uma série de aspectos que regulam a atividade desse segmento da população pela perspectiva da garantia do direito à profissionalização  e à proteção no trabalho.

O Estatuto, por exemplo, define como atividades de aprendiz a formação técnico-profissional ministrada de acordo com as diretrizes e bases da legislação educacional em vigor. Ainda segundo o ECA, essa formação deve obedecer a alguns princípios, como a garantia de acesso e frequência obrigatória ao ensino regular, a realização de atividades que sejam compatíveis com o desenvolvimento do adolescente e o estabelecimento de um horário especial para o exercício das atividades. O Estatuto determina, também, que aos aprendizes é assegurada a bolsa de aprendizagem e, aos adolescentes com idade mínima para ingresso no mercado de trabalho, são assegurados todos os direitos previdenciários. O ECA estabelece, ainda, que adolescentes portadores de deficiência têm direito ao trabalho protegido e reafirma a proibição, prevista na Constituição, dos adolescentes empregados ou aprendizes ao trabalho noturno, realizado entre as 22h de um dia e as 5h do dia seguinte; perigoso, insalubre ou penoso; realizado em locais que possam prejudicar a sua formação e seu desenvolvimento físico, psíquico, moral e social; e realizado em horários e locais que inviabilizem sua ida à escola.

As definições do ECA vão além: estabelecem que os programas sociais que tenham por base o trabalho educativo deverão assegurar ao adolescente que deles participem as condições de capacitação para exercitarem atividade regular remunerada. O trabalho educativo é entendido pelo ECA como aquele em que as exigências pedagógicas relativas ao desenvolvimento pessoal e social do educando prevaleçam sobre o aspecto produtivo. O Estatuto destaca que a remuneração que o adolescente recebe pelo trabalho efetuado não desfigura seu caráter educativo.

Segundo Luiz Carlos Bazílio, professor da Faculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e atual superintende da Fundação São Martinho, que atua com crianças e adolescentes, a definição dos 16 anos como idade mínima para o trabalho já era um objetivo desde a aprovação do ECA, em 1990 – o que não foi possível diante da correlação de forças do Congresso Nacional naquele momento: “O ECA foi aprovado através do acordo de lideranças partidárias. A proposta de 16 anos como idade mínima para o trabalho foi vetada, e aprovou-se a idade mínima de 14 anos. Foi um retrocesso em relação ao que queriam os movimentos sociais envolvidos com a aprovação do ECA”, conta.

Para o professor, a elevação da idade mínima para o trabalho no Brasil esbarra em questões históricas e culturais: “Há, no nosso país, uma cultura de início precoce do trabalho. Dou muitas palestras sobre o trabalho infantil e há muita gente que lembra o início do trabalho em idades por volta dos 12 anos como experiências muito positivas em suas vidas. A ponderação que coloco é que isso pode ter sido bom em outras épocas, mas que hoje, com a atual configuração do mercado de trabalho, é melhor que as crianças estudem e permaneçam mais tempo na escola”, diz. E completa: “A problematização do trabalho infantil não se deve apenas ao ato de a criança trabalhar. Deve-se, também, ao fato de que a criança inserida no mercado de trabalho sonha menos, tem horizontes menores para o futuro e, assim, busca menos escolaridade, tendo uma vida mais pobre”.

Carmen Raymundo, assistente social e Coordenadora do Programa de Saúde do Trabalhador Adolescente, vinculado ao Núcleo de Estudos da Saúde do Adolescente da Uerj, lembra que a definição de uma idade mínima para o trabalho leva em consideração aspectos biológicos e psicossociais. Através de uma pesquisa multidisciplinar – composta pelas áreas de medicina do trabalho, serviço social e psicologia –, sua equipe estuda, do ponto de vista da saúde, os motivos que levaram à proibição do trabalho infantil e à necessidade de proteção do adolescente trabalhador. “A partir de pesquisas, estudos e muitos atendimentos a crianças e adolescentes trabalhadores, começamos a entender que, do ponto de vista biológico, uma criança no processo de crescimento e desenvolvimento é mais suscetível a ambientes de trabalho insalubres do que adultos. Isso também se confirma do ponto de vista da constituição da subjetividade e do ponto de vista social. A inserção no mercado de trabalho tira da criança e do adolescente a convivência com a família, o tempo livre, o tempo para brincar e para sonhar”, avalia. Ela lembra que, por esses motivos, o trabalho desenvolvido por adolescentes com mais de 16 anos ou pelos aprendizes, a partir dos 14, precisa ser protegido e ter caráter educativo.

 

“Apesar dos grandes avanços tecnológicos da sociedade contemporânea e dos direitos sociais assegurados pelo arcabouço jurídico-legal, a erradicação do trabalho infantil ainda se inscreve como um dos grandes desafios da contemporaneidade” (Carmen Raymundo)


Ipea: idade mínima deve ser elevada

As novas configurações do mercado de trabalho e a centralidade da educação sustentam propostas de aumentar ainda mais a idade mínima para que os adolescentes possam ingressar no mercado de trabalho no Brasil. Marcio Pochmann, presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), é um dos que defendem essa posição. Segundo ele, é preciso reconhecer, em primeiro lugar, a dimensão histórica desse pro cesso. A postergação do ingresso no mercado de trabalho tem sido uma ação constante nos últimos 150 anos. “Um século e meio atrás não existia um sistema educacional como conhecemos hoje e, portanto, as crianças começavam a trabalhar na agricultura aos cinco ou seis anos de idade. A passagem para a sociedade urbano-industrial, no final do século 19 e ao longo do século 20, limita o ingresso no mercado  de trabalho para depois dos 14 ou 15 anos, quando concluído o ensino fundamental”, conta.

Para Pochmann, a etapa vivida atualmente marca a transição para uma sociedade em que o conhecimento torna-se elemento central na organização da sociedade e de seu sistema econômico-produtivo. “Nesse sentido, entendemos que essa postergação é elemento chave para permitir que essas crianças, adolescentes e mesmo jovens possam ingressar no mercado de trabalho mais preparados para as atividades laborais, tendo em vista a centralidade da educação”, defende.

O economista lembra, ainda, que existe no Brasil uma grande desigualdade para o ingresso no mercado de trabalho: os filhos dos ricos iniciam o trabalho, geralmente, depois de terem concluído o ensino superior. Já os filhos dos pobres tendem a ingressar muito mais cedo no mercado de trabalho. Segundo ele, isso faz com que os filhos dos pobres ocupem os postos de trabalho mais simples, com menor remuneração, ao contrário dos filhos dos ricos. “O mercado de trabalho acaba, em parte, reproduzindo a desigualdade social”, avalia.

Pochmann destaca, ainda, que a centralidade do conhecimento no atual momento de desenvolvimento da sociedade não significa que o trabalho tenha perdido a centralidade na vida do ser humano. Segundo ele, é justamente essa mudança que pode permitir que o trabalho seja percebido em todo o seu potencial, e não como sinônimo de trabalho assalariado. “O trabalho segue sendo o centro de conexão do ser humano com a vida. No entanto, há uma transformação na natureza do trabalho. Estamos entrando numa sociedade do excesso, e é plenamente possível reduzir o tempo do trabalho heterônomo – ou seja, o trabalho pela sobrevivência – e aumentar o tempo do trabalho autônomo – o trabalho pela sociabilidade, socialmente útil, criativo”, avalia. E propõe: “A educação ganha um papel ainda maior. Ela deve ser não só um elemento de preparação para o mercado de trabalho, mas sim de preparação para a vida. Deve ser uma educação mais totalizante que permita uma conexão melhor do ser humano em uma sociedade crescentemente individualista, em que prevalecem a solidão e uma crise de sociabilidade”.


Exploração ainda é realidade

A longa história de utilização da força de trabalho infanto-juvenil no Brasil associa-se, na grande maioria dos períodos históricos, às camadas mais pobres da população. Segundo Carmen Raymundo, as crianças e adolescentes das classes subalternizadas sempre trabalharam no país, desde a colônia, passando pelo Império, a constituição da República até os dias atuais. A pesquisadora destaca que a Constituição Federal e o ECA, frutos de um mesmo movimento histórico de redemocratização do país, são marcos importantes para o enfrentamento realizado por políticas sociais, setores governamentais e pela sociedade ao trabalho infantil. Mas Carmen pondera: “Apesar dos grandes avanços tecnológicos da sociedade contemporânea e dos direitos sociais assegurados pelo arcabouço jurídico-legal, a erradicação do trabalho infantil ainda se inscreve como um dos grandes desafios da contemporaneidade”.

Segundo a pesquisadora, os dados demonstram que o trabalho infantil está em queda no Brasil. O número de crianças e adolescentes na faixa etária entre 5 e 13 anos com ocupação caiu acentuadamente: 17,25%. Passou de 1,2 milhão em 2007 para 993 mil em 2008. Ainda assim, cerca de 4,5 milhões de pessoas com idade entre 5 e 17 anos trabalham no Brasil, aponta o IBGE. “Mas, mesmo que os números estejam sendo reduzidos, ainda são alarmantes”, destaca Carmen. “De acordo com a Pesquisa Nacional de Amostra de Domicílios de 2008, as crianças e adolescentes que trabalham recebem pouco ou até mesmo nada. Segundo o IBGE, 32,3% das pessoas ocupadas entre 5 e 17 anos não são remuneradas”, destaca.

Carmen ainda lembra que, mesmo expressivos, os dados disponíveis para a análise da situação do trabalho infanto-juvenil no Brasil ainda são parciais. “Muitas das atividades de trabalho executadas por crianças e adolescentes não são sequer percebidas como trabalho. São denominados como ‘ajuda’, e, portanto não entram nas estatísticas. Além disto, as proibições legais e também o caráter intermitente dessas atividades de trabalho são fatores que dificultam a realização de pesquisas nessa área. Há, ainda, o setor informal da economia, com uma parcela não desprezível de trabalho infanto-juvenil, que permanece desconhecido pelos pesquisadores”, diz.

Outro aspecto levantado por Carmen Raymundo é que apenas muito recentemente a exploração do trabalho infanto-juvenil foi reconhecida como um problema de saúde pública. Segundo ela, a sua prevenção e erradicação exigem a formulação de políticas específicas e a organização de práticas e de serviços peculiares ao setor saúde. Entre as  ações elaboradas pelo Ministério da Saúde, através de sua Área Técnica de Saúde do Trabalhador, ela destaca a implementação da 1ª Política Nacional de Saúde para a Erradicação do Trabalho Infantil e Proteção do Trabalhador Adolescente como um importante passo nessa luta.