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MEC lança programa Educação em Prática

A ideia é que instituições de ensino superior públicas e privadas abram as portas para que alunos do ensino básico ampliem sua jornada escolar. Em contrapartida, elas receberão do governo federal um bônus no sistema de avaliação. Para pesquisadores, a medida é um grave erro
Julia Neves - EPSJV/Fiocruz | 14/11/2019 14h14 - Atualizado em 01/07/2022 09h43

MECO Ministério da Educação (MEC) lançou, no dia 6 de novembro, o programa ‘Educação em Prática’. Trata-se, segundo a Pasta, de uma integração entre os estudantes do 6º ao 9º ano do ensino fundamental e do ensino médio com o universo de instituições de ensino superior públicas e privadas. A proposta é que universidades e institutos federais disponibilizem conteúdos, professores e espaços físicos, como laboratórios e quadras de esporte, para oferecerem “atividades educacionais” em tempo integral aos jovens. Segundo o ministro da Educação, Abraham Weintraub, a ideia do programa é diminuir a evasão escolar e as chances de que, no futuro, esses alunos escolham uma carreira com a qual não se identifiquem. “É trazer o jovem para dentro da faculdade, dando a ele uma oportunidade de desenvolver aptidões e habilidades em um ambiente universitário”, afirmou durante o lançamento. A adesão ao programa será iniciada ainda em 2019 e as ações começam a ser realizadas em 2020.

Dessa forma, o MEC afirma que o programa tem a finalidade de “contribuir para a ampliação, com qualidade, da jornada escolar”, efetivando a implementação de outros programas lançados pela Pasta anteriormente – o Novo Ensino Médio e o Ensino Médio em Tempo Integral. Segundo dados do Ministério, cerca de seis milhões dos quase oito milhões de estudantes do ensino médio no país ainda não são beneficiados pela extensão da jornada.  O novo modelo também dará suporte à Base Nacional Comum Curricular (BNCC), que define os chamados itinerários formativos, nos quais os estudantes podem escolher a área de conhecimento ou formação técnica. Além disso, os alunos de cursos de Pedagogia e Licenciatura poderão realizar a prática de estágio supervisionado nas escolas das redes públicas de ensino beneficiadas.

Para Marise Ramos,professora-pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), existem quatro questões preocupantes em relação ao programa – que ela caracteriza como “deseducativo", e "um erro gravíssimo”. A primeira, diz ela, parte de um problema de origem, que é a contrarreforma do ensino médio, que traz a carga horária da educação básica como um todo sendo dividida em itinerários formativos. “Aí tem outra uma segunda questão que é buscar esses itinerários formativos em outras instituições fora da educação básica, então se descaracteriza o que seria o sistema da própria educação básica”, aponta.

A terceira questão levantada pela professora-pesquisadora é que esses itinerários antecipam o caminho de formação dos estudantes. E, além de fazer isso, eles já fazem uma vinculação direta entre a educação básica e algo que está fora dela. Marise explica: “Estudos analisam que um dos problemas históricos do ensino médio é o fato de ele não ser reconhecido como uma etapa de formação em si, que tem suas finalidades, sua lógica, sujeitos que tem as suas especificidades. O ensino médio sempre existiu como uma ponte da educação básica para o ensino superior ou para o mercado e trabalho”.
Por fim, uma quarta questão apontada pela especialista é o fato de o Ministério colocar no mesmo patamar de reconhecimento as instituições públicas e privadas. “E nesse caso, pelo jeito, é priorizar as privadas. Vimos isso porque eram a maioria na apresentação”, alerta.

A avaliação é a mesma de João Ferreira, professor da Universidade Federal de Goiás (UFG). Ele aponta que na lista de entidades que pretendem assinar protocolos de intenção, como consta no site do MEC, vê-se basicamente a presença do setor privado. “Registra-se a ausência de entidades e instituições de ensino superior públicas, sobretudo universidades federais e Institutos Federais de Educação Tecnológica, com forte presença em todo país e com melhor qualidade como mostra o Sinaes”, lamenta.

Segundo Ferreira, dentre os pontos mais críticos do programa estão algumas ausências e presenças mais ostensivas. Nas ausências, ele observa que não há nenhuma menção ao Plano Nacional de Educação (2014-2024), ao Sistema Nacional de Educação e à implementação do Custo Aluno-Qualidade, inclusive para melhorar as condições de ensino-aprendizagem nas escolas, sobretudo nas de ensino médio de tempo integral. “Precisamos ampliar a oferta de educação de tempo integral e para isso é preciso cuidar da infraestrutura, dos equipamentos e demais condições de ensino nessas escolas, que são bastante precárias em todo o país”, aponta.
Ferreira destaca que, a despeito do novo programa, existem três grandes desafios na educação brasileira. O primeiro é efetivar a universalização da educação obrigatória de quatro a 17 anos – o que, segundo ele, já deveria ter ocorrido em 2016, conforme a Constituição Federal. “Outros desafios são a ampliação da educação de tempo integral via projeto qualificado, como estabelece o PNE, a melhoria da qualidade da educação, o que implica garantir condições de oferta via implementação do Custo Aluno-Qualidade, como consta também no PNE”, elenca. Para isso, ele ressalta a necessidade de um Sistema Nacional de Educação que contribua para a efetivação das metas do PNE. “Não basta mais empréstimos junto ao Banco Mundial (BM) se não tivermos finalidades claras, cooperação e articulação”, afirma, referindo-se ao anúncio do MEC sobre um acordo de empréstimo de US$ 250 milhões – aproximadamente R$ 1 bilhão – com o BM, assinado em 2018 e que estava parado. Os recursos serviriam para contratar assistências técnicas e avançar com a reforma do ensino médio.

Educação privatista

“Na medida em que se considera que as universidades irão disponibilizar conteúdos, professores, espaços físicos, isso quer dizer então que a educação básica não terá nada disso?”, questiona Marise. Segundo a professora-pesquisadora, o programa parte do  pressuposto de que a universidade seja ociosa e de que tem condições ideais para partilhar. “É falacioso. É um desafio permanente manter a qualidade das instalações das universidades e do corpo docente. Nós já sabemos que o docente do ensino superior das universidades públicas vive um processo de intensificação do seu trabalho porque conjuga a docência na graduação e na pós-graduação com a pesquisa e com a produtividade e, agora, ainda vai incorporar novas responsabilidades com a educação básica”, indica.

Para a professora-pesquisadora, há uma clara lógica de mercantilização da educação por trás de um novo programa do MEC. E ela esclarece: “Se as universidades privadas têm boas e ociosas instalações, vamos perguntar ao empresariado se simplesmente, por filantropia ou boa vontade, irá dispor das suas instalações para a escola básica, a troco de nada? Essa não é a lógica da educação como educação privada e da mercantilização da educação”.

Bônus como um atalho?

Segundo dados do MEC, o Brasil possui 2.152 instituições de ensino superior privadas e 296 universidades públicas. Além disso, 38 Institutos Federais e dois Centros Federais de Educação Tecnológica no país que poderão aderir ao programa, que não contará com recursos financeiros próprios.

Diante desse cenário, as instituições que abrirem as portas para os estudantes, sejam elas públicas ou privadas, poderão obter um bônus na avaliação institucional realizada pelo MEC, por meio do Sistema Nacional de Avaliação do Ensino Superior (Sinaes). Para isso, o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) definirá, em 2020, a melhor metodologia que avaliará o desempenho das instituições. Entretanto, durante a apresentação, o secretário de educação básica do MEC, Janio Macedo, adiantou que somente instituições com boas notas de avaliação poderão ter esse bônus, mas ainda não há detalhes de quais indicadores serão levados em conta.

Para Ferreira, a avaliação das instituições de ensino superior tem sido bastante exitosa no Brasil desde a criação do Sinaes em 2004, na contribuição para aperfeiçoar o padrão de qualidade nesse nível de educação. “Me parece algo ilegal esse bônus, que leva quase sempre a questionamentos jurídicos. É claro que pode atrair as instituições que já tem baixa avaliação. Como vão contribuir com a melhoria da qualidade da formação nos anos finais do ensino fundamental e no ensino médio? Quem será beneficiado?”, questiona.

Marise concorda e afirma que o programa desloca e tira do lugar o que deve ser a avaliação de qualidade. Para ela, a questão deveria ser inversa. Ou seja, somente instituições bem avaliadas poderiam ter a legitimidade para participar de qualquer programa que vise atender e aprimorar a educação básica. “Essa oferta é uma estratégia de sedução e cooptação de instituições e, prioritariamente, as privadas. Possivelmente também àquelas que podem mais se interessar por isso são as de baixa qualidade, visando apenas a obtenção do bônus. Na verdade, está se premiando instituições que têm sua qualidade comprometida”, destaca.

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