Serviços 
O conteúdo desse portal pode ser acessível em Libras usando o VLibras

Nasce a Constituição Cidadã em 1988

Democracia permite a participação social na elaboração do texto
Juliana Chagas, Raquel Torres - EPSJV/Fiocruz | 01/09/2008 00h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h44

“Essa será a ‘Constituição Cidadã’, porque recuperará como cidadãos milhões de brasileiros, vítimas da pior das discriminações: a miséria”. Era assim que, em julho de 1988, o presidente da Assembleia Nacional Constituinte, Ulysses Guimarães, descrevia a nova Carta brasileira, que seria promulgada em outubro. O governo era de José Sarney, que assumiu a presidência três anos antes, após a morte de Tancredo Neves, e marcou o fim de 21 anos de ditadura militar no Brasil.

Segundo o jurista Dalmo Dallari, membro do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, foi nesse momento que a ideia de escrever uma nova Constituição pôde se concretizar. “Mas a vontade de fazer isso surgiu ainda durante o período de combate à ditadura”, explica. “Alguns intelectuais, especialmente advogados, levantaram a necessidade de que o país tivesse uma Constituição democrática, legítima e que garantisse os direitos das pessoas”, diz. Quando a ditadura chegou ao fim, essa necessidade se tornou uma obrigação. A transição para o regime democrático exigia que as nossas leis fossem revistas: nessa época, ainda estava em vigor a Constituição de 1967, que institucionalizava a ditadura e já não fazia sentido numa democracia.

Assim, logo no início de seu mandato, Sarney facilitou a criação de novos partidos, permitiu a legalização daqueles que estavam clandestinos e enviou ao Congresso uma proposta de emenda constitucional convocando uma Assembleia Constituinte. Para Dalmo Dallari, esse processo constituinte foi bem diferente dos anteriores, e teve a participação popular como marca. “Em termos de participação do povo, a Constituinte de 1988 foi muito mais avançada que todas as anteriores. Quando tivemos a Constituinte de 1891, o eleitorado representava 1% da população brasileira. Em 1946, na Constituinte seguinte, o eleitorado era de 15%. Já quando tivemos a de 1988, o eleitorado representava mais de 60% do povo brasileiro. Não era apenas um percentual mais alto: tratava-se também de um eleitorado maduro, com uma consciência política que se desenvolvera intensamente nos anos de ditadura. Vários grupos – e um grande exemplo disso é o movimento sanitário – haviam se espalhado pelo Brasil discutindo e elaborando propostas. Isso significa que a Constituição de 88 não nasceu de cima para baixo. Ela nasceu do povo”, afirma.
Convocação.

"Na verdade, a Constituição de 88 não é apenas um conjunto de regras neutras que devem ser seguidas, não é só um pacto de procedimentos. Ela é um conjunto de valores, objetivos e obrigações do Estado"

Renato Lessa

Os movimentos populares eram a favor de uma Constituinte exclusiva, que se reuniria apenas para escrever o novo texto, sendo dissolvida em seguida. Mas a proposta aprovada, defendida pelo governo Sarney, foi a de convocação de uma Assembleia Congressual, ou seja, os parlamentares eleitos nas eleições de 1986 foram considerados membros da Constituinte. A Assembleia foi convocada por meio da Emenda Constitucional 26 – o mesmo documento que concedia anistia a autores de crimes políticos, representantes de organizações sindicais e servidores públicos punidos.

Para orientar os debates da Constituinte, Sarney havia instituído um ano antes a Comissão Provisória de Estudos Constitucionais. A Comissão, presidida por José Afonso Arino, aceitou sugestões populares e concluiu um anteprojeto em 1986. O texto final normatizava a iniciativa popular para legislação complementar, embora não previsse essa iniciativa para o novo texto da Constituição.

Estrutura

A Assembleia Nacional Constituinte foi finalmente instalada em 1º de fevereiro de 1987, composta por mais de 500 parlamentares. Resultado da pressão dos movimentos, seu Regimento Interno, aprovado em março daquele ano, regulamentava a admissão e tramitação de emendas populares.

Segundo Renato Lessa, professor de Teoria Política do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj), a descentralização do processo constituinte fez com que o texto final se tornasse bastante democrático: “Havia muitas comissões, e isso possibilitou que cada tema fosse exaustivamente discutido e elaborado, independentemente de haver propostas de direita ou esquerda”. O professor também explica que a Constituição não é um livro fechado. “O texto foi produto do trabalho de centenas de parlamentares, além de sugestões populares. Muitos interesses diferentes foram postos em discussão e incorporados à Carta Constitucional. É natural que não seja um livro acabado: o texto está sob constante interpretação e sofre mudanças o tempo todo”, afirma. Para Lessa, esse não é um defeito. “Na verdade, a Constituição de 88 não é apenas um conjunto de regras neutras que devem ser seguidas, não é só um pacto de procedimentos. Ela é um conjunto de valores, objetivos e obrigações do Estado. O seu papel é programático, ou seja, ela indica o tipo de país que queremos e serve de guia para a orientação política que ele deve assumir”, afirma.

Para Dalmo Dallari, os grandes avanços da Constituição de 88 estão no âmbito dos direitos sociais. “Ela fala de direitos coletivos, como o direito à segurança e ao Meio Ambiente. Antes só se falava em direitos individuais. A partir de 1988, foram criados muitos instrumentos de ação social, inclusive responsabilizando organizações públicas, como o Ministério Público, pela garantia e efetivação dos direitos sociais”, diz. A Constituição ainda restabeleceu o voto secreto e aberto a todos os cidadãos com idade acima de 16 anos, qualificou o racismo, a tortura e as ações armadas contra o Estado democrático como crimes inafiançáveis, estabeleceu eleições diretas para presidente da República, governadores e prefeitos, fixou a jornada de trabalho em no máximo 44 horas semanais, instituiu o seguro-desemprego, as férias remuneradas, a licença-maternidade e a licença paternidade e permitiu a organização sindical e o uso da greve como instrumento de negociação.

tópicos: