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No centro do debate, a BNCC do ensino médio

Documento ainda não disponibilizado para consulta propõe como obrigatórias apenas as disciplinas de matemática e português, com as demais aparecendo de forma interdisciplinar
André Antunes - EPSJV/Fiocruz | 23/03/2018 10h03 - Atualizado em 01/07/2022 09h45
Última audiência pública sobre a BNCC do Ensino Fundamental, realizada em setembro, em Brasília (DF) Foto: Mariana Leal/MEC

O Conselho dos Secretários Estaduais de Educação (Consed) realizou, nos dias 12 e 13 de março, reunião para discutir o texto da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) do ensino médio. A proposta do documento foi apresentada pelo Secretário de Educação Básica do Ministério da Educação (MEC), Rossieli Soares, durante a 1ª Reunião Ordinária do Conselho, realizada em Fortaleza (CE). O documento está em fase de elaboração pelo MEC, que projeta entregá-lo até o final do mês de março para análise pelo Conselho Nacional de Educação (CNE).

O conteúdo do documento ainda não foi disponibilizado para consulta, e deverá ser debatido em audiências públicas, mas em fevereiro, durante reunião entre MEC e secretários estaduais de educação, o governo anunciou que a BNCC do ensino médio será estruturada de uma maneira que já vem causando polêmica. Nele, apenas as disciplinas de matemática e português serão obrigatórias nos três anos do ensino médio, com as demais, como filosofia, história, geografia, física e química, por exemplo, aparecendo de forma “interdisciplinar”, divididas em três áreas de conhecimento: ciências humanas, ciências da natureza e linguagens e suas tecnologias. O documento também não detalha as o que deverá ser ensinado nos itinerários formativos previstos na reforma do ensino médio, aprovada pela lei 3.415/17. Em entrevista ao G1, a secretária-executiva do MEC, Maria Helena Guimarães afirmou que essa estrutura atende a uma solicitação dos secretários estaduais de educação. Segundo ela, a BNCC foi organizada por áreas de conhecimento de forma a “não engessar os currículos e respeitar a prerrogativa dos estados em definir a forma de organização dos seus próprios currículos”. Entrevistado para a mesma matéria, o presidente da comissão de elaboração da BNCC no Conselho Nacional de Educação, César Callegari, se disse surpreso com a proposta, afirmando que ela induz a uma concepção errada de que somente português e matemática são importantes.

Para a professora da Universidade Federal do Paraná (UFPR) Monica Ribeiro, contudo, a proposta não surpreende tanto assim, uma vez que a lei 3.415/17, que instituiu a reforma do ensino médio que havia sido apresentada na forma da MP 746 pelo governo Michel Temer, já previa a obrigatoriedade apenas de português e matemática nos currículos de ensino médio. “Isso inclusive foi uma coisa que a gente contestou bastante durante a discussão da lei”, informa Monica. Segundo ela, o que houve agora foi a quebra de um “acordo tácito” feito pelo governo que, diante da polêmica gerada pela proposta – e para garantir a aprovação da lei da reforma do ensino médio no prazo de 60 dias para que a MP 746 não caducasse –, argumentou que as demais disciplinas estariam garantidas no texto da BNCC do ensino médio. “Na época, nas audiências públicas, se bateu muito nessa tecla de que não estaria mais nada sendo obrigatório a não ser português e matemática, e os argumentos que o MEC trazia eram de que não era bem assim, de que essas disciplinas estariam asseguradas na BNCC. Foi uma estratégia para convencer as pessoas de que não haveria prejuízo. Só que não estão”, critica Monica. E complementa: “De certo modo é uma surpresa, mas não surpreende tanto se a gente olhar para a lei da reforma do ensino médio, porque ela permite isso, o que inclusive foi uma coisa que a gente contestou bastante durante a discussão da lei”.  Ela lembra ainda de uma entrevista do ministro da Educação, Mendonça Filho, ao programa Roda Viva, da TV Cultura, no dia 12 de março, em que o ele argumentou que a intenção do MEC ao estruturar a BNCC com base em português e matemática é elevar o desempenho do país no Pisa, o Programa Internacional para Avaliação de Estudantes, realizado pela Organização para Cooperação Econômica (OCDE). O Pisa avalia o aprendizado dos alunos por meio de provas de leitura, matemática e ciências. “A prioridade, portanto, não é a formação dos estudantes. Isso está dito. Então, é uma inversão do que é o currículo. Você acaba pensando o currículo só para fazer avaliação, e não para formação dos estudantes. É muito preocupante. O que a gente vai ver é um esfacelamento do ensino médio. A qualidade do ensino vai ficar muito deteriorada”, lamenta Monica. A professora da UFPR também vê com preocupação o que entende como um excesso de autonomia dos estados para a elaboração de seus currículos a partir do que prevê a BNCC proposta pelo MEC. “Tudo o que não é português e matemática é delegado aos estados. Isso quebra a unidade do ensino médio no Brasil, porque, por mais que esse documento esteja sendo chamado de base comum, o que ele efetivamente propicia é a quebra de uma unidade mínima entre os currículos estaduais do ensino médio no Brasil”, critica.

O caminho aberto pela BNCC e pela reforma do ensino médio para a privatização da oferta é outro foco de preocupação para Monica. “Os estados já estão se organizando para delegar parte da oferta do ensino médio público para o setor privado, porque a lei permitiu isso, pela via das parcerias, com recursos do Fundeb. Isso de fato é algo que nos preocupa”, diz Monica.

Procurado pelo Portal EPSJV/Fiocruz para comentar o documento da BNCC discutido na reunião ocorrida nos dias 12 e 13 de março, o Consed não respondeu até o fechamento desta reportagem.

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A quarta versão da Base Nacional Curricular Comum (BNCC), encaminhada pelo Ministério da Educação (MEC) ao Conselho Nacional de Educação (CNE) no início de dezembro, dobrou-se à coalizão de interesses que reúne institutos empresariais, mercado editorial, movimentos reacionários e religiosos, defensores de uma política pública de disseminação e financiamento massivo do ensino religioso nas escolas públicas. A avaliação é de Salomão Ximenes, professor de Direito e Política Educacional da Universidade Federal do ABC (UFABC), sobre o documento que foi aprovado em 15 de dezembro pelo CNE, com três votos contrários apenas, após críticas de entidades ligadas à educação pública e protestos de professores de que não houve transparência no debate. Em entrevista ao Portal EPSJV, Salomão afirma que o Conselho teve uma posição excessivamente subserviente e cartorial em relação à agenda imposta verticalmente pelo governo. O documento gerou polêmica especialmente por excluir discussões de gênero e sexualidade e pelo enorme destaque dado ao ensino religioso, que agora, segundo o artigo 23 da resolução, dependerá de uma comissão específica para decidir se entrará como área de conhecimento (com o mesmo status, por exemplo, de linguagens ou matemática) ou se será considerado componente curricular dentro da área de humanas. “Em qualquer das hipóteses, com o que foi aprovado, temos é uma violação à ideia de Estado laico e de cidadania laica”, sentencia Salomão.
Especialistas em educação apontam que a terceira versão do documento aprofunda a sintonia entre a Base Nacional Comum Curricular e as formulações defendidas por fundações e institutos empresariais que prestam serviços para a educação pública