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Novo Ensino Médio: Revisar ou Revogar?

Enquanto os defensores da reforma propõem ajustes, críticos argumentam que a reforma barateia o custo da educação e aumentará desigualdades
Juliana Passos - EPSJV/Fiocruz | 06/06/2023 14h18 - Atualizado em 07/06/2023 10h14
Foto: Igor Ovsyannykov/Pixabay

Possibilidade de escolha, flexibilidade do currículo, aulas mais atrativas e próximas do cotidiano dos estudantes. Esses são alguns dos argumentos de defensores da reforma do Ensino Médio (EM) para diminuir a evasão nesse segmento escolar que tem a maior taxa de abandono do ensino básico. Entre os favoráveis à reforma estão o Conselho Nacional em defesa da Reforma do Ensino Médio (Consed) e organizações da sociedade civil, como o Todos pela Educação e o Movimento pela Base, que têm em comum parceiros como Itaú Social, Instituto Unibanco e Fundação Roberto Marinho. Já os críticos à reforma destacam as complicações decorrentes da diminuição da carga horária da formação geral básica para antecipar a preparação para o mercado de trabalho. “Se estamos falando de educação básica, ela deve ser a mais comum a todos, como o direito à educação. Em um sistema de ensino tão desigual como o nosso, quando se diz que é preciso diversificar precocemente, você vai aumentar as desigualdades no acesso ao ensino e, consequentemente, limitar o acesso ao ensino superior”, diz Monica Ribeiro, coordenadora do Observatório do Ensino Médio, da Universidade Federal do Paraná (UFPR).

De acordo com um levantamento do jornal Folha de S. Paulo, publicado em reportagem de 17 de março de 2023, há uma grande diversificação das disciplinas em todo o país, com o oferecimento de, pelo menos, 1.526 disciplinas diferentes no Novo Ensino Médio. Em fase experimental desde 2020, o novo modelo passou a ser obrigatório para o primeiro ano do EM em 2022, após todos os estados apresentarem, individualmente, seu novo programa curricular. Em 2023, foi a vez dos estudantes do segundo ano e a previsão é que, em 2024, a obrigatoriedade se estenda também às turmas de terceiro ano do EM.

De acordo com a proposta do Novo Ensino Médio (NEM), as disciplinas da educação básica, como História, Biologia, Geografia ou Física ficam agrupadas por áreas do conhecimento: Ciências Humanas e Sociais Aplicadas (História, Geografia, Sociologia e Filosofia), Ciências da Natureza (Química, Física e Biologia), Linguagens (Português, Artes e Educação Física) e Matemática. De acordo com a Lei nº 13.415/2017, que regulamenta o NEM, apenas Português e Matemática serão disciplinas obrigatórias nos três anos do Ensino Médio. Outra mudança prevista pela lei está na carga horária. Diferentemente do que era previsto antes da alteração, quando o EM tinha 2.400 horas de carga horária, a atual Formação Geral Básica (FGB) deve ser ministrada em 1.800 horas, e nas 1.200 horas restantes, o estudante deve escolher ou ser incluído, como tem ocorrido na prática, em uma das cinco áreas de itinerários formativos previstos: Ciências da Natureza, Linguagens, Ciências Humanas e Sociais Aplicadas, Matemática ou Formação Técnica e Profissional. No total, a carga horária subiu para 3.000 horas, o que significa, para o Ensino Médio regular, uma hora a mais de aula por dia. E que não precisa ser, necessariamente, cumprido em aulas presenciais, já que a legislação permite que 20% das aulas sejam feitas no modo de Educação a Distância. Além da formação geral, os estudantes devem cursar uma das cinco opções de aprofundamento, que têm se desdobrado em um número diversificado de itinerários por estado.

A elaboração dos novos currículos ficou a cargo das secretarias estaduais de educação, com liberdade para elaboração de disciplinas e das trilhas de aprendizagem, que são diferentes rotas para um mesmo itinerário. A Revista Poli enviou um questionário a todas as secretarias estaduais de Educação do Brasil e obteve onze respostas – Rio Grande do Sul, Tocantins, Acre, Amazonas, Mato Grosso do Sul, São Paulo, Bahia, Pernambuco, Rio de Janeiro e Minas Gerais, além do Distrito Federal. Nelas, as secretarias explicam que os critérios para elaboração dos planos foram a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e resoluções estaduais, após a formação de grupos consultivos para elaboração do plano. Enquanto a Bahia elaborou 18 itinerários formativos dentro dos cinco eixos, o Rio Grande do Sul criou 24. A Secretaria de Educação do Rio Grande do Sul detalhou que o processo de escolha incluiu consultas ao interesse dos alunos, mas, posteriormente, as escolas se manifestaram individualmente sobre quais disciplinas seriam capazes de ministrar. Entre os itinerários preferidos estão “Expressão Corporal, Saúde e Bem-estar, “Vida, Cidadania e Relações Interpessoais” e “Sustentabilidade e Qualidade de Vida”. Já na Bahia, o itinerário “Interdisciplinar” foi o preferido. “Temos 27 modelos de ensino médio vigentes atualmente”, diz Monica, em referência aos 26 estados e o Distrito Federal.

Entre as respostas recebidas pela Poli, apesar da variedade de ofertas de disciplinas e itinerários dos estados, há alguns eixos comuns entre eles, como a preocupação de ensinar empreendedorismo e a elaboração de um projeto de vida, incluída como competência necessária a ser desenvolvida pelo estudante, conforme previsto na BNCC. “Há um desvio de finalidade quando os estudantes perdem formação básica para ter disciplinas relacionadas ao empreendedorismo, que não é algo que esses estudantes usarão para o Enem [Exame Nacional do Ensino Médio]. É como dizer aos estudantes ‘olha, já que você não vai ter acesso e preparo para tentar uma vaga no ensino superior, torne-se um empreendedor’”, avalia Monica.

Um levantamento do professor da Universidade Federal do ABC (UFABC), Fernando Cássio, que também integra o comitê diretivo da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, mostra que a maioria das secretarias contou com assessoria do Instituto Reúna para essa elaboração. O Instituto é uma organização sem fins lucrativos que realiza assessoria para implementação da BNCC, seja na formação de professores, secretarias de educação e na elaboração de materiais didáticos. Entre seus parceiros estão a Fundação Lemann, o Itaú Social e a Fundação Roberto Marinho. Diante da grande participação de um único instituto na assessoria dos currículos, Fernando rebate o argumento dos defensores da reforma de que há problemas que podem ser corrigidos com ajustes na implantação da reforma. “O problema é de concepção”, opina.

Desde o início de 2023, as redes sociais digitais trazem inúmeros relatos de estudantes e professores da rede pública de ensino que confirmam o diagnóstico feito pela Rede Escola Pública e Universidade (Repu), em 2022, sobre a implantação da Reforma no Estado de São Paulo, o primeiro a adotá-la, em 2020. A pesquisa constatou que, embora 375.019 estudantes tenham respondido seus itinerários de preferência, a atribuição foi feita por sorteio.  Do total de aulas previstas para 2022, 20% não tinham professor atribuído e no período noturno não há expansão da carga horária presencial. A pesquisa consultou ainda 28 escolas sobre o acesso dos alunos ao conteúdo das aulas oferecidas de forma virtual e a maioria registrou que os alunos não acessam o sistema do governo. “A indução de desigualdades escolares não é uma novidade na educação pública do Estado de São Paulo, haja vista os já descritos efeitos segregadores do Programa Ensino Integral (PEI), que concentra estudantes de classe média em escolas de jornada ampliada e a maioria dos mais pobres em escolas superlotadas”, conclui a nota técnica sobre a pesquisa. De acordo com os relatos das redes sociais, o cenário que se repete pelos demais estados é a falta de professores para implementação de todos os itinerários previstos e, por consequência, a impossibilidade de escolha por parte dos estudantes, com a realização de sorteio para a distribuição de itinerários. Além disso, há inúmeros registros de disciplinas pouco relacionadas com a educação básica, como ensino de RPG ou vendas pelo Instagram. “A reforma do ensino médio está destruindo a possibilidade dos estudantes ingressarem no ensino superior”, argumenta o professor da UFABC.

Em fóruns de professores nas redes sociais, os profissionais descrevem como um pesadelo a necessidade de ministrar aulas dos itinerários para completar a carga horária. Eles dizem que falta preparo dos professores para ministrar a variedade de disciplinas criadas, devido ao desvio da sua área de formação, o que tem sobrecarregado os docentes, que contam com pouco material de apoio para a preparação das aulas. Em abril de 2023, após um pedido feito nas redes sociais pelo professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Daniel Cara, também integrante do comitê diretivo da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, diversos internautas relataram a situação em suas escolas. Uma delas, a professora Cláudia Silva, explica as mudanças. “Falo como professora de História da Rede Estadual de São Paulo. Leciono três componentes diferentes de um itinerário formativo de Ciências Humanas para o 3º ano, para 20 alunos que não escolheram Ciências Humanas. São seis aulas semanais sofríveis, pois tento adaptar o material de apoio fornecido pelo estado e, ao mesmo tempo, aproximar-me da realidade deles, nem sempre com sucesso. Todo início de semana, momento de estudar e planejar, é um tormento. No 2º ano, é ainda pior, o componente Tradições Culturais foi concebido para ser lecionado por um professor de Artes, mas foi atribuído a mim”, escreveu em resposta a Daniel Cara.

A vice-diretora de Ensino e Informação da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), Ingrid D’avilla, observa que itinerários flexíveis não devem ser sinônimo de perda de conteúdo. Ela concorda que é preciso repensar o Ensino Médio e, nesse sentido, o modelo de currículo integrado de ensino dos Institutos Federais pode ajudar a pensar alternativas. “No modelo de educação politécnica, vinculamos a formação geral a habilitações técnicas e temos uma integração possível entre disciplinas ou eixos formadores, sem redução da carga horária da formação geral. Ao contrário do que diz a reforma, em que a proposta de itinerários formativos mais flexíveis ocorre com a redução da carga horária de disciplinas que são fundamentais para os estudantes. Por exemplo, você deixa de oferecer sociologia e passa a oferecer algo sobre empreendedorismo. No lugar de matemática, robótica. E no final das contas, os alunos estão perdendo a oportunidade de conhecer os saberes disciplinares que são fundamentais para que eles possam compreender essas outras disciplinas”, diz.

"Se estamos falando de educação básica, ela deve ser a mais comum a todos, como o direito à educação. Em um sistema de ensino tão desigual como o nosso, quando se diz que é preciso diversificar precocemente, você vai aumentar as desigualdades no acesso ao ensino e, consequentemente, limitar o acesso ao ensino superior"

Monica Ribeiro
Professora da Universidade Federal do Paraná (UFPR)

Formas de expansão: Educação a distância e parcerias
A flexibilização do currículo também se dá com a permissão para a realização de parcerias, o que inclui a contratação de professores sem experiência didática, mas que tenham atuação profissional na área da disciplina criada. O critério, nesse caso, seria o “notório saber”. E as parcerias não se limitam à contratação de pessoas físicas, também é possível fazer parcerias com escolas privadas para o oferecimento de cursos técnicos. “Essa é uma forma de baratear a expansão da rede pública. Em vez de aumentar a estrutura das escolas, o governo autoriza a terceirização dessa etapa”, diz Ingrid.

Nos estados que responderam ao questionário desta reportagem, há iniciativas variadas. No Mato Grosso do Sul, a secretaria de educação possui uma parceria com o Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (Senac) para atender a 15 turmas de itinerários profissionais. O governo do Acre, com apoio do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), lançou uma seleção pública para oferecer a formação técnica em Bioeconomia da Amazônia. O estado também firmou uma parceria de cooperação técnica com o MEC e a empresa federal alemã GIZ – GmbH para implantar cursos profissionalizantes na área ambiental dentro do programa “Profissionais do Futuro – Competências para a Economia Verde”. Já a secretaria de educação de Tocantins informou que está realizando um levantamento das demandas dos setores produtivos locais para criação de parcerias com o setor privado, o governamental e o terceiro setor para o oferecimento de itinerários da educação profissional.

Essas parcerias também podem ser feitas com a Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica, como já acontece em alguns estados. E para a presidente do Conselho Nacional das Instituições da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica (Conif), Maria Leopoldina Veras, há uma nítida diferença entre a parceria dos Institutos Federais (IFs) com as escolas estaduais e a capacidade de integração interna de cada IF por conta da estrutura e valorização profissional. “O aluno faz a parte propedêutica [disciplinas regulares] na escola estadual e a parte profissionalizante nos Institutos Federais.  Mas, mesmo assim, percebemos a necessidade de haver uma maior integração na construção desse currículo para garantir uma formação adequada aos alunos. Quando você tem isso dentro da mesma instituição, fica mais fácil. Nos institutos, os professores têm dedicação exclusiva e mais tempo para elaborar a integração dos currículos”, diz.

A legislação também permite que as parcerias sejam feitas para a oferta de disciplinas no formato de Educação a Distância (EaD). O percentual varia de acordo com a modalidade. No ensino médio regular é de até 20%, ou seja, com o aumento da carga horária para cinco horas diárias, uma delas poderia ser feita por EaD. No caso do ensino médio noturno, que manteve as quatro horas diárias, o percentual sobe para até 30%. Já a Educação de Jovens e Adultos (EJA) pode ser feita quase totalmente de forma virtual, com a permissão para até 80% das aulas serem ministradas online. Para Ingrid, essa opção é um grande retrocesso após quatro anos de pandemia, aliado ao fato de o acesso à internet banda larga ainda ser muito restrito no país. Ela relata a experiência da EPSJV durante o período de suspensão das aulas presenciais, por conta da pandemia de Covid-19, quando a Fiocruz distribuiu tablets e chips com internet para os alunos e, mesmo assim, as dificuldades foram enormes. “Descobrimos que a cidade do Rio de Janeiro, uma das maiores do país, tem áreas de sombra de cobertura em que não há sinal de internet disponível, mesmo que esse serviço tenha sido adquirido pela instituição”.

Para além dos problemas de conexão e da realidade da EPSJV, ela não considera que a EaD seja uma modalidade que se aplique à educação básica. “Eu acho que a grande lição do ensino remoto emergencial foi evidenciar que a escola é, na verdade, um grande espaço de socialização. O aprendizado ocorre, inclusive, como decorrência dos laços pessoais, interpessoais, afetivos e sociais que se constroem cotidianamente, seja com os outros estudantes, seja com os professores. Essa experiência que vivenciamos coloca em xeque a ideia de que haverá modernização e inovação na educação básica quando diminuirmos o tempo de sala de aula e otimizarmos com a educação a distância”, avalia, e completa dizendo que a situação é ainda mais crítica no caso da EJA, com chances de se tornar apenas uma modalidade de certificação para pessoas que deveriam estar ainda mais próximas da escola. “Estamos falando de trabalhadores que tiveram que se afastar da escola por questões do trabalho, da vida familiar e social e que ficaram longe da escola durante uma fase muito importante da vida. Então, flexibilizar o horário das atividades da EJA é uma possibilidade, mas tornar EaD não acho possível”, afirma.

A mudança não afeta todas as instituições e a capacidade de oferta do novo currículo não é a mesma em todas as instituições de ensino. Enquanto as escolas particulares continuam garantindo o conteúdo necessário para a aprovação nos exames de vestibular e no Enem, as escolas públicas federais decidiram não adotar a reforma. Essas instituições, de acordo com o Censo Escolar de 2022, possuem melhor estrutura escolar, à frente, inclusive, das escolas particulares. “Entendemos que essa reforma reduz as possibilidades de formação dos nossos alunos. Então, nós seguimos a resolução atual, mas não deixamos de fazer toda a complementação que era abordada nas diretrizes de 2012. A antiga resolução é muito mais ampla e permite que a gente possa fazer um aprofundamento em disciplinas que são cruciais para o processo de formação dos nossos alunos, como nas áreas de Artes, Filosofia e Sociologia”, diz a presidente do Conif. Ela faz referência a diretrizes aprovadas para todas as modalidades de Ensino Médio em 2012, mas nunca adotadas no modelo regular, o que vai ser explicitado mais à frente nesta reportagem.

Diante das controvérsias sobre a reforma do Ensino Médio, o novo governo federal decidiu suspender, em abril de 2023, seu cronograma de implantação, incluindo um prazo para que o Enem possa avaliar os estudantes com base nesse novo currículo.

É preciso revisar ou revogar o Novo Ensino Médio?
Em documento lançado em dezembro de 2022, a organização não governamental Todos pela Educação (TPE) elogia a proposta. “Em uma análise geral, é preciso destacar que há mudanças aprovadas para o Ensino Médio que apontam para o sentido correto, especialmente na visão de ampliação de carga horária, da organização curricular por área do conhecimento, da busca da interdisciplinaridade e da flexibilização curricular, com a previsão de oferta de opções formativas para os estudantes ao longo da etapa”, diz o documento.

O Consed, em nota divulgada em fevereiro de 2023, também defendeu a manutenção da reforma. “O Novo Ensino Médio é uma construção coletiva, cuja implementação tem sido liderada pelas redes estaduais de ensino. Pelas mãos dos técnicos das secretarias, em colaboração com as equipes das escolas, especialistas de entidades parceiras e sindicatos, foram construídos os novos currículos, que estão sendo implementados desde 2022. [...] Para o Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed), aprimoramentos e ajustes, próprios de qualquer processo, podem e devem ser discutidos. No entanto, a revogação do Novo Ensino Médio não é o caminho para tornar essa etapa mais atrativa ao estudante”, diz a nota do Conselho, que não quis conceder entrevista para esta reportagem, assim como o Todos pela Educação.

Lula Marques/Agência BrasilAinda no documento do TPE, há o detalhamento das mudanças que devem ser feitas. O texto avalia como “bastante amplas” as definições sobre os itinerários formativos. “Abriu-se uma flexibilidade muito grande para os currículos, trazendo dúvidas e incertezas aos estados e, consequentemente, riscos em um país com as imensas desigualdades como as brasileiras”, diz o documento e, mais a frente, pede um número maior de normas orientadoras: “As normativas poderiam, por exemplo, ser mais orientadoras sobre o que se espera dos itinerários em termos de competências e habilidades a serem desenvolvidas no  aprofundamento das áreas do conhecimento, dialogando com o que é trabalhado na formação geral básica”.

O texto demonstra ainda preocupação com o Enem, uma vez que entre as possibilidades do novo exame está a de haver um dia de prova para conhecimentos gerais e outro para o itinerário escolhido. “Mas ainda não há matriz de referência divulgada, então não se sabe como esse segundo dia de exame dialogará com o atual documento dos Referenciais para a Elaboração dos Itinerários Formativos”, registram. Há ainda a opção das instituições que possuem processos de seleção próprios. A Unicamp, por exemplo, anunciou, em março de 2023, que manterá em sua prova questões de Filosofia e Sociologia e não fará divisões por itinerário.

Por fim, o TPE defende no documento que o MEC abra uma consulta pública para repensar as mudanças necessárias para o Novo Ensino Médio. “Para que isso possa ocorrer com qualidade e de forma efetiva ao longo dos anos, é central que o mandato comece com um amplo processo de escuta e diálogo da nova gestão com todos os atores diretamente relacionados com o Ensino Médio no Brasil. Entre eles estão as secretarias e os Conselhos de Educação dos estados (incluindo suas representações no Consed e Foncede (Fórum Nacional dos Conselhos Estaduais e Distrital de Educação), professores, gestores escolares, estudantes, representantes das redes privadas, das instituições de Ensino Superior, da sociedade civil organizada e do setor produtivo (para a implementação do itinerário de formação técnica e profissional). Este processo deve ter um objetivo claro de subsidiar o plano do Ministério da Educação para a etapa ao longo dos próximos anos, identificando os atuais pontos fortes e os ajustes mais necessários a serem feitos neste momento. É preciso que o processo tenha um marco temporal que respeite as urgências atuais do Ensino Médio brasileiro, ou seja, não se estendendo para além dos primeiros meses de gestão”.

Em março de 2023, o MEC abriu uma consulta pública sobre o Novo Ensino Médio, por meio da Portaria n° 399, de 9 de março de 2023. O processo com previsão inicial de duração de 90 dias, foi prorrogado por 30 dias, e inclui a realização de pesquisas com a comunidade escolar, seminários e questionários online. Em 24 de abril de 2023, em uma das etapas da consulta, o Ministério disponibilizou um documento na plataforma Participa +, no qual pontua as principais mudanças do Novo Ensino Médio e inclui um questionário sobre alguns pontos da reforma. Entre outras perguntas, o questionário pede manifestações sobre uma proposta de aumento da carga horária total para 300 horas na formação geral básica – um meio termo entre o que se tinha antes e o modelo atual; e sobre a possibilidade de apenas o conteúdo dessa formação geral ser cobrada no Enem. Em reunião realizada em 2 de junho, a Câmara Técnica de Ensino e Informação da EPSJV decidiu não participar da consulta por considerar que a consulta pública não deixa claro qual será a metodologia dos trabalhos nem o espaço para efetiva participação. "O conteúdo da consulta online está limitado a 11 questões formuladas em um caráter dualista em que é preciso optar pelas opções 'concordo' e 'discordo'. Nós apoiamos a revogação da reforma e não encontramos espaço nessa consulta para um debate mais amplo", disse Rafael Bilio, professor-pesquisador e assessor da Câmara Técnica.

Para a presidente do Conif, Maria Veras, a falta de organização dos governos anteriores na criação de fóruns para discussão minuciosa da reforma é responsável por essa “situação insustentável”, mas ela diz que, no Conif, não há posição fechada quanto à possibilidade de ajustes ou sobre a necessidade de revogação da Reforma. Já Monica Ribeiro lembra que participou de 10 das 11 audiências públicas sobre a Medida Provisória 746, texto que deu origem à Lei 13.415/2017. Ela considera que o número de audiências não foi suficiente para debater o tema. “A defesa da reforma partia de organizações ligadas a fundações empresariais, como o Banco Itaú, o Instituto Unibanco e o Todos pela Educação. Eu fui, inclusive, falar pelo Movimento Nacional em Defesa do Ensino Médio, contrariamente à aprovação. Só que o problema não é de implementação, como eles dizem, é de concepção do Novo Ensino Médio, que prejudica os estudantes de escolas públicas, e nós já dizíamos isso lá em 2017. A dita flexibilização enfraquece o sentido da educação básica que está na LDB [Lei de Diretrizes de Bases da Educação] de 1996”, avalia Monica. A defesa de um currículo comum para crianças e jovens de 4 a 17 anos não é novidade. Um marco nessa defesa é o Manifesto dos Pioneiros, lançado em 1932, que é contrário à fragmentação do ensino e acredita que uma base comum é fundamental para o fortalecimento da democracia, em oposição a uma dualidade de ensino, em que a população mais pobre seria encaminhada mais rapidamente para o mercado de trabalho e as classes mais altas teriam um ensino mais completo para alcançar o ensino superior. O documento, que completou 90 anos em 2022, foi tema de reportagem da revista Poli nº 86.

O professor Fernando Cássio considera que a consulta pública foi “arrancada do Ministério da Educação” e é uma vitória modesta. Cássio avalia que a chamada de responsabilidade do governo federal para auxiliar na realização de normativas nacionais é uma mudança de discurso dos apoiadores da reforma diante das dificuldades de implementação, algo já alertado por pesquisadores da área e comunidade escolar. Ele também critica a ideia de que a reforma trará melhorias de infraestrutura para as escolas. Pelo contrário, diz ele. “O problema é que o governo de Michel Temer tinha um projeto muito claro de reduzir o horizonte da política social no país. A expressão máxima desse projeto é a Emenda Constitucional 95, do teto de gastos, e dela derivam três reformas: da previdência, trabalhista e do ensino médio. Essas são reformas que visam exatamente reduzir o custo da educação, das políticas de emprego, das condições de trabalho e das políticas de previdência”, destaca.

Pesquisadores da Educação alertam que as críticas destinadas à reforma em curso não significam um pedido de manutenção do que estava sendo feito antes e que, em especial, a primeira década dos anos 2000 foi de intenso debate sobre os rumos da educação. O Ensino Médio foi o último segmento a ser universalizado na educação brasileira, o que ocorreu apenas em 2009. A universalização significou a obrigatoriedade de inclusão de todos aqueles de 4 a 17 anos na escola por meio da Emenda Constitucional 59/2009. De acordo com o Censo Escolar de 2022, há 7,8 milhões de estudantes no Ensino Médio, sendo que a rede estadual concentra 84% dos alunos. Embora as taxas de matrícula no segmento estejam um pouco abaixo do recorde de nove milhões conquistado até 2004, a EC 59 modificou o perfil dos estudantes. Enquanto em 2009, cerca de 50% dos alunos do Ensino Médio tinham entre 15 e 17 anos, dez anos depois, essa taxa era de 71%, de acordo com o artigo “Direito à educação e universalização do Ensino Médio no Brasil: ações do poder legislativo federal (2009-2016)”, publicado em 2022 por Monica Ribeiro e Vanessa Jakimiu, professora da Universidade Federal do Ceará. Com a Emenda, aqueles que completassem 18 anos, deveriam cursar a Educação de Jovens e Adultos. Foi nesse contexto, que indicava a necessidade de um modelo unificado de Ensino Médio no país, que foram criadas as Diretrizes de 2012, mas que nunca foram implementadas.

O nascimento das diretrizes de 2012 e a disputa de propostas
Mídia NinjaA coordenadora do Observatório do Ensino Médio da UFPR recorda que, ainda em 2003, no início do primeiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva, houve um seminário em Brasília chamado “Ciência, Cultura e Trabalho” e que funcionou como base para as políticas educacionais do Ensino Médio do governo do Partido dos Trabalhadores (PT). É a partir da continuidade dessas discussões e da necessidade de modificar o Ensino Médio que as Diretrizes Curriculares Nacionais para o EM foram aprovadas em 2012. No texto, é possível ver muitas palavras comuns ao que hoje se advoga na reforma, como a integração entre as disciplinas e o protagonismo dos estudantes, mas o documento não reduz a carga horária da formação geral, de 2.400 horas, embora incentive a criação de itinerários e aumento da carga horária total. Ao contrário da BNCC, não há detalhamento de conteúdo, já previsto nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), estabelecidos em 1998.

As propostas das Diretrizes e da BNCC sugerem maior integração das disciplinas, usam a mesma divisão do agrupamento por áreas e propõem uma educação mais próxima do cotidiano dos estudantes. “Quando as diretrizes propõem um currículo integrado, há o entendimento de que é preciso romper com a ideia de que um conhecimento tem mais valor do que o outro e há o agrupamento de áreas do conhecimento, mas respeita o componente curricular obrigatório dentro das áreas das disciplinas. Quando a BNCC fala da área de Ciências Humanas ou Ciências da Natureza, trata isso como área e dá um apagamento às disciplinas, aos objetos de estudo. Você não vê sequer o nome da palavra Geografia na BNCC do Ensino Médio de Ciências Humanas”, exemplifica Monica.

Em seu balanço sobre as necessidades de reformulação do Ensino Médio, o documento do Todos pela Educação não cita as diretrizes aprovadas em 2012, mas dá ênfase ao Projeto de Lei 6.840/2013, apresentado pelos deputados federais Reginaldo Lopes (PT-MG) e Wilson Filho (PMDB-PB). “Esse PL de 2013 não chegou a ir à votação porque nós brigamos muito contra ele. Mas, depois do impeachment da presidente Dilma, o Consed retomou esse projeto, que se traduziu na Medida Provisória 746 que deu início à Reforma”, relembra Monica, que acrescenta: “O que está em disputa é o projeto formativo da juventude brasileira”. Em seguida, a professora chama a atenção para algumas palavras-chave que marcam as diferenças de concepções: “Na BNCC, a ênfase está nas competências e habilidades, enquanto as diretrizes curriculares se apoiam no trabalho como princípio educativo e na pesquisa como princípio pedagógico. Esses termos levam a dois modelos distintos de currículo: o das competências e o integrado”, destaca ela.

Um currículo baseado em competências e habilidades, como é o caso da BNCC, que estipula quais devem ser desenvolvidas em cada etapa do ensino, é baseado em uma lógica empresarial, de acordo com os verbetes “Pedagogia das Competências” e “Currículos por Competências”, escritos por Marise Ramos, professora-pesquisadora da EPSJV/Fiocruz, no Dicionário da Educação Profissional em Saúde (EPSJV, 2008). “Essa redefinição pedagógica somente ganha sentido mediante o estabelecimento de uma correspondência entre escola e empresa”, diz a autora no verbete “Pedagogia das Competências”. Já no termo “Currículo por Competências’, Marise diz: “Em síntese, em vez de partir de um corpo de conteúdos disciplinares existentes, com base no qual se efetuam escolhas para cobrir os conhecimentos considerados mais importantes, a elaboração do ‘currículo por competências’ parte da análise de situações concretas e da definição de competências requeridas por essas situações, recorrendo às disciplinas somente na medida das necessidades exigidas pelo desenvolvimento dessas competências”.

Esvaziamento do currículo
A diminuição na ênfase em ministrar conteúdos e conceitos dentro da abordagem por competências foi sentida pelos profissionais da educação na edição de 2021 do Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD), em que o edital já estava adequado à BNCC. “Como os novos livros fazem essa divisão por áreas, sem especificar as disciplinas, muitos professores não têm usado esse material e têm permanecido com os livros antigos, porque ali eles têm conteúdo, essa é a preferência”, conta Monica. Essa também foi a opção feita pela EPSJV/Fiocruz, diante do último edital para ensino médio do PNLD, ao lado da utilização de materiais complementares organizados pelos professores. O próximo edital está previsto para 2024 e já preocupa os educadores. “Antes, os livros didáticos eram feitos por disciplina. E, independentemente da abordagem teórica, havia livros mais marxistas, mais culturalistas, tinha conteúdo daquele campo disciplinar, daquilo que os professores aprendem quando estão na universidade”, diz Carolina Dantas, professora-pesquisadora da EPSJV/Fiocruz. Ela conta que já era uma tendência nos livros didáticos a interlocução com outras disciplinas com sugestões de temas, questões e atividades, mas sem perder a particularidade e as referências da disciplina, o que ficou muito restrito nos livros que seguem a nova BNCC. “Os Parâmetros Curriculares Nacionais são mais específicos quanto ao conteúdo a ser ministrado, diferente da BNCC que foca em competências e habilidades. É o esvaziamento completo do conhecimento”.

Para exemplificar a mudança, Carolina cita os livros da sua própria área, a História. Em geral, os livros eram organizados por ordem cronológica, ainda com base em um currículo eurocêntrico. “Já na BNCC, os conteúdos são gerais e temáticos, como por exemplo, ‘racismo’, um problema concreto e importante, mas que é tratado rapidamente com poucos gráficos. Mas por que esse problema existe? Como foi construído? Qual é seu impacto? Como transformar isso? Quais conceitos podemos pensar a partir da questão? Como exemplo poderíamos discutir sobre os conceitos de ‘classe’ e ‘raça’, questões que não aparecem. É um diagnóstico focado no presente”, critica.

Ela também compara a mudança realizada nas escolas públicas com os colégios privados mais tradicionais da capital carioca, que não reduziram seus currículos, assim como a rede federal. “Essas escolas não reduziram o currículo como as estaduais fizeram, pelo contrário, acrescentaram conteúdo”, diz. Para Carolina, não é suficiente que a BNCC proponha aos alunos realizarem projetos em benefício das suas comunidades ou se preparem para gerenciar conflitos locais. “Como você melhora sua comunidade sem entender por que na sua comunidade existe um helicóptero dando tiro, não há saneamento e tem gente passando fome? Pode parecer, mas essa proposta não tem o sentido da participação comunitária. É muito no sentido individual. ‘Olha, se eu faço a minha parte, tudo vai dar certo’”, opina. Nesse mesmo sentido, ela critica a obrigatoriedade de ministrar disciplinas sobre “Projeto de Vida”, que pedem para o aluno avaliar o seu contexto e traçar metas. Para a professora-pesquisadora, o ensino que será oferecido para os alunos das escolas com menos infraestrutura será ainda mais precário, com uma formação “aligeirada para o mercado e que irá embarreirar o acesso à universidade”.

Para Monica Ribeiro, em vez de uma formação centrada na produção científica, cultural e humanística, a BNCC e a reforma em curso propõem uma formação voltada para a resiliência no mercado de trabalho. “Isso é um esvaziamento do sentido do ensino médio como educação básica. Ao colocar no lugar essa visão empreendedora ou empresarial de educação, vamos dizer para os jovens que só lhes resta isso?”, indaga, e aponta para as consequências no ensino superior. “A carga horária das disciplinas também impacta no conteúdo ministrado nas licenciaturas. Então, o que nós precisamos é uma política que articule a dimensão de estrutura física e material das escolas, a formação docente, a política de permanência estudantil e políticas de avaliação que ultrapassam essas políticas de desempenho. Enquanto eu pegar só um aspecto, que é o currículo e a BNCC, e todos os demais permanecerem abandonados, não vamos chegar a lugar algum”, enfatiza.

"Colocar todas as expectativas de mudanças na educação brasileira em uma reforma do currículo não faz sentido. Essa mudança não vai resolver nenhum problema, nem de evasão, nem de engajamento com a escola. É preciso pensar em políticas de permanência e infraestrutura".

Fernando Cássio
Professor da Universidade Federal do ABC

Novo projeto de lei
No dia 16 de maio, o deputado e vice-líder do governo na Câmara Federal, João Carlos Bacelar (PV-BA), apresentou o Projeto de Lei 2601/2023. Assinado por diversos pesquisadores, entre eles, Fernando Cássio e Monica Ribeiro, o PL propõe o retorno da carga horária mínima da Formação Geral Básica (FGB) para 2.400 horas e a obrigatoriedade de que a FGB seja ofertada de maneira presencial, mas mantém a carga horária total de 3.000 horas, conforme previsto na Reforma. O texto, no entanto, não determina como devem ser ocupadas as 600 horas restantes, que, em vez de Itinerários, foram nomeadas como “Parte Diversificada”. “O projeto é essencialmente revogatório. Ele reconhece algumas coisas que a reforma trouxe, como a expansão da carga horária e a parte razoável da flexibilização curricular, mas é um PL que revoga tudo aquilo que a reforma trouxe de retrocesso”, explica Fernando. A defesa do PL 2601/2023 também foi o caminho escolhido pela EPSJV, em decisão colegiada tomada pela Câmara Técnica de Ensino e Informação no começo de junho, acompanhando outros movimentos mais progressistas da Educação, entre eles a Anped, Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação. “Nós estamos trabalhando publicamente e coletivamente em torno do PL 2601, que foi fruto de interlocução com inúmeros pesquisadores, trouxe à tona estudos referentes à implementação do NEM e irá fomentar uma nova política para o segmento”, disse Rafael Bilio.

O Projeto abre espaço para a formulação de uma nova BNCC, inspirada nas Diretrizes Curriculares de 2012, mas, para Fernando, essa será outra etapa do processo. “Primeiro, tratamos dos aspectos da mudança da lei para depois discutir as mudanças necessárias nas diretrizes curriculares para garantirmos esse ensino médio com a formação geral ampliada, com acesso aos conhecimentos disciplinares. Isso vai ter que ser revisto. O Projeto de Lei não vai dar conta de rever tudo isso, mas vai exigir uma série de outras ações de regulamentação. Uma delas é essa, vai ter que mudar a diretriz curricular do ensino médio”, avalia. O professor destaca que o PL está restrito a “eliminar o caráter regressivo da reforma do ensino médio sobre o currículo”. Em relação às desigualdades de infraestrutura, a necessidade de valorização dos professores e de fomento à permanência dos estudantes, ele defende que sejam solucionadas a partir de investimentos em políticas públicas. “Colocar todas as expectativas de mudanças na educação brasileira em uma reforma do currículo não faz sentido. Essa mudança não vai resolver nenhum problema, nem de evasão, nem de engajamento com a escola. É preciso pensar em políticas de permanência e infraestrutura”, conclui.