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O fim do licenciamento ambiental?

Entidades de vários setores acendem o alerta contra projeto de lei aprovado na Câmara dos Deputados que altera radicalmente as regras para o licenciamento ambiental no país
André Antunes - EPSJV/Fiocruz | 21/05/2021 13h12 - Atualizado em 01/07/2022 09h42
Flexibilização da legislação ambiental pode abrir caminho para novas tragédias como o rombimento da barragem de rejeitos de mineração em Brumadinho, em 2019, dizem ambientalistas Foto: Arquivo/Agência Brasil

Com as atenções voltadas para a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid, a Câmara dos Deputados aprovou no dia 13 mais um projeto de interesse da bancada ruralista no Congresso Nacional: trata-se do Projeto de Lei 3.729/2004, que altera profundamente as regras para o licenciamento ambiental de empreendimentos no Brasil. O substitutivo aprovado, relatado pelo deputado Neri Geller (PP-MT) – vice-presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) -, foi apresentado apenas um dia antes de ir à Plenário, e foi alvo de manifestações de repúdio apresentadas por organizações e entidades de diversas áreas, entre elas a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), a Associação Brasileira de Membros do Ministério Público de Meio Ambiente (Abrampa), O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e a Coordenação de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq).

Isso porque o PL, que agora deve ser analisado pelo Senado, dispensa de licenciamento inúmeras atividades que potencialmente trazem impactos ao meio ambiente, entre elas a agricultura, pecuária (com exceção da intensiva de médio e grande porte), a silvicultura e obras de instalação de redes de água e esgoto. O texto permite ainda que atividades e obras de baixo e médio risco ambiental, inclusive mineração, possam ser alvo de Licença por Adesão e Compromisso (LAC), uma espécie de licença autodeclaratória automática, concedida via internet, sem análise prévia de órgãos ambientais.


Exceção

“Ele praticamente torna o licenciamento ambiental em exceção ao invés de uma regra. Porque hoje a regra é: a atividade tem potencial poluidor, então vai ter uma série de normativas que vão dizer qual o tipo de licenciamento que se aplica àquele caso, mas precisa sim haver o procedimento de licenciamento pelo órgão ambiental competente”, alerta Mauricio Correia, da Associação de Advogados de Trabalhadores Rurais (AATR) e integrante da Campanha Nacional em Defesa do Cerrado, que ressalta que a entidade foi pega de surpresa com a celeridade com que o projeto foi aprovado. “Principalmente pelo quórum da aprovação. Com mais oito votos eles conseguiriam quórum para mudar a Constituição. Isso nos chamou atenção, uma maioria esmagadora de votos a favor de um projeto que, na prática, desconfigura os direitos relacionados à temática ambiental que foram, à duras penas, consolidados na Constituição Federal”, afirma Correia, e completa: “O licenciamento ambiental é um instrumento fundamental para o poder público mitigar impactos e para, inclusive, fazer compensações de impactos ambientais. Esse instrumento é a pedra angular em termos de controle do poder público a respeito de empreendimentos de modo geral”.


Riscos

Maurício Guetta, consultor jurídico do Instituto Socioambiental (ISA) concorda, e dá destaque para o número de manifestações contrárias ao texto, apresentadas por diversos setores. “O volume de manifestações demonstra como o processo foi feito sem qualquer transparência. É o pior texto possível para o licenciamento ambiental. De todos os pontos em disputa, nenhum teve a posição dos demais setores contemplada. Prevaleceu apenas o posicionamento dos setores empresariais em todo o texto”, critica. Na prática, explica Guetta, o PL 3.729/04, acaba com o licenciamento ambiental da maneira como é feito hoje. “O texto traz uma lista extensa de 13 atividades de impacto dispensadas de licenciamento, entre elas vale destaque para as atividades de instalação de saneamento básico. Isso nos preocupa muito sob o ponto de vista da poluição hídrica, porque quando não havia licenciamento nós tivemos as situações de poluição extrema em rios de todo o país, como por exemplo o rio Tietê”, resgata o consultor jurídico do ISA. E complementa: “Para as atividades licenciáveis, a grande maioria será licenciada pela modalidade de adesão e compromisso, com um licenciamento auto declaratório, sem a análise prévia do órgão ambiental, e emitido automaticamente a partir de informações preenchidas pelo próprio empreendedor. Ou seja, um mecanismo que não se assemelha em nada ao licenciamento ambiental, uma vez que não há qualquer tipo de análise previa por parte do órgão ambiental”.

Em reportagem publicada na sua página da internet, o ISA alertou ainda para a possibilidade de que o projeto, caso aprovado, faça com que aumente o risco da ocorrência de novos desastres ambientais como os rompimentos das barragens de rejeitos de mineração em Mariana, em 2015, e em Brumadinho, em 2019. Isso porque o PL confere autonomia para que os estados e municípios adotem procedimentos próprios para a concessão de licenças, bem como inclui as atividades de baixo e médio risco ambiental, inclusive na mineração, entre as que podem ser licenciadas por meio de licença autodeclaratória automática. A reportagem lembra que uma mudança na legislação estadual foi o que permitiu que a Câmara de Atividades Minerárias do Conselho Estadual de Política Ambiental de Minas Gerais reduzisse, em 2018, a classificação do potencial de impacto ambiental do complexo de mineração de Paraopeba, da Vale, que inclui o reservatório de rejeitos da mina do Córrego do Feijão, em Brumadinho, de alto para médio, o que permitiu que o processo de licenciamento do empreendimento fosse simplificado.


Comunidades tradicionais e unidades de conservação ameaçadas

De acordo com Maurício Correia, o texto ameaça ainda a saúde das populações tradicionais que vivem em comunidades próximas a empreendimentos econômicos. Isso porque o texto prevê a necessidade de estudos de impacto ambiental apenas sobre os empreendimentos adjacentes a comunidades indígenas já homologadas e às comunidades quilombolas tituladas. Conforme levantamento do ISA, seriam desconsideradas para efeitos de avaliação, prevenção e compensação de impactos socioambientais 41% das terras indígenas com processos de demarcação já abertos na Fundação Nacional do Índio (Funai) e 84% dos territórios quilombolas com processos de titulação iniciados pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). “Pelo atual regramento do licenciamento ambiental, uma obra próxima a um território quilombola, essas comunidades precisam ser consultadas no processo de construção do chamado estudo de componente quilombola, e a partir daí vai se fazer o plano básico ambiental quilombola, que é justamente identificar as especificidades desse grupo social vulnerável para prever ações que vão mitigar esses impactos, ou compensar os danos que são inevitáveis. Se estabelece uma relação  mediada entre empreendedor e comunidades, a partir também do órgão ambiental”, explica Correia, e complementa: “Por esse novo regramento, a empresa está simplesmente dispensada de promover esse tipo de compensação ou vai fazer isso sem nenhum tipo de fiscalização, o que, na pratica, acaba dando no mesmo”.

Para piorar, pelo texto do PL aprovado na Câmara, deixa de ser obrigatória a análise dos impactos diretos e indiretos de empreendimentos sobre as Unidades de Conservação (UC). “Esse projeto é a maior ameaça as áreas protegidas brasileiras da atualidade”, ressalta Maurício Guetta, que acredita que, caso seja aprovado, o PL implique em um aumento dos conflitos decorrentes da instalação de empreendimentos e da judicialização em torno deles. “Me parece que o projeto não atende nem a proteção ambiental, muito menos a proteção dos direitos da populações impactadas por empreendimentos, especialmente em relação a sua saúde, e muito menos aos interesses empresariais, uma vez que a insegurança jurídica será tamanha que não haverá investimento seguro no Brasil. Especialmente tendo em vista que com a aprovação desse texto, o Brasil dilacera seu principal instrumento de prevenção de danos e impactos em um momento em que a comunidade global volta suas atenções à questão socioambiental”, avalia Guetta, cuja expectativa é que o Senado possa corrigir os “graves equívocos” aprovados na Câmara dos Deputados. “Nossa expectativa é que, diferentemente da Câmara, onde não houve nenhum debate sobre o texto aprovado, é que o Senado Federal possa realizar uma sequência de debates aprofundados com todos os setores excluídos desse processo”.