Serviços 
O conteúdo desse portal pode ser acessível em Libras usando o VLibras

O novo Catálogo Nacional de Cursos Técnicos e os rumos da educação profissional

Aprovado pelo CNE em 12 de novembro, documento ainda precisa ser homologado pelo MEC. Nova versão amplia a possibilidade de oferta da educação profissional na modalidade EaD, o que preocupa especialistas da área. Professores-pesquisadores da EPSJV/Fiocruz fazem um balanço das contribuições da instituição na elaboração do texto
André Antunes - EPSJV/Fiocruz | 26/11/2020 20h22 - Atualizado em 01/07/2022 09h42

Aguarda homologação pelo Ministério da Educação (MEC) a 4º edição do Catálogo Nacional de Cursos Técnicos. O documento foi aprovado pelo Conselho Nacional de Educação (CNE) por unanimidade no dia 12 de novembro. O catálogo, cuja primeira versão foi instituída em 2008, lista os cursos reconhecidos pelo MEC e serve de referência para oferta de habilitações técnicas por instituições e redes de ensino em todo o país, bem como alguns requisitos mínimos. O texto foi atualizado duas vezes, por meio de resoluções do CNE, uma em 2012 e outra em 2014. A proposta de revisão atual foi encaminhada ao CNE em agosto pela Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica (Setec/MEC), após uma consulta pública realizada de 6 a 10 de julho pelo ministério. “Foi um trabalho de mais de 200 profissionais de todas as áreas. Esse processo foi um dos mais rápidos a serem aprovados pelo conselho, porque as consultas públicas foram realizadas pelo MEC. A grande diferença dele é que ele é todo virtual, digitalizado”, destaca Suely Menezes, relatora do parecer sobre o novo catálogo no CNE. “O catálogo foi criado em 2008 com uma proposta de atualização a cada dois anos, para que ele estivesse sempre atualizado em relação às demandas da sociedade. Mas a primeira versão só foi renovada quatro anos depois, e dois anos depois em 2014. Levou de 2014 a 2020 para sair a quarta versão. É uma diferença muito grande”, diz a conselheira do CNE.

A proposta aprovada pelo CNE reúne 215 cursos técnicos divididos em 13 eixos tecnológicos. A versão ainda vigente, de 2014, que tem a mesma quantidade de eixos, contava com 227 cursos. Além da redução do número de habilitações presentes no Catálogo, houve também redução na carga horária de algumas delas. No eixo Ambiente e Saúde, por exemplo, o curso técnico em Cuidados de Idosos teve sua carga horária reduzida de 1,2 mil horas para 800, assim como o curso técnico em Imagem Pessoal. Outros cursos que tiveram sua carga horária mínima reduzida foram os de Secretaria Escolar, do eixo tecnológico Desenvolvimento Educacional e Social, que passou de 1,2 mil horas para 800, e o técnico em Administração, do eixo Gestão e Negócios, que passou de mil horas para 800. Por outro lado, vários outros cursos, principalmente no eixo tecnológico Produção Cultural e Design, tiveram a carga horária aumentada. Houve ainda a inclusão de novos cursos no catálogo: no eixo de Ambiente e Saúde, por exemplo, foram incluídos os cursos técnicos em Optometria e Terapias Holísticas, com carga horária mínima de 1,2 mil horas, e em Veterinária, com mil horas. No eixo Desenvolvimento Educacional e Social, houve a inserção do curso técnico em Arquivo, com 1,2 mil horas.


Ampliação da EaD preocupa

“Numa visão mais geral, eu não vejo muitos problemas na atualização do catálogo”, afirma Dante Moura, que integra o GT Trabalho e Educação da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (Anped) e é professor do Instituto Federal do Rio Grande do Norte (IFRN). “Algumas denominações de cursos foram alteradas, assim como a carga horária de alguns cursos. Também houve um movimento interessante de convergência, de agrupar cursos com denominações diferentes pelo Brasil sob uma denominação comum, o que ajuda no trânsito das pessoas de uma formação para a outra”, avalia.

Uma das novidades da nova versão, segundo Suely Menezes, é o “lugar de relevância” dado à modalidade de Educação a Distância (EaD) na oferta de educação profissional. O projeto de resolução aprovado pelo CNE diz em seu artigo 4º que “os cursos técnicos ofertados na modalidade de Educação a Distância, de acordo com seu grau de complexidade e natureza do exercício profissional, devem ter o seu percentual de carga horária presencial definido nos respectivos projetos pedagógicos, consideradas as indicações do Catálogo Nacional de Cursos Técnicos e devidamente aprovados pelos órgãos próprios do respectivo Sistema de Ensino”. A relatora da proposta destaca: “A EaD é uma forma de oferta do ensino médio e do ensino técnico. A gente a coloca como uma possibilidade efetiva de acelerar, de garantir autonomia do nosso aluno, de possibilitar agilidade no processo. A EaD ganha no Catálogo, como ganhou nas novas Diretrizes de Educação Profissional e Tecnológica [aprovadas em maio de 2020 pelo CNE] um lugar de relevância quanto as formas de oferta da educação técnica e profissional”, diz Suely.

Para Dante Moura, no entanto, trata-se de um problema. “O destaque dado à EaD tem a ver com a reforma do ensino médio e com as novas Diretrizes Curriculares para o Ensino Médio e para Educação Profissional. Todas apontam de maneira convergente para a ampliação da oferta de EaD, inclusive nos cursos presenciais. A lei da reforma do ensino médio e as diretrizes apontam fortemente para a lógica da parceria público-privada para oferta de cursos a distância. A tendência é que isso seja abocanhado pela iniciativa privada, e essa oferta é reconhecidamente precarizada, baseada numa lógica de barateamento da formação, que não respeita indicadores mínimos de qualidade”, alerta. E completa: “Outro problema, no aspecto pedagógico, é que esses cursos podem ser inclusive para os estudantes que estão fazendo o ensino médio, que são adolescentes. Uma coisa é EaD para quem já tem uma formação em nível superior e vai fazer uma pós-graduação, essa pessoa já desenvolveu uma autonomia intelectual. Para esse público de adolescentes, fazer essa formação à distância é tirar deles a possibilidade de vivenciar uma dimensão extremamente importante da educação, que é a educação como prática e convívio social”.


Que formação?

Além do artigo 4º, o professor do IFRN alerta também para o texto do artigo 3º do projeto de resolução aprovado pelo CNE, onde se lê que os eixos tecnológicos “poderão ser segmentados em áreas tecnológicas de acordo com as peculiaridades e singularidades técnicas e científicas que caracterizam determinados processos de produção ou de prestação de serviços comuns aos cursos técnicos ofertados”. O risco, segundo Dante, é que isso leve a uma segmentação das formações no sentido de atender às demandas específicas do setor produtivo. “A lógica da divisão do catálogo em eixos é oferecer uma formação mais ampla, onde os cursos se organizam por áreas de conhecimento, para que uma mesma base possa atender a várias áreas. Essa nova versão tensiona isso, e aponta no sentido de voltar a uma lógica anterior à criação do catálogo, com uma divisão dos cursos por áreas, com uma formação mais estreita e específica, o que no fim acaba dificultando que os trabalhadores possam ter uma formação que os permita migrar de um posto de trabalho a outro”, analisa Dante, para quem há um movimento no sentido de desconstruir a lógica da organização dos cursos em torno dos eixos. “Essa tensão aparece de forma mais explícita nas diretrizes curriculares da educação profissional, cujo relatório faz uma dura crítica aos eixos, por eles não estarem supostamente dando conta das demandas do setor produtivo. Isso se reproduz agora, no artigo 3º do projeto de resolução do novo catálogo, que não deixa isso tão explícito, mas aponta nessa direção, se analisado em conjunto com as diretrizes”, afirma o integrante do GT Trabalho e Educação da Anped. E complementa: “A disputa é em torno da concepção de formação humana: o mais ampla possível, o que interessa ao trabalhador, ou uma formação ‘a la carte’, específica, mais barata, o que atende ao capital, ao setor produtivo”.

A reportagem do Portal EPSJV entrou em contato com a assessoria de comunicação do MEC, mas não obteve resposta.


Participação da EPSJV/Fiocruz em pauta

A Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) formou, ainda em abril, um grupo de trabalho para analisar e apresentar propostas ao MEC no processo de discussão sobre a 4ª edição do CNCT. “Para isso indicamos especialistas por cada área de formação, e esses especialistas fizeram as indicações técnicas de normas e legislações para alinhar e tentar adequar cada formação com o processo pedagógico da EPSJV/Fiocruz. Contemplamos 13 ou 14 cursos. Um segundo momento foi de retorno dessas contribuições dos especialistas para elaboração de um documento final para ser apresentado à consulta pública e a partir daí os laboratórios se manifestaram e a Vice-Direção de Ensino também contribuiu”, explica Rafael Bilio, professor-pesquisador da EPSJV/Fiocruz. A principal crítica em relação à proposta vinda do MEC era com relação à retomada, pelo Catálogo, do que diz a resolução 6 de 2012 do MEC, que permite que até 50% do currículo dos cursos técnicos na área da saúde sejam ofertados via EaD. “Existe uma resolução do Conselho Nacional de Saúde que estabelece um máximo de 40% de EaD nos cursos de graduação na saúde. O que nós tentamos fazer foi fazer esse contraponto, mas isso não foi incorporado ao Catálogo. Essa foi, digamos, a principal derrota”, diz Rafael. No sentido oposto, também houve vitórias. “O catálogo nacional tem algumas indicações relacionadas a funções, conhecimentos técnicos e científicos que os egressos precisariam ter. Uma proposta que fizemos e que acabou sendo incorporada foi a de inserir como conteúdo das formações da área de saúde a compreensão das políticas no Sistema Único de Saúde”, aponta o professor-pesquisador da EPSJV/Fiocruz.  

Leandro Medrado, que também integrou o Grupo de Trabalho da EPSJV e participou de reuniões organizadas pela Setec/MEC sobre o tema, avalia que, a despeito da ampliação da modalidade EaD na oferta de cursos técnicos – que também para ele gera apreensão –, o novo catálogo traz alguns pontos positivos para alguns dos cursos técnicos ofertados pela EPSJV/Fiocruz. Um deles foi nas atribuições dos técnicos em Citopatologia. Segundo Leandro, a nova versão do catálogo responde a uma demanda antiga da Escola desde a instituição do Programa de Formação de Profissionais de Nível Médio para a Saúde (Profaps), em 2010. “O que o Profaps fez, a meu ver, de uma forma atropelada, foi incluir atribuições do histotécnico dentro do citotécnico. São profissionais que convivem nos mesmos laboratórios, mas com outro enfoque, com técnicas muito diferentes. Ou seja, um acúmulo de função”, explica o professor-pesquisador da EPSJV/Fiocruz. E completa: “Isso teve um impacto no mercado de trabalho: abriram-se muitos concursos públicos, o técnico ia lá para se inscrever para citopatologia e, quando via, a prática era na histologia. A versão do Catálogo que deram para gente avaliar para publicação superava isso, retirando a referência direta que era feita ao Profaps. Esse é um ponto positivo, algo que reivindicamos há anos”, comemora Leandro. 

Cristina Morel, também professora-pesquisadora da EPSJV/Fiocruz e uma das integrantes do GT, destaca que no caso do Curso Técnico em Agente Comunitário de Saúde (CTACS), a principal proposta da instituição nos debates foi no sentido de restringir a utilização da modalidade EaD nessa formação.  A Escola defendeu que fosse 100% presencial em razão da natureza do trabalho e do perfil socioeconômico do público-alvo do curso. “A partir da nossa participação na discussão, foi possível a retirada da possibilidade do uso da modalidade EaD no CTACS. No entanto, foi mantido no texto o que prevê a legislação do MEC, que permite que até 20% da carga horária do CTACS seja de atividades não presenciais”, explica Cristina. Ela afirma que a EPSJV defendeu que a nova versão do catálogo incorporasse o que dizem as diretrizes para a formação do Curso Técnico em Agente Comunitário de Saúde atualizada em 2020 pela Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde do Ministério da Saúde (SGTES/MS) em relação aos pré-requisitos de acesso. O documento prevê como requisito o ensino médio completo apenas para a última das três etapas da formação. No entanto, a nova versão do Catálogo aprovada pelo CNE prevê a obrigatoriedade do ensino médio completo no caso dos cursos técnicos subsequentes, como é o caso do CTACS. “Esta constatação é preocupante pois, desta forma, pode-se  impedir o ingresso no curso dos ACS aqueles que não têm o ensino médio completo [nas etapas anteriores]”, avalia Cristina.