Os ministérios da Saúde e da Fazenda divulgaram no final de junho uma portaria conjunta regulamentando uma iniciativa pela qual hospitais privados e filantrópicos poderão prestar serviços de Atenção Especializada (AE) ao Sistema Único de Saúde (SUS) em troca do abatimento de dívidas tributárias com a União. A iniciativa integra o programa Agora Tem Especialistas, com o qual o governo federal busca enfrentar um gargalo histórico do sistema público de saúde, que é o tempo de espera por procedimentos como cirurgias, exames e consultas de Atenção Especializada no SUS. Com previsão de vigência até 2030, o programa destinará até R$ 2 bilhões por ano para esse tipo de operação.
Conforme destacou o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, durante a apresentação da portaria, existem atualmente 3,5 mil hospitais privados e filantrópicos inadimplentes com a União, numa dívida que soma R$ 34 bilhões. As instituições cadastradas poderão abater de 30 a 50% do que devem com a prestação de serviços dentro do programa Agora Tem Especialistas, de acordo com o tamanho total de suas dívidas: quanto maior o valor devido, menor o percentual passível de abatimento. Para participarem, as instituições interessadas deverão realizar um cadastro em um sistema disponibilizado pelos dois ministérios e informar os serviços que podem oferecer, em pacotes de até R$ 50 mil no caso de cidades de pequeno porte e R$ 100 mil nas de médio e grande porte. São seis áreas prioritárias: oncologia, ginecologia, cardiologia, ortopedia, oftalmologia e otorrinolaringologia. Segundo o ministro da Saúde Alexandre Padilha, as instituições serão remuneradas por uma tabela – ainda não divulgada - cujos valores por serviço deverão ser de 50 a 100% maiores do que os da tabela SUS.
Medida emergencial ou permanente?
Para o diretor executivo da Associação Nacional dos Hospitais Privados (Anahp) Antônio Britto, o programa foi “bem pensado”. Sua expectativa é que haja uma boa adesão pelas instituições da rede. “Ele permite o exercício de uma tese que a gente sempre defendeu, que é uma maior parceria entre hospitais privados e o SUS”, afirma Britto, que espera um impacto maior nas regiões com maior concentração de equipamentos de saúde privados e filantrópicos da Atenção Especializada. “Há muito mais possibilidade de que em uma cidade como São Paulo sejam oferecidos mais serviços do que em locais como a Amazônia, no Nordeste, onde há menos disponibilidade em relação à necessidade do SUS na Atenção Especializada”, diz o diretor executivo da Anahp. Embora o mecanismo de concessão de créditos tributários aos hospitais privados e filantrópicos inadimplentes tenha prazo para terminar em 2030, o diretor executivo projeta que, caso bem executado, o programa seja uma iniciativa permanente. “Com a falta de dinheiro que existe para a saúde, nunca o SUS vai poder atender a todos, para tudo, em todos os lugares. Então a parceria com a iniciativa privada eu tenho a impressão de que vem para sempre”.
Já para a Rede Nacional de Médicas e Médicos Populares (RNMP) e a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), a iniciativa é bem-vinda em caráter emergencial como forma de dar uma resposta rápida ao problema da falta de acesso a atenção especializada no SUS, mas não pode ser vista como uma solução permanente. “Medidas de curto prazo precisam estar combinadas a ações estruturantes para o fortalecimento de um SUS público e estatal. Entendemos que a contratualização do SUS com o setor privado para o pagamento de dívidas por meio de serviços prestados à população pode ser uma medida interessante”, afirma a nota da RNMP, que continua: “No entanto, a médio e longo prazo, entendemos ser necessário o fortalecimento e a expansão de serviços próprios do SUS sob gestão pública de modo a não aprofundar um processo histórico de privatização e de articulação público-privada do sistema”, defende o documento. A Rede chamou atenção ainda para a governança “historicamente frágil” do SUS sobre a contratualização de serviços privados. “É necessária atenção redobrada para que a implementação do programa respeite os princípios do SUS [...] Precisamos estar vigilantes para que clientes de planos de saúde, de serviços privados e usuários do SUS não sejam tratados de forma desigual dentro dos mesmos serviços”, escreve a entidade.
A nota da Abrasco também chama atenção para a necessidade de construção de mecanismos sólidos de prevenção de que o atendimento a pacientes do SUS seja de pior qualidade que os ofertados aos pacientes privados. A associação expressa ainda preocupação com o que chama de “risco” para o desenvolvimento do programa, uma vez que, segundo a entidade, o modelo de pagamento por serviços prestados adotado pelo governo federal “não permite um controle capaz de defender o setor público de abusos e, inclusive, de malfeitos realizados pelo setor privado”. “Por fim, é preciso que essas iniciativas que vigorarão até 2030 não se constituam em obstáculo para o fortalecimento da rede própria de atenção especializada já constituída no SUS”, defende a associação.
Vice-presidente da Abrasco, a pesquisadora da Universidade Federal do Ceará (UFC) Carmem Leitão argumenta que a atenção especializada foi sempre tratada de forma “secundária” dentro do SUS. Tanto que a primeira Política Nacional de Atenção Especializada em Saúde (PNAES) no âmbito do SUS foi instituída só em 2023. “Então o acesso a consultas, exames, a alguns tipos de cirurgias e de especialidades é um problema, que foi agravado durante a pandemia. E o Ministério tem todo o mérito de tentar encontrar alternativas para resolver esse problema”, destaca. Ela ressalta que há uma grande desigualdade na distribuição desse tipo de serviço no país, que vem de antes do SUS. “Tradicionalmente, há uma concentração desse tipo de serviço nas grandes capitais, nas grandes cidades. Especialmente na Região Sudeste e no setor privado, que concentra grande parte dessa oferta. Então, se você tem que resolver isso em curto prazo ou dar alguma resposta à população rapidamente, é preciso fazer algum tipo de articulação com o setor privado”, pondera. E continua: “Agora, estamos falando de agentes econômicos que trabalham na perspectiva da maximização de interesses econômicos, maximização dos lucros. Fazer com que o setor privado aja na perspectiva do interesse público vai exigir do Estado brasileiro uma capacidade de regulação muito boa”. Isso envolve, segundo ela, uma “dimensão política”, mas também uma dimensão “gerencial”. “E isso passa por alguns dispositivos que eles estão nos propondo no programa Agora Tem Especialistas para construção de governança, que inclui os vários atores envolvidos, entre eles o setor privado. Há um comitê de acompanhamento do programa que tem representantes do Ministério da Saúde, do Conass [Conselho Nacional de Secretários de Saúde] e Conasems [Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde]. Mas também tem muitos representantes do setor privado. É um espaço de negociação importante, que precisa ser monitorado com atenção”, diz a pesquisadora.
Proposta “robusta”
Carmem destaca que, para além do mecanismo de concessão de créditos tributários ao setor privado, que tem prazo para terminar em 2030, o Agora Tem Especialistas traz outras iniciativas com potencial de operar mudanças estruturantes no SUS, principalmente via o fortalecimento da Atenção Primária à Saúde – porta de entrada e ordenadora do cuidado no SUS - e sua integração com a Atenção Especializada. O Agora Tem Especialistas prevê, por exemplo, um investimento de R$ 1,5 bilhão na compra de equipamentos para as unidades básicas de saúde através do Novo PAC da Saúde, lançado pelo governo em 2023 com o objetivo de investir cerca de R$ 30 bilhões na infraestrutura do SUS até 2026. Também pelo Novo PAC da Saúde estão previstos investimentos em equipamentos para ampliação da Telessaúde nas unidades básicas, que o governo espera que impactem na redução das filas por consultas e diagnósticos. “É preciso garantir o atendimento necessário no tempo correto. Para isso é preciso uma capacidade gerencial maior. Há essa dificuldade de integração, de fato, da Atenção Primária com a Atenção Especializada. A proposta do Agora exige dos gestores municipais e estaduais uma maior qualificação de suas práticas gerenciais e regulatórias e reforça a perspectiva de integração dos sistemas de informação entre os territórios e os níveis de atenção”, completa Carmem.
Segundo a pesquisadora, a proposta do programa, com medidas conjunturais – como a concessão de créditos tributários ao setor privado em troca de serviços - e também estruturais é “robusta”, e “ousada”, principalmente tendo em vista uma “conjuntura bastante crítica na perspectiva política”. “Temos um Congresso e uma elite contrários a ideia de políticas sociais, de um Estado provedor, capaz de atender as necessidades da nossa população, especialmente aqueles que mais precisam”, lamenta Carmem. Uma disputa que marca a história do SUS e que deixou suas marcas, como mostram as fragilidades históricas do sistema, entre elas o acesso à Atenção Especializada. “Essa é uma questão atrelada ao subfinanciamento do setor público que é crônico há décadas. Isso sempre foi grande obstáculo para o desenvolvimento do SUS. Mas ainda fazemos muito com um recurso que é inadequado para um sistema universal, gratuito e integral. Esse investimento trazido pelo programa é importante. Mas é preciso mais recursos para enfrentar os desafios trazidos pelo subfinanciamento crônico do SUS”, conclui Carmem.