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Proposta de reforma tributária divide opiniões

Governo enfrenta oposição do empresariado, que critica medidas como a tributação de lucros e dividendos, enquanto representantes de servidores da Receita Federal cobram propostas mais efetivas para reverter a regressividade do sistema tributário brasileiro
André Antunes - EPSJV/Fiocruz | 09/07/2021 12h46 - Atualizado em 01/07/2022 09h42

A proposta de reforma tributária apresentada pelo governo federal ao Congresso no final de junho vem dividindo opiniões. De um lado está o empresariado: na quarta-feira (07), uma carta assinada por 120 entidades empresariais foi enviada ao presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, na qual os empresários expressaram descontentamento com a maneira como o Congresso e o governo estão conduzindo o debate sobre a reforma. Eles criticaram o fato de a reforma estar tramitando apressadamente e alertaram para o risco de “erros graves”. Deu certo: na quinta-feira (08) o ministro da Economia Paulo Guedes se reuniu com empresários de diversos setores em São Paulo e prometeu mudanças na proposta, acenando com a possibilidade de uma redução no Imposto de Renda de Pessoas Jurídicas (IRPJ).

Por outro lado, representantes de servidores da Receita como a Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal (Anfip) cobram mudanças mais profundas no sistema tributário brasileiro, considerado altamente regressivo, uma vez que a maior parte dos tributos recai sobre o consumo, e não sobre a renda e o patrimônio, fazendo com que os mais pobres comprometam mais da sua renda com impostos do que os mais ricos.


Propostas

Trata-se da segunda fase da reforma prometida pelo ministro da Economia Paulo Guedes, que segmentou em duas a proposta: no ano passado, o governo apresentou ao Congresso o projeto de lei 3.887/2020, que criou a Contribuição sobre Bens e Serviços, unificando o PIS/PASEP (Programas de Integração Social e de Formação do Patrimônio do Servidor Público) e a Cofins (Contribuição para Financiamento da Seguridade Social), contribuições cobradas sobre a folha de pagamento e o faturamento de empresas privadas, que financiam principalmente o Sistema Único de Saúde (SUS) e o pagamento do seguro-desemprego. 

O PL 2.337/2021, por sua vez, apresentado à Câmara dos Deputados no dia 25 de junho, trata da segunda parte da reforma, e tem entre suas principais propostas a criação de um tributo sobre lucros e dividendos distribuídos aos sócios e acionistas de empresas. São recursos isentos de tributação desde 1996, quando foi aprovada a lei 9.064/96. O Brasil é um dos únicos países do mundo a isentar de tributos esses rendimentos.

Pela proposta do governo federal, seria criada uma alíquota de 20% sobre esses rendimentos, mas permaneceriam isentos os lucros e dividendos distribuídos por micro e pequenas empresas optantes pelo Simples Nacional, com limite máximo de R$ 20 mil por mês. Por outro lado, o PL 2.337/21 prevê uma redução na alíquota do Imposto de Renda de Pessoa Jurídica (IRPJ), de 15% para 12,5% em 2022 e 10% em 2023, com um adicional de 10% sobre lucros acima de R$ 20 mil. 

Do lado dos trabalhadores assalariados, as principais mudanças trazidas pela proposta do governo federal foram a atualização dos valores da tabela progressiva do Imposto de Renda Pessoa Física (IRPF) e a restrição a possibilidade de optar pela declaração no formato de desconto simplificado, que ficaria restrita apenas aos contribuintes que declararem rendimentos de no máximo R$ 40 mil ao ano.

Pela nova tabela do IRPF, ficariam isentos de tributação contribuintes que recebam até R$ 2,5 mil por mês. Atualmente, esse valor é de R$ 1.903,98. Assim, como a tabela atual, a proposta prevê alíquotas progressivas de 7,5%, 15%, 22,5% e 27,5%, mas atualiza as faixas salariais referentes a cada alíquota. Sobre os contribuintes que recebem entre R$ 2,5 mil e R$ 3,2 mil incidira a alíquota de 7,5% (atualmente ela abrange quem ganha entre R$ 1.903,99 e R$ 2.826,65); quem ganha entre R$ 3,2 mil e R$ 4.250 pagaria alíquota de 15% (atualmente ela é cobrada sobre quem ganha R$ 2.826,66 e R$ 3.751,05); a alíquota de 22,5% incidiria sobre os contribuintes com salários entre R$ 4.250 e R$ 5.300 (a tabela atual varia entre R$ 3.751,06 e R$ 4.664,68); por fim, os contribuintes com salários maiores que R$ 5.300 pagariam alíquota de 27,5% sobre seus rendimentos (atualmente esse valor incide sobre quem ganha acima de R$ 4.664,68).


Para pesquisador do Ipea, propostas apontam na direção certa

Para Rodrigo Orair, pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e especialista na questão tributária, apesar das críticas do empresariado, a proposta “caminha na direção certa”, mas precisa de ajustes. “Quando você olha os dados das declarações de imposto de renda, é uma coisa assustadora: quando você chega no um milésimo mais rico do Brasil, quase dois terços da sua renda é isenta de imposto de renda de pessoa física. O brasileiro mais rico em 2019 recebeu uma renda - não é riqueza, não é patrimônio - de R$1.365 bilhão, dos quais R$ 1,1 bilhão é isento no nível da pessoa física. Você não lida com a questão de equidade tributária no Brasil se você não lidar com esse tema”, destaca Orair. Ele vê com bons olhos o estabelecimento de uma tributação sobre os lucros e dividendos, assim como outras medidas previstas pelo PL 3.227/2021 para fechar o que ele chama de “brechas de planejamento tributário”.  “No Brasil há uma diferença muito grande entre o chamado lucro contábil e o lucro fiscal. Então, um banco, por exemplo, o balanço dele na Bolsa aparece com lucros enormes, com distribuição enorme de dividendos para os acionistas, mas quando você vai ver o lucro dele para fins fiscais, que é onde calcula o imposto, é bem menor. Quer dizer, não é todo lucro que está sendo tributado. Uma das razões para isso é que você tem deduções, como a dedução de juros sobre capital próprio, você tem exclusões de base de cálculo, tem uma série de práticas que fazem com que o lucro para fins tributáveis seja muito menor que o lucro de fato da empresa”, explica Orair, e completa: “Então o que você faz? Fecha porta para planejamento tributário, fecha as brechas, elimina as deduções. Nesse sentido, essa reforma caminha na direção certa, para o que vem sendo feito em vários países do mundo”.

Segundo ele, além de tratar de maneira mais equânime aqueles que recebem renda do capital e quem recebe renda do trabalho, a proposta de tributar os acionistas de empresas no nível da pessoa física, com a criação da alíquota de 20% sobre lucros e dividendos, fechar brechas tributárias e, ao mesmo tempo, reduzir a alíquota cobrada do IRPJ, tende a gerar impactos macroeconômicos positivos. “Quando eu tributo o dividendo, eu tiro um pouco do incentivo a distribuir demais. O lucro que fica no cofre da empresa tem uma tendência maior a ser reinvestido, virar investimento. E é uma questão de equidade também. Não é certo que a tributação sobre o lucro é, de fato, uma tributação sobre o acionista. A empresa pode passar o imposto para o consumidor via preço, ou para o trabalhador, via custo da mão de obra. Quando você tributa o lucro, você tem a chance de não estar tributando a renda do acionista. Quando você tributa no nível da pessoa física, aí você é mais certeiro no alvo”, avalia.

Por outro lado, o pesquisador ressalta que as propostas, ainda que bem-vindas, não avançam no sentido de reverter a regressividade do sistema tributário, que onera muito mais o consumo. “É uma reforma que só trata da renda. Isso é importante ressaltar, o Brasil tem uma carga tributária relativamente alta para um país emergente, um pouquinho abaixo de um país da OCDE hoje, em torno de 32%. Mas nós somos um dos países que mais tributa bens e serviços, que mais tributa consumo no mundo. O que essa reforma faz nesse ponto de vista? Nada”, destaca Orair.


Regressividade inalterada?

É nesse sentido que aponta a avaliação de Vilson Romero, ex-presidente e atualmente coordenador de estudos socioeconômicos da Anfip, sobre reforma. “Há cerca de quatro anos a Anfip deu início a um projeto chamado Reforma Tributária Solidária, coordenada por especialistas da Unicamp, do Dieese, entre outros organismos com estudos muito importantes e temos um diagnóstico sobre o sistema tributário brasileiro em que se constata a exagerada tributação do consumo e a reduzida tributação do capital e da renda. Por isso temos defendido a necessidade de se eliminar essa regressividade de forma paulatina.  Quem tem que ser protagonista dessa matéria é o governo federal, mas o que se viu até hoje é um fatiamento quase que inócuo, porque não resolve as questões acerca da regressividade, não resolve a questão da tributação excessiva do consumo”, critica Romero.

Ele argumenta que ainda que positiva, a atualização da tabela do IRPF não é suficiente para corrigir as distorções que hoje existem no modelo de tributação sobre os contribuintes assalariados. “As entidades de classe dos auditores revelam que a tabela ela está defasada desde 2016, por 113%. O governo corrige na base, ou seja, na isenção, em 31%, e no topo, no percentual de 27,5%, em somente 13%. Ou seja, atinge diretamente a classe média, que tem renda registrada, em especial, o assalariado, que é, de fato, quem sustenta a maior parte da arrecadação tributária brasileira no que diz respeito a imposto de renda de pessoa física”, aponta. E completa: “Nem pode ser chamada de reforma tributária. É mais um dos tantos remendos que ao longo do tempo tem acontecido. Nos últimos 30 anos se discute a mudança na estrutura tributária brasileira e nunca se avança para ter um projeto global e amplo. Eu acho que nós temos que ter um pouco mais de profundidade nesse debate, porque, efetivamente, não estamos indo na direção daquilo que a Anfip e as entidades fiscais de todo o Brasil defendem, que é termos, de fato, justiça fiscal, uma reforma tributária solidária que permitiria, inclusive, a melhor redistribuição de renda e redução da desigualdade social no Brasil”.