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Punir mais: solução?

Medidas para crianças e adolescentes em conflito com a lei polarizam debates sobre o ECA
Leila Leal - EPSJV/Fiocruz | 09/11/2010 09h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h44

 Hoje, 20 anos depois da aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), suas definições a respeito de crianças e adolescentes em conflito com a lei têm sido tema de intensos debates na sociedade. O crescimento da violência no país nas últimas décadas é base para questionamentos à inimputabilidade penal aos menores de 18 anos e a outras definições do ECA, frequentemente apontadas como ‘proteção a infratores’. Sempre que um ato de violência praticado por adolescentes vem à tona na sociedade, ressurgem, com mais força, as propostas de redução da maioridade penal e endurecimento das penas aplicadas aos menores de 18 anos.

A legislação baseia-se nos princípios aprovados pela Constituição Federal de 1988, a partir dos quais crianças e adolescentes passaram a ser reconhecidos como sujeitos de direito. Pode parecer óbvio, mas essa definição rompeu com anos de culpabilização das próprias crianças e adolescentes por suas condições precárias de vida, e estabeleceu que a garantia de todos os direitos a eles assegurados é responsabilidade do Estado, da família, da comunidade e da sociedade em geral.

Crianças e adolescentes passaram a ser  compreendidos em sua condição de pessoas em desenvolvimento. Essa particularidade determinou, entre outras coisas, o caráter dos procedimentos estabelecidos pela Constituição em relação aos jovens que cometem atos infracionais e, também, a inimputabilidade penal dos menores de 18 anos. Não podendo responder penalmente por seus atos, crianças e adolescentes passaram a estar sujeitos às normas de uma legislação especial.

A instituição do Estatuto, dois anos depois, aprofundou e regulamentou as definições da Constituição, a partir da chamada doutrina da proteção integral. No caso das crianças e adolescentes em conflito com a lei, essa doutrina rompeu com a lógica até então vigente – de “encarceramento” dessa população em abrigos e retirada do convívio social – e propôs a priorização de medidas de prevenção à prática de atos infracionais. Para os casos em que houvesse de fato infração, propunham-se medidas socioeducativas para a responsabilização das crianças e adolescentes envolvidos.

A partir dessas definições, o ECA é frequentemente atacado e caracterizado como uma legislação que não serviria para um país como o Brasil, com altos índices de criminalidade. Mas, afinal: o aumento da punição é um caminho para diminuir a violência? É possível discutir o assunto separadamente das demais determinações do Estatuto? E o que propõe o ECA para crianças e adolescentes que tenham cometido atos infracionais?

Responsabilização

“Há muitas informações equivocadas. Um dos mitos que ainda existem hoje, 20 anos depois da aprovação do Estatuto, é o de que ele seria a porta aberta para a impunidade. De maneira nenhuma: a proposta do ECA é a de responsabilização, que deve ser  socioeducativa e, por isso, é muito mais adequada do que a responsabilização penal. Ela se diferencia porque aposta concretamente na recuperação dos adolescentes”. A afirmação é de Murillo Digiácomo, promotor do Ministério Público do Paraná e integrante do Centro de Apoio Operacional das Promotorias da Criança e do Adolescente daquele estado. Segundo ele, a compreensão que orienta a inimputabilidade penal àqueles que têm até 17 anos é a de que, até essa idade, não há completo desenvolvimento dos indivíduos dos pontos de vista emocional, moral, educacional e outros, que permitiriam que não se envolvessem com a prática de infrações.

No que se refere às medidas de proteção, o ECA determina que elas podem ser aplicadas sempre que os direitos reconhecidos pela lei forem ameaçados ou violados por ação ou omissão da sociedade ou do Estado; por falta, omissão ou abuso dos pais ou responsável; ou, ainda, pela conduta da criança ou adolescente. Segundo o Estatuto, diante de qualquer uma dessas hipóteses, a autoridade competente poderá determinar medidas como o encaminhamento da criança ou adolescente aos pais ou responsável; a orientação, apoio e acompanhamento temporários; a matrícula e frequência obrigatórias em estabelecimento de ensino fundamental; a inclusão em programa comunitário ou oficial de auxílio à família, à criança ou adolescente; a requisição de tratamento médico, psicológico ou psiquiátrico; a inclusão em programa oficial ou comunitário de orientação e tratamento a alcoólatras ou dependentes químicos; o abrigo provisório em entidades, como transição para uma família substituta, ou a colocação imediata em família substituta.

Essas medidas também podem ser aplicadas para crianças (pessoas de até 12 anos incompletos, segundo o ECA) que cometerem atos infracionais – condutas descritas como crimes ou contravenções penais. No caso dos adolescentes (indivíduos de 12 anos  completos até 18 anos de idade) em conflito com a lei, podem ser aplicados diferentes tipos de medidas socioeducativas: a advertência; a obrigação de reparar o dano; a prestação de serviços à comunidade; a liberdade assistida; a inserção em regime de semiliberdade ou a internação em estabelecimentos educacionais.

No ECA há, ainda, determinações específicas para cada tipo de medida socioeducativa. A prestação de serviços à comunidade, por exemplo, deve ser realizada junto a entidades assistenciais, hospitais, escolas, programas comunitários ou governamentais, e não pode ultrapassar o período de seis meses. Já a liberdade assistida, que tem prazo mínimo de seis meses, pode ser prorrogada, revogada ou substituída por outra medida. Durante esse período, o orientador deve acompanhar não só o adolescente, mas também a sua família e, se necessário, inseri-los em programas de assistência social. Deve, também, acompanhar a freqüência e aproveitamento escolar do adolescente e orientar, segundo o ECA, sua ‘inserção no mercado de trabalho’.

O regime de semiliberdade, que pode ser determinado como primeira medida ou como uma transição para o meio aberto, garante aos adolescentes a realização de atividades externas e obriga sua escolarização e profissionalização. Já a internação é uma medida privativa à liberdade e, por isso, considerada uma excepcionalidade. Deve ser aplicada  provisoriamente, antes da sentença do juiz sobre a medida que o adolescente irá cumprir (nesse caso, por um período máximo de 45 dias), ou quando adolescentes cometerem ato infracional com grave ameaça ou violência, repetirem infrações graves ou descumprirem medidas anteriormente impostas. Adolescentes podem ficar internados por um período máximo de três anos, e a internação deve ser cumprida em entidade exclusiva, com separação por critérios de idade, composição física e gravidade da infração. O ECA obriga que, durante o período de internação, mesmo provisória, o adolescente participe de atividades pedagógicas.


Como reduzir a violência?

Grande parte das críticas à inimputabilidade penal aos menores de 18 anos e às medidas socioeducativas previstas pelo ECA baseia-se nos exemplos de casos de violência praticados por adolescentes. No artigo ‘Pela redução da maioridade penal’, publicado no site do Centro de Apoio Operacional das Promotorias da Criança e do Adolescente, João Kopytowski, desembargador do Tribunal de Justiça do Paraná, defende a redução da maioridade penal para 16 anos como a mais importante medida a ser tomada diante do atual quadro de violência no Brasil: “O adolescente de hoje não é mais o mesmo de antigamente, quando foi contemplado pelo Código Penal, porque as informações e aprendizados, positivos e/ou negativos, chegam-lhe mais precocemente”, argumenta. O Código Penal brasileiro é de 1940, e previu a maioridade penal aos 18 anos.

Como a Constituição Federal institui essa mesma idade para a responsabilização penal, a sua redução só poderia acontecer através da alteração da Carta Magna. Há, no entanto, quem diga que essa é uma cláusula pétrea da Constituição, e não pode ser modificada. Mas o desembargador defende sua alteração: “Já existem projetos específicos ‘dormindo’ no Congresso Nacional e sendo ‘acordados’ pelo clamor público”, diz. Na Câmara dos Deputados, três diferentes propostas tramitam hoje em conjunto ao Projeto de Decreto Legislativo 1002/2003, de autoria do ex- deputado Robson Tuma. O projeto propõe a realização de um plebiscito para consulta popular sobre a redução ou não da maioridade penal no Brasil. Com voto contrário de seu relator, a proposta está pronta para ser enviada ao Plenário. Já no Senado, tramitam juntas seis Propostas de Emenda à Constituição (PECs), apensadas à PEC 20/1999, de autoria do ex-deputado José Roberto Arruda. A proposta altera a Constituição para reduzir a maioridade penal para os 16 anos. Com voto favorável do relator, a proposta também pode ser votada em plenário.

Para João Kopytowski, a opinião pública é “clara e indiscutivelmente favorável” às medidas. O desembargador aponta que aqueles que são contrários argumentam que a redução não resolverá o problema da violência, mas sugerem soluções sociais “que não trazem benefícios certos e imediatos”. Ele completa: “A redução da maioridade penal não acabará com a violência. Mas ajudará bastante, com certeza. Então, que se cumpra a vontade soberana do povo, o qual exige, precisa e merece segurança, justiça e respeito”, diz em seu artigo.

Já o promotor Murillo Digiácomo é contra a redução. Segundo ele, diante do constante argumento de que o ECA, com a doutrina da proteção integral, seria responsável pela violência praticada por adolescentes no Brasil, é preciso pensar justamente o contrário: “É o descumprimento do Estatuto  a principal causa da violência no nosso país. Se a lei fosse  cumprida por parte dos governantes, se as crianças e adolescentes tivessem todos os seus direitos garantidos, certamente haveria uma redução significativa dos índices de violência no Brasil”, defende. Ele aponta,  ainda, que a história recente do Brasil demonstra que o aumento da pena não reduz a violência: “Há 20 anos, se dizia a mesma coisa sobre a chamada ‘lei dos crimes hediondos’: ela iria acabar com os crimes violentos no Brasil porque previa uma pena muito maior para os autores desses crimes. Bem, a lei foi promulgada há 20 anos e a prática de crimes hediondos não diminuiu – pelo contrário, aumentou”, diz.

O promotor defende a implementação efetiva do ECA, com foco na garantia do direito à educação e na recuperação dos jovens. “Não deixa de ser uma incoerência o poder público se omitir por um lado – no que diz respeito à prevenção, proteção, ao cumprimento dos seus deveres e à garantia dos direitos das crianças e adolescentes – e, por outro, propor a redução da maioridade penal.

O problema da violência tem suas origens justamente na omissão do poder público”,  pondera. A posição é compartilhada por Daniel Duarte, assistente social de uma unidade de internação do Departamento Geral de Ações Socioeducativas, órgão vinculado à Secretaria de Estado de Educação do Rio de Janeiro. Daniel destaca que a proposta da redução da maioridade penal parte de um princípio equivocado – o de que os adolescentes seriam os maiores autores de violência no Brasil: “O que acaba ficando velado é o aumento dos crimes cometidos contra as crianças e adolescentes. Isso acontece desde o  negligenciamento de seus direitos fundamentais – previstos na Declaração dos Direitos Humanos, na Constituição Federal e no ECA - até os crimes causados por ações violentas em suas diversas formas”, diz. E aponta: “A intenção é aumentar a punição aos jovens, o que vitima novamente quem sofreu com a exclusão social de forma mais perversa.

É difícil se discutir a redução da maioridade penal enquanto não se discute, por exemplo, a penalização dos atores sociais que negligenciam o cuidado no desenvolvimento das crianças e adolescentes”. Dados apresentados na cartilha do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente do Ceará confirmam: todos os dias, são assassinadas 50 pessoas entre 15 e 24 anos no Brasil. Desses, 85% são negros e 94% são homens. Esses dados, segundo a cartilha, colocam o Brasil em segundo lugar no ranking mundial de mortes violentas de jovens.


Medidas socioeducativas: um balanço

Apontadas como a principal alternativa formulada pelo ECA à lógica da punição e do encarceramento de crianças e adolescentes, as medidas socioeducativas encontraram uma maior estruturação através de políticas públicas a partir de 2006. Quando comemoravam-se os 16 anos de implementação do ECA, foi instituído o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase), considerado um marco no setor. Karyna Sposato, professora de direito penal da Universidade Tiradentes e membro do Conselho de Coordenação do Instituto Latino Americano das Nações Unidas para Prevenção do Delito e Tratamento do Delinquente (Ilanud), concorda: “O Sinase marcou a organização de princípios, recomendações e parâmetros de uma forma que não existia até então, delimitando as competências e as atribuições dos estados, municípios, sociedade civil, Organizações Não Gorvernamentais (ONGs), etc. É um grande marco para a implementação do ECA”, comemora.

No entanto, a professora lembra que ainda há debilidades. “Há espaços de frágil implementação das políticas. Um deles é o fato de as medidas socioeducativas ainda serem impostas pelo poder judiciário. Há, também, uma carência nos programas desenvolvidos em meio aberto. Não são todas as cidades que têm programas de medidas socioeducativas desse tipo, como liberdade assistida e prestação de serviço à comunidade. Muitas vezes, diante dessa inexistência dos programas, os juízes acabam aplicando as medidas mais severas e levando à internação”, lamenta. Murillo Digiácomo concorda: “O sistema socioeducativo não tem, especialmente em âmbito municipal, uma estruturação adequada. Não podemos mais conviver com amadorismo. Nossos problemas são complexos e precisam de profissionais cada vez mais qualificados para atender a esse tipo de demanda. Os municípios precisam investir na contratação e na qualificação de pessoal, em programas e políticas públicas. Isso não pode ficar ao cargo das ONGs, o Estado tem assumir a responsabilidade” sugere.

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