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Rede federal interioriza o Ensino Profissional e Técnico

Censo Escolar de 2023 mostrou que a Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica é responsável pela maior oferta de matrículas dessa modalidade na zona rural brasileira
Paulo Schueler - EPSJV/Fiocruz | 03/06/2024 14h18 - Atualizado em 05/06/2024 08h13
Foto: Acervo do campus Rural de Marabá - IFPA

Os números vieram à tona com a divulgação dos primeiros resultados do Censo Escolar da Educação Básica 2023: a Rede Federal de ensino detém o menor percentual de participação das matrículas da Educação Profissional em áreas urbanas do país, com 12,4%. Em situação diametralmente oposta, ela lidera a oferta de vagas em áreas rurais, com 34,1% das matrículas. De acordo com o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), das 144.796 matrículas existentes em Educação Profissional em áreas rurais no ano passado, 49.467 estavam na Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica (EPTC). “Com a criação dos Institutos Federais, a oferta de Educação Profissional se expandiu e se interiorizou. Nas áreas urbanas, há presença mais forte do setor privado, Sistema S e redes estaduais, por isso a oferta da rede federal fica mais diluída nestes espaços”, explica Marcelo Bregagnoli, secretário de Educação Profissional e Tecnológica do Ministério da Educação (Setec/MEC).

A Rede Federal de EPT está capilarizada em 603 campi de Institutos Federais distribuídos por 566 municípios. Em março, em cerimônia que contou com participação do presidente Lula, o governo anunciou a criação de mais 100 Institutos Federais. O MEC informou na ocasião que essa nova expansão fará a Rede chegar ao total de 659 municípios.

Para o secretário do MEC, a interiorização da Rede EPTC responde ao desafio de democratizar o acesso à Educação Profissional pública gratuita e de qualidade a mais brasileiros, para além dos grandes centros urbanos. “Os campi de Institutos Federais são transformadores de vidas, abrindo oportunidades de emprego e renda para jovens e adultos, mas também contribuem para o desenvolvimento local e regional. A oferta de Educação Profissional deve chegar ao maior número de localidades possíveis. A demanda por formação técnica no Brasil é expressiva e ainda estamos muito longe das metas estabelecidas no Plano Nacional de Educação e dos índices alcançados por países da OCDE [Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico]”, diz.

Quando esta edição da Poli foi fechada, Bregagnoli afirmava que o processo de escolha e posterior cessão dos terrenos dos municípios para a União para instalação dos novos IFs “estava em curso” e apenas após esta fase seria possível saber o quantitativo exato desses campi que serão instalados em áreas rurais. O reitor do Instituto Federal de Minas Gerais (IFMG) e integrante da Câmara de Temática de Educação no Campo (Forcampo) do Conselho Nacional das Instituições da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica (Conif) antecipou, entretanto, que no IF do Norte de Minas Gerais será criado o campus Quilombo, no Vale do Jequitinhonha. Segundo ele, a prefeitura local já colocou um terreno de dez hectares à disposição do IFNMG. Bastos cita ainda que o IF Goiás está em tratativa similar, para atender à população do quilombo Kalunga, um dos maiores da América Latina e cuja área se estende por três municípios: Monte Alegre de Goiás, Cavalcante e Teresina de Goiás, todos situados na Chapada dos Veadeiros. “Estamos nessa fase de negociação junto ao MEC. A distribuição dessas novas 100 [unidades] precisa considerar o atendimento dos arranjos produtivos locais”, defende.

Critérios em debate

De acordo com a portaria do MEC nº 713/2021, que estabelece as diretrizes para a organização das instituições que compõem a Rede EPTC, há 119 campi agrícolas localizados em todas as regiões no Brasil: 22 dos 73 (30,1%) campi existentes na região Norte são agrícolas, bem como 17 dos 67 (25,4%) no Centro-Oeste, 21 de 106 (19,8%) no Sul 37 de 196 (18,9%) no Nordeste e 22 de 149 campi (14,8%) no Sudeste.

Por deliberação da direção da Conif, entretanto, o Forcampo prepara um projeto para reformulação dos critérios de identificação do que é, de fato, um campus agrícola. Válida atualmente, a Nota Técnica 57/2016/CGDP/DDR/SETEC identifica como agrícolas as unidades que oferecem o curso técnico em agropecuária, agricultura ou zootecnia e possuem fazenda agrícola com unidades de ensino, produção e pesquisa animal e vegetal. O Fórum sugere que sejam considerados critérios como “atendimento às populações do campo e aos povos indígenas” e “possuir moradia e/ou residência estudantil”.

De acordo com Bastos, a importância da designação vai além da mera troca de uma palavra. “Um campus agrícola tem um custo de funcionamento maior, funciona de segunda a segunda em sua estrutura de restaurante e de alojamento”, cita. Além disso, essas unidades possuem estudos com animais, que também demandam atendimento diário. “Durante a pandemia, os campi agrícolas não puderam fechar”, exemplifica o reitor do IFMG.

Para além disso, um levantamento consolidado pelo Forcampo em 2018 apontava que 271 campi da Rede Federal ofertavam cursos no eixo tecnológico de Recursos Naturais, previsto no Catálogo Nacional de Cursos Técnicos, sendo 213 no subeixo agrícola. Bregagnoli também cita esses números para indicar que, “em relação à totalidade da Rede Federal, pode-se afirmar que 33% das unidades apresentam características ‘agrícolas’ ”.

Ao mesmo tempo, corroborando a preocupação do reitor do IFMG sobre a importância de um correto dimensionamento de alojamentos e demais infraestruturas para os campi rurais, o titular da Setec/MEC aponta a necessidade de “olhar a oferta de cursos não apenas pela sua localização física, mas pelas populações que atende”. “Cerca de 85% das unidades da Rede Federal situam-se em pequenas e médias cidades, portanto atuam próximo aos povos do campo”, atesta.

Além de buscar a reformulação dos critérios que credenciam um campus como rural, Bastos e seus colegas de Forcampo estão debruçados em fazer um diagnóstico do ensino agrícola na Rede Federal. Ele aponta a dificuldade de o cidadão comum obter dados sobre a modalidade na plataforma Nilo Peçanha [ambiente virtual de coleta, validação e disseminação das estatísticas oficiais da Rede EPTC] como exemplo da necessidade de, em suas palavras, “remapear o ensino agrícola”. “A ideia é estruturar um local com os dados dos campi agrícola [na plataforma], porque hoje não existem indicadores precisos. A gente fez alguns levantamentos dentro do Forcampo, mas precisamos que isso esteja na Nilo Peçanha”, sugere o reitor.

Retomada político-pedagógica

O único documento balizador da concepção pedagógica dos Institutos Federais em relação ao ensino agrícola foi produzido meses após a criação da Rede EPTC, em 2009, como resultado do Seminário Nacional do Ensino Agrícola da Rede Federal de Educação Profissional e Tecnológica, realizado no ano anterior. Trata-se do relatório ‘(Re)significação do Ensino Agrícola da Rede Federal de Educação Profissional e Tecnológica’, publicado pela Setec/MEC.

Além de trazer as 145 deliberações do seminário, o documento da Setec/MEC afirmava que “a educação agrícola requerida pela sociedade se caracteriza pela incorporação das novas tecnologias, pelos novos modelos de gestão da produção, pela imperativa necessidade da formação de profissionais responsáveis socio-ambientalmente e, então, representada por uma educação comprometida com as múltiplas necessidades sociais e culturais da população brasileira. Tudo isto estabelece como marco fundamental: formar profissionais técnica e politicamente preparados para atender as demandas da sociedade”.

Desde então, o Conif organizou o I Seminário de Educação do Campo e Ensino Agrícola da Rede Federal de forma online em 2021 e o II Seminário de Ensino Agrícola e Educação do Campo da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica, que ocorreu em Brasília em 2023. Os eventos servem para a rearticulação nacional de profissionais dos IFs debaterem posições e propostas acerca da educação agrícola.

Bregagnoli acredita que o ‘(Re)significação do Ensino Agrícola’, de 2009, definiu encaminhamentos que permanecem atuais “apesar da distância temporal”. Para o secretário, “vivemos um período de reconstrução das políticas, e este é um tema que queremos avançar em parceria com o Conif e o Forcampo”. Bastos, por sua vez, vê a necessidade de uma “construção nova”. “A Rede Federal mudou muito de 2009 para hoje. Nós tivemos três expansões da Rede e estamos entrando na quarta. Passamos por um momento de ressignificar a educação rural e repensar suas ofertas, seja no ensino médio técnico profissionalizante, seja na pós-graduação. O Instituto Federal, onde chega, leva um pacote tecnológico que extrapola o ensino, seja pela pesquisa ou pela extensão. O cenário de 2009 para hoje é completamente diferente”, defende.

A relação dos IFs com os arranjos produtivos locais

Acervo do campus rural de Marabé - IFPA

O reitor cita o momento atual, de debate com as sociedades locais que receberão os 100 novos Institutos federais a serem criados, como propício para este conjunto de definições. “Quando vamos construir os cursos, nós negociamos com as prefeituras e dialogamos com todos os atores locais, lembrando a todos que o instituto dá acesso a ensino para alunos, mas também promove extensão e pesquisa”, cita o reitor do IFMG.

De acordo com ele, isto deve servir como balizador para a confecção dos cursos e a escolha de disciplinas ofertadas. “Isso evita a evasão escolar e traz racionalidade ao uso dos recursos públicos. Quando a gente faz um curso para atender a região onde um IF é instalado, precisamos considerar o que a região quer e precisa. Assim fazemos bom uso do investimento federal no IF e geramos transformação na localidade”, aponta.

O IFMG, por exemplo, tem dois campi agrícolas: o São João Angeli, localizado na região produtora do Queijo do Serro, e o Bambuí na região da Canastra, onde se produz o queijo que leva o nome do local. E o reitor aponta como um grande desafio para muitos dos estudantes de seu Instituto colaborar com a certificação sanitária dos queijos artesanais. “Muitos desses queijos são produzidos pelas famílias dos próprios alunos e, com a certificação, eles podem comercializar o produto para outros estados. Esses filhos de produtores locais transformam as localidades em que moram”, comemora.

O titular da Setec/MEC, por sua vez, lembra o exemplo do campus Viamão do Instituto Federal do Rio Grande do Sul (IFRS), que, segundo ele, tem um trabalho junto à maior cooperativa de arroz orgânico da América do Sul, como exemplo positivo da vinculação entre os Institutos Federais e os arranjos produtivos locais, além de chamar atenção especial para o impacto da interiorização dos IFs na região amazônica, “junto aos povos do campo, das águas e das florestas, onde muitas vezes o Instituto é a única entidade de formação técnica presente, atuando desde a EJA [Educação de Jovens e Adultos] profissionalizante até a formação de educadores para as demais escolas do campo e contribuindo, assim, com a produção e transformação dos alimentos destes espaços, com todos os desafios e especificidades destas comunidades”.

IFs em assentamentos de Reforma Agrária

Acervo do campus Rural de Marabá - IFPAA situação descrita por Bregagnoli é vivenciada por Maria Suely Gomes, professora do campus rural do Instituto Federal do Pará (IFPA) em Marabá, e militante do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Dando aulas no local desde 2009, ela lembra que o campus foi fruto de uma luta anterior que durou cerca de dez anos, organizada pelo MST e a Fetag [Federação dos Trabalhadores na Agricultura] locais. “Queríamos a criação de uma escola agrotécnica federal que atendesse à juventude e desse assistência técnica aos produtores locais”, afirma.

Em 2007, a luta gerou a Escola Agrotécnica Federal de Marabá que, em 2010, a partir da criação dos Institutos Federais, se transformou em campus rural do IFPA. “Foi quando o MST levantou a proposta de que os IFs tivessem campus dentro de assentamentos de Reforma Agrária”, lembra Maria Suely. Passados 14 anos, somente dois Institutos Federais adotaram a proposição: o de Marabá e o IF de Santa Catarina, no Assentamento José Maria, município de Abelardo Luz.

O MST doou uma área de 354 hectares dentro do assentamento 26 de Março para a construção do campus do IFPA, local que possui alojamentos, laboratórios, refeitórios, biblioteca, além das unidades de ensino, pesquisa e extensão sobre a criação de suínos, caprinos, bovinos, aves e apicultura. “Em 2009 ingressou a primeira turma de técnicos em agropecuária, e desde então atendemos prioritariamente as populações do campo, dos assentamentos de reforma agrária. Mais recentemente começamos a receber jovens que estão vindo das periferias de Marabá, mas ainda é um percentual bem pequeno”, afirma Maria Suely.

Os alunos se dividem em dois cursos, o de técnico em agropecuária e o de técnico em agroindústria, ambos integrados ao Ensino Médio. O campus também oferece as graduações de Licenciatura em Educação do Campo e de Tecnologia de Agroecologia. O estudante técnico em agropecuária estuda a produção de um lote rural [parcelas de um terreno destinadas à exploração agropecuária, extrativa ou agroindustrial], de forma integrada, até a obtenção de produtos. “O aluno faz um diagnóstico do lote e da comunidade que ali está, e faz um projeto de intervenção e um plano de melhorias para o lote. Ao final dos três anos de curso, esses jovens já desenvolveram um projeto integrador para o território em que moram”, afirma a professora. E complementa: “Já o técnico de agroindústria trabalha com o beneficiamento dessa produção. É o queijo, é o doce, é o leite, é o babaçu. É ele quem estuda as exigências da legislação para fazer estes produtos e contribuir com as cooperativas da região”.

Em sua pesquisa de doutorado, concluída em 2021, Maria Suely atestou que 64% dos alunos egressos do Ensino Médio no campus permanecem atuando na região de Marabá, com agricultura familiar, nos lotes de assentamento. Além disso, segundo ela, eles também atuam dentro do sindicato [de trabalhadores rurais daquele território]. “Porque a formação que damos não é apenas para atuar no lote. Eles estão nas cooperativas também”, diz.

A professora do IFPA defende que todos esses resultados são fruto de um projeto pedagógico de Educação Profissional que não se restringe à formação de mão-de-obra, nem mesmo para a agricultura familiar. “A formação técnica e tecnológica ocorre a partir da proposta que o MST traz, de uma educação do campo, tendo o trabalho e a agroecologia como como princípios educativos. É uma formação pautada a partir dos territórios ocupados, respeitando o bioma do local e vinculado ao programa agrário defendido pelo Movimento”, explica.

E isso não quer dizer que a formação não seja vinculada aos arranjos produtivos locais. Como exemplos, Maria Suely cita o açaí e a Castanha do Pará. “Nosso núcleo de Agroecologia trabalha com a castanha, desde seu uso no reflorestamento até a produção e beneficiamento [processo de tratamento de matérias-primas agrícolas que visa torná-las mais aptas ao consumo, envolvendo atividades como limpeza, descascamento e polimento, dentre outras]. O leite da castanha pode ser inserido em sorvetes, bolos e tortas”, ilustra. Além disso, segundo ela, o campus do IFPA avalia a introdução de outras culturas naquele bioma. “O cacau chegou forte aqui e está crescendo na região amazônica. Nós estamos fazendo estudos e também o beneficiamento do cacau dentro do campus”.

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