Não foram poucas as dificuldades enfrentadas pela organização do 4º Encontro Nacional de Agroecologia (ENA), que terminou no último domingo (3/06) em Belo Horizonte. Afora o desafio de se reunir em um mesmo local, por quatro dias, milhares de pessoas vindas de todos os cantos do país, com recursos escassos, o encontro deste ano foi atravessado pela falta de combustível deflagrada pela greve dos caminhoneiros, que teve início na semana anterior ao evento. O resultado foi que nem todo mundo conseguiu vir. Mas muita gente veio. Algumas, como os integrantes da delegação de Rondônia, viajaram 3 mil quilômetros, de ônibus, para poder estar ali. Segundo a organização, 2 mil pessoas estiveram no Parque Municipal Américo Renné Giannetti, no centro da capital mineira, entre 31 de maio e 3 de junho para relatar experiências, denunciar as violências cometidas pelo agronegócio, o desmonte das políticas públicas voltadas à Reforma Agrária e a agricultura familiar e também discutir estratégias para o fortalecimento do movimento agroecológico.
Entre os participantes, estavam agricultores, representantes de comunidades e povos tradicionais – que juntos somaram 70% do público do encontro –, pesquisadores, gestores, representantes de organizações da sociedade civil, do Ministério Público, entre outras áreas, vindos de todos os estados do Brasil e de 14 países da América Latina, Caribe e Europa. Eles puderam debater nas plenárias, seminários e atividades autogestionadas promovidas durante o encontro questões relacionadas ao tema do 4º ENA: ‘Agroecologia e democracia unindo campo e cidade’. Um debate que, se já era relevante dado o processo de desmonte das políticas sociais construídas a partir da Constituição Federal de 1988, que completa 30 anos em 2018, ganhou ainda mais importância no contexto imediato do encontro, com o risco de insegurança alimentar gerado pela paralisação dos caminhoneiros. Os relatos do desperdício de toneladas de alimentos perecíveis que não foram entregues, de escassez de alimentos em algumas áreas e a disparada dos preços colocaram em xeque o modelo de organização da produção e distribuição de alimentos no Brasil.
“O ENA foi realizado exatamente no momento em que a meu ver se tornam mais visíveis as contradições deste modelo. Nós nos indagamos se era possível, se cabia manter o ENA diante desse contexto, e chegamos à conclusão de que era necessário”, afirma Maria Emilia Pacheco, integrante da coordenação executiva da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) e da ONG Fase. “Ficou bem claro como somos uma economia dependente de insumos fósseis. E na agroecologia nós defendemos outro paradigma da relação com a natureza. Por isso que a agroecologia tem todas as condições de ganhar mais visibilidade nesse momento”, aposta. Segundo ela, a greve dos caminhoneiros evidenciou a necessidade de se aproximar campo e cidade, como propôs o tema do 4º ENA. “O desabastecimento provocado pela greve dos caminhoneiros ainda precisa ser melhor analisado. Mas temos notícia que no interior, onde muitas vezes há o chamado circuito de proximidade entre os consumidores e a produção camponesa, da agricultura familiar, não teve desabastecimento. Eu penso que há uma repolitização de algumas questões, um chamamento para dizermos que não é possível um país continuar com o ‘passeio’ dos alimentos. E esse momento da nossa história a meu ver contribui para reverter isso”, afirma Maria Emilia.
Carta política denuncia “insustentabilidade” do sistema de distribuição alimentar
Essa foi uma questão abordada pela Carta Política do 4º ENA, documento-síntese dos debates que ocorreram durante o encontro, lido durante a plenária final ocorrida no último sábado (2/06). O documento destacou a “vulnerabilidade” e a “insustentabilidade” do sistema de produção e abastecimento alimentar “imposto por um punhado de corporações empresariais”. “A natureza antipopular e antiecológica do modelo que desconecta a produção do consumo alimentar e o campo da cidade foi exposta pela crise de desabastecimento gerada em poucos dias de paralisação. Um sistema de distribuição que depende do transporte a grandes distâncias e do consumo voraz de combustíveis fósseis, fazendo com que os territórios importem cada vez mais o que consomem e exportem cada vez mais o que produzem”, denuncia a carta. A agroecologia, por outro lado, “se constitui como uma alternativa a esse sistema homogeneizador e autoritário. Além de contribuir diretamente para o alcance da soberania e da segurança alimentar e nutricional do povo, as redes territoriais de agroecologia são decisivas na construção da sociedade justa, igualitária e sustentável pela qual lutamos”, complementa o documento.
A carta também contrastou o contexto em que foi realizado o 4º ENA daquele em que aconteceram as edições anteriores do encontro, em 2002, 2006 e 2014, período de “significativas conquistas do campo agroecológico brasileiro”, a despeito da não realização “das reformas estruturais necessárias para a democratização do acesso aos bens da natureza, a começar pela terra”. A Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica, de 2012, e a Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, de 2006, figuram no documento como destaques dos avanços conquistados no período, assim como iniciativas como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), de 2003, e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), através dos quais o governo federal adquire alimentos produzidos pela agricultura familiar. Políticas que, de acordo com o documento, se encontram sob ameaça no contexto atual. “Os impactos do desmonte neoliberal sobre o Estado Democrático de Direito são sentidos de forma cada vez mais aguda em nossas comunidades e territórios. O recrudescimento da violência no campo apresenta-se como a mais cruel e dolorosa evidência dessa realidade. O número de assassinatos de companheiros e companheiras, trabalhadores e trabalhadoras rurais sem-terra, indígenas, quilombolas, posseiros, pescadores, assentados, dentre outros, cresceu bruscamente a partir de 2015”, lembrou o documento.
Segundo levantamento da Comissão Pastoral da Terra (CPT) divulgado em maio, foram 71 assassinatos em 2017, mais que o dobro que em 2013 e maior número desde 2003. A carta denunciou ainda o risco de que, com o desmonte das políticas sociais, da legislação trabalhista e o aumento do desemprego, o Brasil volte a figurar no Mapa da Fome das Nações Unidas , que reúne os países com mais do que 5% de sua população em condição de subalimentação. O alerta foi feito em novembro do ano passado pelo brasileiro José Graziano, diretor-geral da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO). “Apesar da gravidade dos riscos iminentes ao atual momento histórico, a oportunidade de nos encontrarmos para debater os horizontes abertos à democratização da sociedade a partir de nossas vivências nos dá a certeza que somos portadores de boas notícias e de caminhos alternativos para a superação da lógica do capital que dilacera a sociedade e dilapida a natureza” ressaltou a carta política do 4º ENA.
Documentos-síntese apontam para as especificidades dos povos que fazem a agroecologia
Além da carta política, o encontro também produziu outros três documentos, sínteses das plenárias das mulheres, dos quilombolas e dos indígenas, que apresentaram reivindicações e análises específicas. Os quilombolas lembraram os 130 anos da abolição da escravidão , e como o Estado brasileiro não conseguiu reparar a dívida histórica com as populações negras. Destacando o papel da tradição de matriz africana e dos modos de produção dos quilombolas para a construção da agroecologia, a plenária lembrou a “constante ameaça” sobre seus territórios. A grilagem, o desmatamento, a contaminação por agrotóxicos e a apropriação do saber tradicional dos quilombolas pela indústria farmacêutica foram algumas das ameaças listadas. O documento dos povos indígenas foi resultado de uma plenária que reuniu cerca de 25 diferentes etnias, que vieram a Belo Horizonte debater suas lutas, apresentar experiências e dialogar com o poder públicos sobre suas demandas. No documento, os indígenas listaram como as principais ameaças os assassinatos de lideranças indígenas, o esvaziamento da Funai, os suicídios, as ameaças do Estado contra as populações indígenas, por meio da polícia, entre outras. Já o documento-síntese das mulheres destacou as violências específicas sofridas pelas mulheres negras, quilombolas, indígenas e ribeirinhas, e exigiram o respeito às suas visões particulares da agroecologa. “Onde há machismo, racismo e discriminação não há agroecologia!”, decretou a plenária das mulheres.
“Nós precisamos romper no Brasil com esse modelo de Estado agroexportador, que só instrumentaliza a exploração dos bens da natureza. Nós queremos com a agroecologia contestar a agricultura dominante, e queremos apostar que é possível sim produzir alimentos saudáveis, é possível outra convivência com a natureza. Esse é o sentido do Encontro Nacional de Agroecologia: impulsionar outro sistema agroalimentar, outra maneira de produzir e de consumir”, destaca Maria Emilia Pacheco, da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA). “Mas queremos chamar atenção também para a necessidade de fortalecer a democracia nesse momento de violação de direitos, desmonte de políticas e ascensão de movimentos reacionários. Por isso nos posicionamos enquanto movimento agroecológico na defesa da emancipação das mulheres, contra o racismo, principalmente o racismo institucional, que faz com que as políticas públicas não incorporem o direito à igualdade racial como prioritária. Também precisamos nos posicionar contra o etnocídio. Os povos indígenas estão sendo dizimados no Brasil, assim como as comunidades quilombolas e povos tradicionais”, denuncia Maria Emilia.