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Saúde e agroecologia: caminhos que convergem

O que a agroecologia tem a ver com o enfrentamento de alguns dos principais desafios da saúde pública hoje no Brasil?
André Antunes - EPSJV/Fiocruz | 07/04/2025 16h21 - Atualizado em 07/04/2025 16h41
Foto: Luiza Damigo/AS-PTA

O atual sistema agroalimentar precisa ser transformado. E com urgência. Evidências robustas, produzidas no Brasil e no exterior, revelam o papel da agricultura industrial na produção de vários dos maiores desafios da saúde pública em nível global, com destaque para a fome e a desnutrição, a obesidade e as doenças crônicas não transmissíveis. Em 2019, um artigo publicado por um conjunto de pesquisadores no periódico científico britânico The Lancet, uma das mais respeitadas revistas científicas da área da saúde no mundo, usou o termo “sindemia” para chamar atenção para a convergência entre a desnutrição, a obesidade e as mudanças climáticas. O artigo ‘The Global Syndemic of Obesity, Undernutrition, and Climate Change’ (em português: A Sindemia Global de Obesidade, Desnutrição e Mudanças Climáticas) faz uma ampla revisão de literatura científica em diferentes áreas e afirma que juntos esses problemas afetam a maioria das pessoas em todos os países e regiões ao redor mundo e constituem uma sinergia de epidemias, ou sindemia, “porque ocorrem simultaneamente no tempo e espaço, interagem entre si para produzir sequelas complexas e compartilham fatores sociais subjacentes em comum”.

Fatores que segundo os autores têm a ver com o modo como produzimos, transportamos, comercializamos e consumimos alimentos atualmente. Há hoje um coro de vozes, nacionais e internacionais, que vem chamando atenção para a insustentabilidade do modelo industrial e defendendo uma mudança de paradigma. Para muitos – ativistas, agricultores, representantes de organizações multilaterais e cientistas –, a alternativa responde pelo nome de agroecologia.

No Brasil, a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), maior instituição de pesquisa em saúde da América Latina, vem tomando a frente desse debate (Leia mais no final desta matéria). “O agronegócio é um modelo que concentra renda. Onde tem agronegócio muitas vezes estão os municípios com menor IDH [Índice de Desenvolvimento Humano] do país, que apresentam, do ponto vista epidemiológico, um elevado número de doenças relacionadas a agrotóxicos. É um tipo de agricultura que destrói a natureza, que desmata”, afirma Hermano Castro, vice-presidente de Ambiente, Atenção e Promoção da Saúde (VPAAPS) da Fiocruz. Segundo ele, hoje no campo da saúde pública a agroecologia é vista como um caminho para reduzir problemas como as intoxicações por agrotóxicos, mas também para enfrentar a insegurança alimentar nos territórios mais vulneráveis do país.

Bases da agroecologia

A agroecologia pode ser definida resumidamente como uma antítese do modelo industrial. No lugar das monoculturas e da criação intensiva de animais, ela aposta na diversificação de culturas, com a rotação de cultivos e a agricultura mista (mesclando safras e criação de animais em um mesmo espaço); ao invés do uso de variedades geneticamente uniformes ou espécies selecionadas para alta produtividade e habilidade para responder a insumos químicos, a agroecologia se baseia na utilização de diversas espécies de plantas e tipos de sementes, com menos homogeneidade genética; em vez da segregação de cadeias de produtos (como a criação de animais e a produção de alimentação desses animais em fazendas e regiões separadas, como é o caso do milho exportado pelo Brasil para produzir ração de gado na Ásia), a agroecologia aposta na produção integrada, com sistemas combinando cultivos agrícolas, pecuária e agrofloresta. O enfoque agroecológico pressupõe uma maior oferta de ocupação no campo, se comparado ao agronegócio, além de ter um grande foco no trabalho familiar, contribuindo com a fixação de populações e a geração de renda nas áreas rurais, contrapondo-se aos sistemas de produção mecanizados com baixa necessidade de mão de obra do modelo industrial; no lugar do uso intensivo de agrotóxicos e fertilizantes químicos, a agroecologia apresenta um baixo uso de insumos externos, apostando na reciclagem de resíduos e nos bioinsumos, tecnologias sociais desenvolvidas pelos camponeses a partir da experiência no manejo da agricultura, que funcionam como fertilizantes orgânicos e controlam pragas sem produtos químicos. Por fim, a agroecologia enfoca a produção de grande diversidade de produtos destinados a cadeias curtas de valor, aproximando produção e consumo, ao invés da produção de grandes volumes de produtos homogêneos que servem prioritariamente para exportação, que separa os produtores dos consumidores finais. 

Paradoxos

A fome é um tema que voltou aos holofotes de governos e agências multilaterais nos últimos anos, por conta da explosão no número de famintos em meio à pandemia de Covid-19. O último relatório ‘O Estado da Segurança Alimentar e da Nutrição no Mundo’, da Organização das Nações Unidas (ONU), apontou que mais de 864 milhões de pessoas no mundo enfrentaram insegurança alimentar grave em 2023. Somado ao contingente populacional em situação de insegurança alimentar moderada, o quadro desenhado pelo relatório é preocupante: em 2023, cerca de 2,3 bilhões de pessoas enfrentaram algum nível de insegurança alimentar, quase 30% dos cerca de 8 bilhões de habitantes do planeta.

No Brasil, onde o atual governo elegeu o combate à fome como um tema prioritário, o documento indicou que havia 14,3 milhões de pessoas em insegurança alimentar grave naquele mesmo ano. Somado aos quadros de insegurança alimentar moderada, o número chegou a 39,7 milhões. Outro estudo, desenvolvido por um grupo de pesquisa da Universidade de Berlim em parceria com a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e a Universidade de Brasília (UnB) em 2021 identificou que a fome atingia mais fortemente as populações das áreas rurais do que as urbanas: 12% contra 8,5%.

A persistência da insegurança alimentar, especialmente no campo, em um país como o Brasil – ao qual representantes do agronegócio frequentemente se referem como o “celeiro do mundo” – é um paradoxo produzido pelo atual modelo de produção e distribuição de alimentos.  E que vem sendo construído à medida em que a agricultura industrial avança, não só por aqui. Relatório produzido em 2016 pelo Painel de Especialistas em Sistemas Alimentares Sustentáveis, ou IPES-Food na sigla em inglês – grupo que atua em prol da reestruturação dos sistemas alimentares através de estudos e participação na formulação de políticas – cita estudo da FAO, a agência das Nações Unidas para alimentação e agricultura, que chamou atenção para o fato de que o continente africano, de exportador líquido de alimentos nos anos 1970, tornou-se importador, com um déficit comercial agrícola de US$ 22 bilhões, no final da primeira década dos anos 2000. Tudo em meio ao avanço da agricultura industrial orientada à exportação, que desestabilizou padrões de suprimento de alimentos.

No Brasil, um dado que ilustra essa relação é o declínio gradual das lavouras de produtos alimentícios. Segundo o estudo ‘Projeções do Agronegócio 2022/23’, do Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa), estima-se que o país vai perder, até 2033, 980 mil hectares de área plantada com arroz, 994 mil hectares de área plantada de feijão e 220 mil hectares de área plantada com mandioca, aumentando a dependência externa em relação a esses produtos, base da alimentação brasileira. Por outro lado, a soja deve ganhar, até 2033, 12 milhões de hectares de área plantada; o milho, 3,75 milhões, e a cana-de-açúcar, 1,33 milhão.

Uma consequência desse processo é que dietas anteriormente diversificadas se tornaram cada vez mais homogêneas, sobretudo no Sul global. Ao ponto de que, segundo a FAO, das 7 mil plantas usadas como alimentos pelos seres humanos, apenas três – arroz, milho e trigo – fornecem mais de 50% da ingestão energética de alimentos derivados de vegetais. E o relatório do Ipes-Food cita vários estudos que apontaram que uma dieta diversificada e equilibrada pode garantir a exposição a um conjunto mais amplo de nutrientes com propriedades antioxidantes e anticâncer.

O sistema que contribui para produzir a fome também tem sua parcela de culpa pela obesidade, outra perna do tripé da sindemia global. Segundo a última Pesquisa Nacional de Saúde, do Ministério da Saúde, entre 2010 e 2021 a taxa de mortalidade por obesidade cresceu 63% no país. Aproximadamente 168 mil mortes por ano no Brasil são atribuíveis ao excesso de peso e à obesidade, segundo estudo de 2019 da revista científica norte-americana Preventing Chronic Disease. Outro levantamento, de 2022, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), estimou que o Sistema Único de Saúde (SUS) gasta cerca de R$ 1,5 bilhão ao ano em custos hospitalares e ambulatoriais com a obesidade e o sobrepeso, ou 22% do gasto direto com Doenças Crônicas Não Transmissíveis (DNCTs).

Pesquisadores do Brasil e de outros países têm analisado por que o consumo dos alimentos ultraprocessados – os grandes vilões do crescimento da obesidade – vem crescendo, mesmo entre as populações de baixa renda. E as conclusões mostram que isso tem tudo a ver com o sistema agroindustrial, que ao mesmo tempo em que investe bilhões promovendo o consumo desses produtos – ricos em açúcar, gorduras e carboidratos e pobres em nutrientes, produzidos a partir de commodities como a soja, o milho e o açúcar da cana – contribui para criar ambientes com pouco ou nenhum acesso a alimentos saudáveis a preços acessíveis, na medida em que se volta para a exportação, como as projeções do Ministério da Agricultura mostram.

Wanessa Natividade, líder do Núcleo de Alimentação, Saúde e Ambiente da Coordenação de Saúde do Trabalhador da Cogepe, a Coordenação-Geral de Gestão de Pessoas da Fiocruz, explica que a formação dos chamados desertos alimentares –  que são regiões onde os alimentos saudáveis, como frutas, verduras e legumes frescos, simplesmente não chegam, devido à inexistência de iniciativas como as feiras livres e feiras agroecológicas e à distância dos centros urbanos – tem tudo a ver com as características do modelo agroexportador. Fenômeno que, segundo ela, afeta mais as populações negras, que são a maioria nos desertos alimentares, como as periferias das grandes cidades, por exemplo. Daí que vem a expressão “racismo alimentar”. “Essa população, um percentual muito elevado no nosso país, não consegue ter uma alimentação adequada. A falta de acesso a alimentos agroecológicos, a feiras livres, a torna mais vulnerável. Ela acaba sendo direcionada para o consumo de alimentos ultraprocessados”, pontua Natividade. Produzidos em larga escala, a partir de matérias-primas fortemente subsidiadas por políticas estatais, como o milho e a soja, e formulados para serem altamente palatáveis e viciantes, os ultraprocessados acabam sendo mais baratos e acessíveis que os alimentos frescos. “Aí você acaba tendo problema de saúde, gerando obesidade, e os serviços de saúde cada vez mais inchados de pessoas com doenças crônicas não transmissíveis”, lamenta. 

Uma pesquisa de 2023 da Universidade de São Paulo (USP) estimou que 57 mil pessoas morrem prematuramente a cada ano devido ao consumo de alimentos ultraprocessados, 10,5% de todas as mortes prematuras de adultos entre 30 e 69 anos no país. O conceito de morte prematura vem da Organização Mundial da Saúde (OMS), que o define como a probabilidade de morrer entre 30 e 70 anos em decorrência de doenças cardiovasculares, câncer, diabete e doenças respiratórias crônicas.

“Esse sistema baseado na comoditização da alimentação gera uma erosão cultural e alimentar sem precedentes. É uma homogeneização, uma perda de diversidade de nutrientes, de conhecimentos, que é ao mesmo tempo uma perda de diversidade ecológica”, alerta Cristiane Coradin, que integra o Grupo de Trabalho em saúde da Associação Brasileira de Agroecologia (ABA) e é professora da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp). Ela alerta: “Temos uma dieta rica em carboidratos e açúcares e pobre em proteínas, fibras, outros nutrientes diversificados. A gente está reduzindo inclusive o consumo de alimentos essenciais da nossa dieta, como o feijão. A gente tem energia, mas não tem os nutrientes necessários para o nosso desenvolvimento pleno, o que nos torna mais vulneráveis do ponto de vista imunológico, por exemplo”.

“Esse sistema baseado na comoditização da alimentação gera uma erosão cultural e alimentar sem precedentes. É uma homogeneização, uma perda de diversidade de nutrientes, de conhecimentos, que é ao mesmo tempo uma perda de diversidade ecológica”
Cristiane Coradin, integrante da ABA e professora da Unesp

Diversificação e construção social de mercados

Reintroduzir a diversidade de alimentos e nutrientes à dieta alimentar dos brasileiros e aproximar consumidores e produtores de alimentos saudáveis é uma tarefa à qual a agroecologia se propõe. Diversificação – de cultivos, de sementes, de conhecimentos – é um princípio a todo momento mobilizado quando o assunto é agroecologia, um contraponto à homogeneização intrínseca ao modelo do agronegócio. “A agroecologia se preocupa em restituir essa diversidade que muitos agricultores perderam, para que ela dê mais resistência para os ecossistemas locais e que as pessoas também comam melhor”, afirma Coradin.

Uma iniciativa desenvolvida em uma região historicamente associada com o flagelo da fome ajuda a dar materialidade ao papel da agroecologia. É no semiárido da Paraíba onde está localizado o Polo da Borborema, que congrega sindicatos de trabalhadores rurais e associações comunitárias de uma área que reúne 14 municípios e que, desde a década de 1990, produz alimentos de base agroecológica com apoio de organizações da sociedade civil como a AS-PTA Agricultura Familiar e Agroecologia. Adriana Galvão, assessora técnica da organização, explica que ali a agroecologia vem sendo construída a partir do conceito de convivência com o semiárido, que, como o nome diz, procura fortalecer estratégias para produzir ali a despeito da seca, reforçando a importância de estocagem dos recursos: da água, da forragem para alimentar os animais e das sementes crioulas adaptadas à região. Programas desenvolvidos pela Articulação do Semiárido (ASA) no início dos anos 2000 para garantir a segurança hídrica e alimentar das famílias da região, como a instalação de cisternas para captação de água da chuva e tecnologias para retenção da umidade no solo, a exemplo do Programa ‘Um Milhão de Cisternas’, foram fundamentais para garantir a segurança alimentar das famílias, produzindo de forma agroecológica. Com o tempo, a produção foi gerando um excedente, que passou a ser comercializado em feiras agroecológicas organizadas em vários municípios, inclusive Campina Grande, maior cidade da região, através de uma cooperativa que reúne 13 sindicatos de trabalhadores da área, a CoopBorborema. Segundo Galvão, hoje são 12 feiras agroecológicas espalhadas pelo território, além de pontos fixos, ou quitandas, que começaram a ser organizados a partir de 2020, e que vendem, além dos alimentos in natura, produtos agroecológicos oriundos da unidade de beneficiamento da cooperativa, como cuscuz e fubá. “As feiras foram se tornando oportunidades para vender esses alimentos a preços do mercado local, sem elitizar seu acesso em nichos de mercado”, diz Galvão. Segundo ela, isso foi fundamental para combater a insegurança alimentar na região durante a pandemia. Ela lembra que, além da crise sanitária, 2020 marcou dez anos de seca na região da Borborema, o que, somado ao crescimento do desemprego, apontava para um aumento da vulnerabilidade e da insegurança alimentar. “Organizamos a distribuição de cestas agroecológicas para essa população e foi impressionante, porque mesmo num período tão seco, distribuímos por volta de 5,5 mil cestas agroecológicas, com toneladas de alimentos de qualidade”, diz Galvão, complementando que, além disso, foram distribuídos vouchers no valor de R$ 120 para que as famílias comprassem alimentos nas quitandas. “As pessoas ficavam impressionadas com a quantidade de alimentos que poderiam levar para casa”, lembra.

O apoio a feiras é uma das principais estratégias do movimento agroecológico para materializar a construção de cadeias curtas de valor, outro princípio da agroecologia, que basicamente significa aproximar produtores dos consumidores, reduzindo a dependência de intermediários e do transporte por longas distâncias, reduzindo custos, bem como o CO2 emitido pelo sistema alimentar. Em resposta a esse princípio, iniciativas desenvolvidas na Região Metropolitana de Belo Horizonte têm reforçado que a agroecologia não é só um debate “do campo”. Ali, grupos como a Rede de Intercâmbio de Tecnologias Alternativas trabalham com assessoria técnica em agroecologia para diversas iniciativas também em áreas não rurais. Laura Barroso, que integra a equipe técnica da Rede, afirma que crises como a pandemia, que afetou a distribuição de alimentos em todo o país, mostram a vulnerabilidade do sistema alimentar, que para ela pode ser combatida por meio de políticas públicas de incentivo à agroecologia em contextos urbanos. “A agricultura urbana às vezes é desvalorizada, mas se o fornecimento de alimentos para, por alguma razão, a maioria das pessoas passa dificuldades no acesso. Aí você entende a importância de ter quintais que produzam hortaliças, frutas. Se isso for implementado enquanto política pública, em territórios mais amplos, é uma forma de garantir autonomia”, afirma Barroso. Em 2023 a Rede assessorou, por exemplo, a instalação de tanques de aquaponia na Ocupação Vitória, em Belo Horizonte. O sistema é baseado na reutilização total da água, produzindo proteína animal, no caso tilápias, cujos dejetos svervem de nutrientes para as hortaliças irrigadas pelo sistema. 

Outro exemplo de tecnologia social importante para o movimento agroecológico – e que foi fundamental no enfrentamento à insegurança alimentar durante a pandemia – são as cozinhas solidárias. Elas são iniciativas comunitárias de preparação e distribuição de refeições gratuitas para pessoas em situação de vulnerabilidade, e podem ser mantidas por voluntários, organizações da sociedade civil ou movimentos sociais. No início de 2024 elas viraram um programa de governo, sob a batuta do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social e Combate à Fome (MDS), em articulação com ONGs e apoio de instituições como a Fiocruz. O programa procura incentivar a compra de alimentos da agricultura familiar, da agricultura urbana e periurbana para a produção de refeições saudáveis em cozinhas de todo o país.

Ampliar e fortalecer as cozinhas solidárias na região metropolitana de Recife, capital de Pernambuco, tem sido um foco do Instituto Aggeu Magalhães, a Fiocruz Pernambuco. Em parceria com a Campanha Mãos Solidárias, articulação de movimentos sociais para combater a insegurança alimentar durante a pandemia de Covid-19 no estado, a Fiocruz Pernambuco lançou a partir de 2023 um curso de formação e qualificação de equipes de cozinheiras e ajudantes de cozinha que atuem em cozinhas solidárias no estado, que tem como um de seus eixos a agroecologia. Além do curso, a instituição – por meio do projeto Mãos Solidárias, que além do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), conta com a parceria das Universidades Estadual (UPE) e Federal de Pernambuco (UFPE) – vem apoiando a formação de uma rede de hortas urbanas – algumas conjugadas às cozinhas – e de hortas medicinais em assentamentos no interior do estado.

Trabalho e renda

Na Saúde do Trabalhador também não faltam argumentos para fazer a denúncia do agronegócio e a defesa da agroecologia. No Brasil, onde cerca de um quarto da população economicamente ativa trabalhava na agropecuária em 2023, milhões de trabalhadores estão expostos cotidianamente a uma série de agravos à saúde. Um exemplo são as intoxicações por agrotóxicos, que como mostrou reportagem de 2020 da ONG Repórter Brasil, ainda constituem um grande gargalo do sistema de seguridade social. A reportagem identificou, com base em informações do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan) do Ministério da Saúde, obtidas via Lei de Acesso à Informação, 7.163 trabalhadores rurais atendidos em hospitais e diagnosticados com intoxicação por agrotóxico dentro do ambiente de trabalho ou em decorrência da atividade profissional entre 2010 e 2019. Mesmo com o diagnóstico, apenas 11% deles (787) tiveram a comunicação de acidente de trabalho (CAT) enviada ao Instituto Nacional de Seguro Social (INSS). Parte do problema se dá devido à precarização do trabalho rural: 67% dos casos ocorreram com funcionários sem carteira profissional.

A alta informalidade, associada a uma fiscalização deficitária e à dificuldade de acesso a mecanismos de denúncia, é um fator de precarização do emprego rural no Brasil, que acaba expondo esses trabalhadores a péssimas condições. Segundo Wanessa Natividade, em muitos locais a falta de Equipamentos de Proteção Individual (EPIs), inclusive para assegurar um manejo minimamente seguro de agrotóxicos, é regra. “O que inclusive pode colocar em risco as famílias, porque ele [o trabalhador rural] utiliza essa roupa, que é levada para casa cheia de resíduos de agrotóxicos, é lavada e há ali uma contaminação com impacto na saúde humana e ambiental”, diz. As jornadas exaustivas são outro problema comum – e um exemplo são os chamados boias-frias, trabalhadores temporários que se deslocam diariamente de suas casas para as fazendas de cana-de-açúcar, café, laranja e outras culturas pelo país, muitas vezes atuando em condições precárias, com baixos salários e sem vínculo empregatício formal.

Informalidade e falta de fiscalização adequada são ainda uma receita para a existência, até hoje, de duas chagas do cenário do trabalho no Brasil, que afetam de forma desproporcional o setor agropecuário. Segundo dados do Observatório da Erradicação do Trabalho Escravo e do Tráfico de Pessoas, 56% das vítimas resgatadas de condições análogas à escravidão no país entre 2002 e 2024 estavam no setor agropecuário. Já os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) indicaram que havia 345,6 mil crianças e adolescentes em situação de trabalho infantil na agropecuária em 2023 no Brasil, 21,6% do total de casos identificados naquele ano.

Por tudo isso, construir relações de trabalho diferentes do modelo agroindustrial é parte importante da transição defendida pelo movimento agroecológico.

Por tudo isso, construir relações de trabalho diferentes do modelo agroindustrial é parte importante da transição defendida pelo movimento agroecológico. A base dessa transição é a agricultura familiar, forma de organização social que é responsável, segundo o relatório ‘Da uniformidade à diversidade’, do Ipes-Food, por 60% dos alimentos consumidos no mundo. Nesse enfoque, os núcleos familiares são donos dos meios de produção, da terra, e empregam sua força de trabalho no cultivo (leia mais na pág. 12). “É a agricultura familiar que sustenta hoje a produção diversificada de alimentos, a produção de feijão, de mandioca, de hortaliças em torno dos grandes centros das cidades. Por isso que a gente trabalha muito essa valorização e esse fortalecimento”, explica Cristiane Coradin, da ABA. E completa: “A agricultura familiar está gerando trabalho e renda para as pessoas no campo, para que elas possam viver no campo e do campo”.

Na agricultura familiar, explica Adriana Galvão, os sítios são lugares de moradia e de trabalho, com uma organização diferente. “Ele tem seu próprio ritmo, de acordo com os tempos da natureza, com o ano, se é de chuva ou de seca, especialmente aqui no semiárido. E o que eu percebo é muito mais qualidade de vida, porque eles [os trabalhadores] estabelecem relações diferenciadas com aquele ambiente, com o processo da divisão do trabalho”, complementa.

O trabalho coletivo e a organização comunitária, por exemplo, em cooperativas, são também incentivados pela agroecologia e, segundo Wanessa Natividade, contribuem para melhores condições de trabalho. “A agroecologia traz um modelo que valoriza a autonomia desses trabalhadores, nessa produção, na escolha das sementes que vão ser plantadas, dos insumos que vão ser utilizados, além de ter uma relação de trabalho mais justa. Além disso, a agricultura familiar agroecológica não tem os agrotóxicos e outros insumos químicos nocivos. Sem dúvidas a gente consegue garantir a saúde desses trabalhadores muito mais no modelo da agroecologia”, afirma Natividade.

Não que não haja contradições. Segundo Galvão, a questão da divisão sexual do trabalho é bastante presente na Borborema e no movimento agroecológico em geral, por conta das chamadas ‘duplas jornadas de trabalho’ das mulheres. “As mulheres acabam acumulando um trabalho muito maior, no plantio e também na casa, no cuidado com os filhos, e no quintal, que é um espaço produtivo central para a segurança alimentar da família”, afirma a assessora da AS-PTA.

Outra contradição diz respeito ao fato de que, embora a agricultura familiar seja condição fundamental para o enfoque agroecológico, as duas coisas não são sinônimas. Existe agricultura familiar que produz com base na monocultura e nos agrotóxicos, a qual o movimento agroecológico frequentemente se refere como “agronegocinho”. São famílias muitas vezes atraídas pela promessa de lucros mais elevados das cadeias de produção de commodities ou que são impossibilitadas de produzir sem veneno devido à proximidade com grandes e médias propriedades do agronegócio, que empregam a pulverização aérea de agrotóxicos e sementes transgênicas, que trazem o risco da contaminação. Uma aliança que acaba expondo os agricultores a vários riscos, como afirma o ‘Dossiê Abrasco: um alerta sobre os impactos dos agrotóxicos na saúde’ (lançado em 2015 pela EPSJV/Fiocruz em parceria com a Expressão Popular): a perda de autonomia dos agricultores, que ficam economicamente dependentes dos pacotes tecnológicos de sementes transgênicas e agrotóxicos impostos pelas empresas. No entanto, essa articulação é tão comum que a predominância da agricultura familiar – em que a situação pode ser ainda mais grave, já que os trabalhadores têm contato direto com os agrotóxicos, ao contrário das lavouras mecanizadas do agronegócio – foi um dos critérios utilizados pelo Ministério da Saúde para selecionar os 273 municípios prioritários para a implantação de um programa de Vigilância de Populações Expostas a Agrotóxicos dentro do Plano Nacional de Saúde 2020-2023, o que mostra o quanto os trabalhadores da agricultura familiar são um grupo de elevado risco de exposição a essas substâncias.

Segundo o Dossiê Abrasco, esse cenário em parte tem a ver com a maneira como estão estruturadas as próprias políticas de fortalecimento da agricultura familiar, como o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), bem como as políticas de concessão de crédito rural e de Assistência Técnica e Extensão Rural, que ainda são muito voltados para a difusão do modelo agroquímico, enquanto as políticas de fomento à transição agroecológica sofrem com a falta de recursos (veja mais na página 10). Por isso é importante não “jogar o bebê fora com a água do banho”, como diz o ditado, e é em parte por isso que se fala em “transição” agroecológica. Não se trata de uma lista de exigências a serem cumpridas, mas de um processo que envolve ganhos incrementais. Nesse sentido, a agricultura familiar, com todas as suas contradições, está muito mais próxima do modelo de organização do trabalho que a agroecologia preconiza, baseada em relações mais justas e solidariedade, do que o modelo do agronegócio. Só que para isso é preciso convencer os agricultores de que o enfoque agroecológico é mais viável, não só do ponto de vista ambiental e da saúde, mas também econômico – além, claro, de criar condições materiais para que isso seja verdade. Isso envolve, fundamentalmente, o Estado e suas políticas, de modo que movimentos do campo a todo momento reforçam a necessidade da transição agroecológica também na lógica de fomento à produção rural no país, atualmente direcionada de maneira desproporcional ao modelo agroexportador.

Mas algumas iniciativas pelo país mostram o quanto a agroecologia, devidamente apoiada e organizada, pode fazer frente ao poderio econômico do agronegócio. Um exemplo vem do Polo da Borborema, onde, segundo Adriana Galvão, os trabalhadores organizados na cooperativa CoopBorborema optaram por rejeitar uma proposta de integração ao sistema produtivo do tabaco da empresa Souza Cruz em 2010. “Fizemos um estudo econômico e ecológico de viabilidade com a comparação entre os dois sistemas. Chamamos todos esses agricultores, Secretaria Estadual de Agricultura Familiar, órgãos que regulavam o uso de agrotóxicos e fizemos um grande debate. E, no final, os agricultores perceberam que aqui era muito mais vantagem permanecer na agroecologia”, diz Galvão.

Saneamento e Saúde

Eduardo Napoli/Comunicação OTSSEmbora a produção sustentável de alimentos saudáveis seja a dimensão central da discussão sobre a transição agroecológica, não é a única. Experiências com saneamento ecológico no Brasil têm mostrado o potencial da adoção dos princípios da agroecologia para contribuir com esse que ainda permanece um gargalo das políticas de saúde no país – segundo o Censo Demográfico 2022 do IBGE, 49 milhões de brasileiros, ou 24% da população, vivem em residências sem descarte adequado de esgoto.

Uma experiência emblemática nesse sentido está completando dez anos. Em 2015 foi instalado o primeiro de 11 módulos de saneamento ecológico na comunidade caiçara da Praia do Sono, em Paraty, no estado do Rio de Janeiro. Coordenado pelo Observatório de Territórios Sustentáveis e Saudáveis da Bocaina (OTSS), parceria entre Fiocruz, Fundação Nacional de Saúde (Funasa) e o Fórum das Comunidades Tradicionais de Angra dos Reis, Paraty e Ubatuba, o projeto, segundo o coordenador do OTSS Vagner do Nascimento, nasceu do diálogo com as comunidades da área, que apresentaram o saneamento como uma carência local. “A partir daí houve uma demanda gigantesca de saneamento com esse viés da agroecologia, unindo conhecimento tradicional com conhecimento científico-acadêmico. Temos buscado parceria com os municípios da região e com a própria Funasa e estamos ampliando o saneamento ecológico em outros territórios”, comemora Nascimento.

A possibilidade de construção “de baixo para cima”, a organização comunitária, a adequação das tecnologias aos territórios e aos ecossistemas e a preocupação com o manejo sustentável da água foram critérios usados na escolha da tecnologia social que seria instalada, que foi o chamado tanque de evapotranspiração (processo pelo qual o solo e as plantas perdem água para a atmosfera, por evaporação e transpiração, respectivamente). Ele reutiliza a água e os nutrientes do esgoto para geração de alimentos. No caso, bananas. O tanque é uma caixa retangular impermeabilizada em cujo interior há uma câmara que recebe o esgoto, que pode ser de tijolos ou pneus. Em cima e dos lados dela é colocada uma camada de entulho e, em seguida, uma camada de brita. Sobre a brita, areia e, por fim, uma camada de terra, onde são plantadas bananeiras. O esgoto passa pelos pneus, pelo entulho, pela brita, de forma ascendente, subindo pela areia, e vai sendo filtrado, chegando até a raiz das bananeiras, que puxam esse esgoto e vão evapotranspirar essa água, que volta para a atmosfera. Lógica inversa da dos sumidouros, fossas rudimentares muito utilizadas em comunidades rurais, em que o esgoto é lançado e acaba se infiltrando pelo solo, podendo contaminar os lençóis freáticos. Com financiamento da Funasa e da Prefeitura de Paraty, os módulos da Praia do Sono foram construídos pelos próprios moradores da comunidade, que também fazem a manutenção dos tanques. “Nossa experiência foi incluída no Programa Nacional de Saneamento Rural como uma iniciativa importante, para virar uma política pública de verdade, o que mostra o papel que a agroecologia tem não só para o futuro desse território, mas também do debate do saneamento no Brasil”, diz Nascimento.

Cuidado em saúde e agroecologia

Para além da garantia da segurança alimentar e nutricional, a agroecologia tem ganhado espaço no debate das plantas medicinais e dos fitoterápicos e seu papel dentro do Sistema Único de Saúde. Desde 2006 o SUS conta com uma Política Nacional de Plantas Medicinais e Fitoterápicos (PNPMF) que tem, pouco a pouco, ajudado a consolidar iniciativas de produção de medicamentos a partir de plantas medicinais cultivadas de maneira agroecológica.

Estudos têm apontado que as plantas medicinais cultivadas de forma agroecológica têm maior concentração dos princípios ativos que interessam à produção dos medicamentos. Uma nota técnica de 2015 da Embrapa indica que dois indícios de má qualidade das plantas medicinais no Brasil, a quantidade inadequada de princípio ativo e a presença de resíduos de agroquímicos, têm como solução um cultivo “embasado em tecnologias agroecológicas”, com o uso, por exemplo, de adubação com fontes orgânicas, utilização de policultivo e consórcio de plantas, para diversificar a área de produção e reduzir infestação com pragas e patógenos causadores de doenças. O próprio Ministério da Agricultura e Pecuária faz, em um guia com orientações para o cultivo de plantas medicinais, de 2006, uma defesa, ainda que implícita, da agroecologia e seus princípios – como a consorciação e diversificação de culturas e o uso de adubos orgânico.  O guia recomenda que o plantio seja feito em áreas isentas de resíduos de agrotóxicos. 

Criado na esteira da aprovação da Política para dar suporte à sua implantação, o Sistema RedesFito articula agricultores, governos, empresários, academia e sociedade civil nos diferentes biomas brasileiros para o desenvolvimento de fitomedicamentos, fitoterápicos e fitoprodutos (como sabonetes e óleos essenciais), e há 15 anos é encabeçado pelo Centro de Inovação em Biodiversidade e Saúde do Instituto de Tecnologia em Fármacos da Fiocruz, conhecido como Farmanguinhos. “A ideia é desenvolver teias produtivas nos territórios para gerar desenvolvimento local, além da inovação à base da nossa sociobiodiversidade”, diz o coordenador nacional do Sistema e pesquisador da Fiocruz, Jefferson Santos. Ele explica que o conceito de sociobiodiversidade procura levar em conta também os conhecimentos populares e tradicionais daquelas localidades acerca da biodiversidade. No mesmo sentido, a RedesFito trabalha com o conceito de “arranjo ecoprodutivo local”, em um esforço de trazer a dimensão agroecológica para a produção. “São as pessoas do próprio território que nos procuram para montar um arranjo. Que não tem a ver só com produção. É a junção de todos os atores envolvidos nessa teia das plantas medicinais, fitoterápicos e fitoprodutos. Eles vão identificar os atores no território, e a gente busca traçar sinergias para desenvolver teias produtivas, tanto de produtos, mas também de ações de promoção da saúde, como a implantação de farmácias vivas”, explica Santos, fazendo referência ao programa do Ministério da Saúde criado em 2010, que incentiva o cultivo e a dispensação de plantas medicinais e de fitoterápicos nas unidades básicas de saúde. “Um dos nossos princípios é que a produção se dê de forma agroecológica. Ou no mínimo, orgânica, porque obviamente a gente não exclui ninguém no começo. Trazemos para conversar e vamos tentando convencer a adotar o manejo agroecológico”, diz o coordenador nacional da RedesFito. “O sistema agroecológico é o caminho para uma produção de plantas medicinais e fitoterápicos que venha a promover saúde, e não mais doença”, completa. Ele aposta no potencial desses arranjos, não só para a promoção da saúde, mas também para a geração de renda nos territórios. “Uma luta que a gente está travando atualmente é para que esses pequenos agricultores possam vender plantas medicinais para as farmácias vivas, para o Ministério da Saúde, o que a legislação atual não permite”, afirma Santos.

Agrotóxicos

A denúncia dos efeitos dos agrotóxicos sobre a saúde é uma dimensão importante da mobilização em favor da transição agroecológica. Os agrotóxicos se disseminaram de tal forma – amparados por uma narrativa difundida pela indústria química de que eles seriam inevitáveis para ‘alimentar o mundo’ – que cumpriram uma profecia autorrealizável, se tornando de fato inevitáveis. Mas não pelos motivos que as empresas defendem. A ciência vem provando que viver sem ingerir esses venenos, de uma forma ou de outra, hoje é virtualmente impossível. No Brasil, a literatura científica – como por exemplo o dossiê da Abrasco – hoje mostra que os agrotóxicos estão presentes em cordões umbilicais e em fezes de recém-nascidos, comprovando que a exposição se dá no pré-natal; eles estão também no leite materno e nos seus substitutos, estão no ar que respiramos e na água que bebemos. Outras pesquisas, essas do Instituto de Defesa dos Consumidores (Idec), indicaram ainda que os agrotóxicos estão presentes nos alimentos in natura, na carne de animais alimentados com ração feita com milho e soja contaminados, e também nos alimentos ultraprocessados produzidos a partir desses insumos.

Também há indícios dos malefícios à saúde que essa exposição aos agrotóxicos vem produzindo, de forma aguda ou crônica. Um dossiê divulgado no final de 2024 pela Abrasco em parceria com a Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP/Fiocruz) traz uma série de pesquisas publicadas desde 1982 que mostram os efeitos da exposição aos agrotóxicos para a saúde reprodutiva. Os estudos indicam que a exposição provoca alterações hormonais e genéticas em células reprodutoras e nos embriões, além de neoplasias (como o câncer de mama) e o aumento do risco de partos prematuros, abortamentos e malformações congênitas.

Já o primeiro Dossiê Abrasco, de 2015, alerta para a presença, em alimentos consumidos pelos brasileiros, de diversos agrotóxicos acima dos limites permitidos ou em culturas para as quais não são autorizados, conforme análises do Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos, ou PARA, no âmbito da Anvisa. Um exemplo é o inseticida permetrina, associado a mieloma múltiplo (tipo de câncer com origem na medula óssea). Outro inseticida, a lambda-cialotrina, está associado ao aparecimento de distúrbios neuromotores. O procloraz, por sua vez, atua como um desregulador endócrino, diminuindo a produção e síntese de hormônios corticosteroides e sexuais masculinos e feminino e prejudicando funções fisiológicas como a fertilidade masculina, o metabolismo de nutrientes e a regulação do sistema imunológico. Apesar disso, os agrotóxicos contam há anos com uma política generosa de concessão de incentivos fiscais por parte do Estado. Levantamento da Abrasco calcula que, enquanto o SUS gasta R$ 12 bilhões ao ano com doenças causadas por agrotóxicos, o governo concede R$ 10 bi em isenções fiscais a esses produtos.

Documento de autoria de dois relatores do Conselho de Direitos Humanos da ONU intitulado ‘Efeito dos agrotóxicos no direito à alimentação’, de 2017, citando artigos científicos produzidos por instituições de pesquisa e organizações da sociedade civil  de vários países, bem como de organizações do próprio sistema das Nações Unidas, é categórico: “A agroecologia é capaz de produzir o suficiente para alimentar toda a população mundial e garantir que ela seja nutrida adequadamente”.  Os relatores explicam que sem usar agrotóxicos é possível produzir alimentos mais saudáveis e ricos em nutrientes, com produção mais elevada em longo prazo, sem contaminar e esgotar os recursos naturais. Afirmam ainda que a medida mais eficaz no longo prazo para reduzir a exposição aos agrotóxicos é afastar-se da agricultura industrial. A agroecologia, “base da agricultura sustentável”, aparece como alternativa. “O argumento promovido pela indústria agroquímica de que os agrotóxicos são necessários para se alcançar a segurança alimentar não é apenas impreciso, mas também perigosamente enganador”, pontuam os autores.

Outro relatório, este produzido em 2016 pelo IPES-Food, lista vários artigos científicos que apontam resultados positivos da adoção de sistemas agroecológicos diversificados em vários países. Alguns deles dizem respeito à principal justificativa para o uso de agrotóxicos e fertilizantes químicos pelo modelo industrial: o controle de pragas e a adubagem do solo. O relatório cita, por exemplo, o sistema push-pull utilizado no Quênia, que conseguiu duplicar a produção de milho e de leite. Funciona assim: as pragas do milho são afastadas (push) por meio da plantação intercalada com Desmodium (planta usada como forragem para o gado) e são simultaneamente atraídas (pull) para parcelas de capim-elefante, que secretam uma goma pegajosa que retém insetos. Técnica similar foi descrita em países da Ásia, com uma prática milenar: o sistema pato-arroz: os patos comem ervas daninhas, insetos e pragas da plantação de arroz, reduzindo a necessidade de capinar, e suas fezes servem de adubo à plantação.

Adriana Galvão narra um embate envolvendo agricultores agroecológicos e o governo do estado da Paraíba em 2010 que ilustra bem essa disputa. A produção de laranja de uma área da Borborema conhecida como Brejo foi contaminada com a chamada mosca-negra-do-citrus, uma praga que coloca em risco o cultivo inteiro e exige a adoção de medidas para sua erradicação e controle. As medidas incluíram a distribuição, pelo governo do estado, de um inseticida, o Provado. “Eles iam para a mídia para falar que tinha que colocar veneno, a gente ia para falar que não tinha”, diz Galvão. A mobilização contrária aos agrotóxicos uniu, além dos agricultores do Polo e organizações de assessoria como a AS-PTA, a Universidade Federal da Paraíba, com o objetivo de mostrar que o controle biológico era o meio mais efetivo de conter a praga, mas também de assegurar a viabilidade do cultivo agroecológico já consolidado na região. “A gente se organizou, criou produtos alternativos, manejos ecológicos, que deram resultados positivos. Juntamos todo mundo, chamamos o estado, a Emater na época [empresa de assistência técnica e extensão rural do governo paraibano], hoje chamada Empaer, e provamos os resultados positivos. E eles recolheram o Provado que haviam distribuído”, resgata.

Diante de todo esse cenário, da onipresença dos agrotóxicos e esgotamento dos recursos naturais às condições de trabalho precárias promovidas pelo agronegócio, passando ainda pela priorização das commodities agrícolas que sacrificam a segurança alimentar de milhões de brasileiros em nome de um desenvolvimento excludente, em um modelo que produz, simultaneamente, a fome e a obesidade, cada vez mais estudos e práticas apontam a agroecologia como um caminho alternativo, com potencial de promover saúde, em diversos aspectos: segurança alimentar e nutricional com sustentabilidade ambiental, cuidado a partir dos conhecimentos tradicionais das plantas medicinais, novas perspectivas em saneamento ecológico e também a promoção de relações de trabalho mais solidárias no meio rural. Tudo em consonância com o projeto de sociedade idealizado pela Reforma Sanitária e expresso na criação do SUS, o maior sistema universal do mundo. “A transição agroecológica é um processo necessário no Brasil, de modo a aproveitar as terras que temos para plantar alimentos em um modelo que respeite a floresta, com diversidade de culturas, sem contaminantes, de forma saudável e sustentável”, resume o vice-presidente da Fiocruz, Hermano Castro. 

Saúde e agroecologia na Fiocruz

A Fiocruz vem fortalecendo sua atuação na produção de conhecimento da área de saúde e agroecologia e sua articulação com os movimentos populares e organizações que trabalham com essa agenda. Um processo que ganhou força a partir de 2017, quando os trabalhadores da Fundação aprovaram como diretriz da instituição o fortalecimento de “novas temáticas relacionadas à área de saúde e ambiente”, entre elas a agroecologia.

Segundo Hermano Castro, a agroecologia ocupa hoje um lugar de destaque na política institucional da Fundação. “A Fiocruz entende a agroecologia como um caminho para enfrentar doenças, atuar na promoção da saúde e garantir alimento de qualidade na mesa do trabalhador e das pessoas”, assinala. Até 2022, haviam sido mapeadas 91 iniciativas em agroecologia com participação direta da Fiocruz, em institutos localizados nos campi de sete estados: Rio de Janeiro, Distrito Federal, Amazonas, Ceará, Pernambuco, Bahia e Mato Grosso do Sul.

A EPSJV/Fiocruz figura no topo da lista, junto com a Fiocruz Pernambuco, com 15 experiências. Desde 2018, por exemplo, por meio do projeto ‘EPSJV Sustentável’, a Escola vem realizando a compra dos alimentos que compõem o cardápio escolar de cooperativas de agricultores familiares, sem agrotóxicos, com recursos próprios e complementação do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE). O programa estabelece que 30% do dinheiro repassado pela União deve ser destinado à compra de alimentos produzidos pela agricultura familiar, mas a Escola hoje realiza 100% de suas aquisições dessa forma. Destacam-se ainda publicações como o Dicionário de Educação do Campo, de 2012, em parceria com o MST, e o Dicionário de Agroecologia e Educação, lançado em 2021 em parceria com a Expressão Popular.

Outra experiência importante é realizada desde 2014 no campus Manguinhos, no Rio de Janeiro: a Feira Agroecológica Josué de Castro, organizada pela Ensp/Fiocruz e pela EPSJV/Fiocruz. A feira fomenta a agroecologia, o trabalho dos pequenos produtores rurais e urbanos, a alimentação saudável, e o artesanato das comunidades tradicionais e acontece quinzenalmente no Campus Manguinhos, em parceria com movimentos sociais agroecológicos do Rio. 

Segundo Hermano Castro, atualmente a agenda de saúde e agroecologia da Fiocruz vem tocando a elaboração de um documento com orientações técnicas e normativas para a produção de alimentação adequada e saudável nos eventos e ambientes alimentares da Fiocruz. “A gente quer modificar nossos eventos internos, reuniões, coffee breaks, para trazer alimentos de verdade, trazendo pequenos agricultores, cozinheiras e cozinhas agroecológicas” afirma. Um segundo momento envolve ampliar essa normatização para a aquisição dos serviços de alimentação dentro do campus. Outra iniciativa da VPAAPS/Fiocruz no momento, segundo Castro, é um projeto para garantir o fornecimento de alimentos saudáveis em comunidades do Rio de Janeiro, com a instalação de sacolões e cozinhas solidárias, que desde o ano passado são uma política de governo que a Fiocruz vem apoiando em parceria com o Ministério do Desenvolvimento Social, Família e Combate à Fome (MDS).

Para além dos números, André Burigo, que atua como assessor da VPPAPS/Fiocruz na coordenação da articulação da agenda de saúde e agroecologia, ressalta que nos últimos quatro anos a Fiocruz criou muitas outras iniciativas que articulam essas áreas de forma inovadora. “Estão sendo desenvolvidas aqui experiências muito pouco trabalhadas pelo campo da saúde coletiva, como agroecologia em terreiros, com povos indígenas, com crianças e em territórios de favelas. Certamente estamos avançando e temos muito o que fazer. Precisamos garantir, por exemplo, que a alimentação oferecida nas unidades de saúde do SUS sejam 100% livres de veneno”.

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