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Saúde e educação na mira das plataformas de trabalho

Áreas vêm sendo cobiçadas por empresas nos moldes da Uber, que vêm crescendo de forma acelerada no país. Especialistas alertam para a falta de regulação sobre a modalidade e cobram maior proteção aos trabalhadores que prestam serviços através das plataformas
André Antunes - EPSJV/Fiocruz | 29/04/2022 13h08 - Atualizado em 01/07/2022 09h40

No dia 1º de maio comemora-se o Dia Internacional do Trabalhador, data que celebra o histórico de lutas sociais por melhores condições de trabalho. No Brasil, em um cenário de desemprego elevado, altas taxas de informalidade e enfraquecimento da regulação, um fenômeno que tem ganhado centralidade entre os desafios para garantia de direitos mínimos aos trabalhadores é o crescimento das chamadas plataformas digitais de trabalho. Entre elas estão algumas que já passaram a fazer parte do cotidiano dos brasileiros, como a Uber e o Ifood, por exemplo. Anteriormente descrito como o processo de ‘uberização’ do trabalho, as plataformas – empresas que fazem a intermediação entre prestadores de determinado serviço e seus clientes, através do uso de tecnologias digitais – se espraiaram de tal forma por diferentes áreas para além do transporte de passageiros e serviços de entrega que o fenômeno passou a ser descrito como a plataformização do trabalho. E a saúde e a educação vêm rapidamente se tornando um foco dessa expansão. 

Essa foi uma conclusão de um levantamento realizado por um grupo de pesquisa da Clínica Direito do Trabalho da Universidade Federal do Paraná (CDT-UFPR), que estuda as relações de trabalho nas plataformas digitais. Os pesquisadores identificaram, até março do ano passado, 70 empresas dessa modalidade em operação no Brasil. A saúde já respondia por 16% das plataformas digitais atuando no país, atrás apenas das de transporte de passageiros, como a Uber, e de entrega, como o Ifood e o Rappi, que respondiam cada uma por 18% das plataformas até então em atuação. Por sua vez, a área de educação contava com 12% das plataformas digitais de trabalho em operação.

“Houve um crescimento muito expressivo dessas plataformas ao longo de 2020 e 2021, favorecido pelo contexto da pandemia, já que com as medidas de isolamento muitas pessoas passaram a recorrer a esse tipo de serviço. Também houve uma flexibilização das regras sobre esses serviços no caso da saúde, com a telemedicina, por exemplo”, diz Marcelo Manzano, pesquisador do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e integrante do grupo de pesquisa da UFPR. Ele explica que ainda não é possível falar em números de trabalhadores prestando serviços nas plataformas, uma vez que, ao contrário das de entrega e de transporte de passageiros, as de saúde e educação não possuem aplicativos diferentes para usuários e trabalhadores. “Isso acaba misturando os públicos. Mas através de uma ferramenta de análise de tráfego de web a gente percebe a evolução dos usuários nessas plataformas, e a tendência é de rápido crescimento”, aponta Manzano.


Comercialização de dados pessoais preocupa

No caso da saúde, como explica a socióloga Ana Claudia Moreira Cardoso, assessora sindical e pesquisadora do GT Trabalho Digital da Rede de Estudos e Monitoramento da Reforma Trabalhista (Remir), a plataformização faz parte de um processo de digitalização que já vem em curso há algum tempo. “Hoje em dia você manda exames e recebe receitas por Whatsapp. Isso é o básico. Mas tem um processo mais forte de inovação no setor, de robotização, com cirurgias feitas por médicos operando robôs à distância, de casa”, pontua Cardoso. O desenvolvimento da internet das coisas, que permite a comunicação digital entre aparelhos eletrônicos, é outra peça desse quebra-cabeça. “Cada vez mais temos aparelhos que medem o nível de glicose, o batimento cardíaco, a pressão arterial, que se comunicam diretamente com o hospital ou com o médico, por exemplo”.

O grande risco das plataformas, continua a pesquisadora, está na apropriação privada desses dados pelas empresas, que em um ambiente ainda pouco regulado, especialmente no Brasil, ficam livres para usá-los como quiserem. “Isso tem sido debatido internacionalmente, mas ainda pouco no Brasil. Então, imagina uma empresa que vai me contratar, mas antes ela consegue ter acesso aos meus dados de saúde e constata que eu tenho diabetes, ou pressão alta, ou então vê que eu já tive um câncer. Ela pode decidir não me contratar. Essa é uma questão muito importante”, alerta a pesquisadora.

Para Marcelo Manzano, esse é o maior interesse por trás da expansão desse tipo de empresa. Para ele, as plataformas são uma espécie de amortecedor, que separa os interesses dos grandes fundos financeiros da produção de bens e serviços. “São eles que em última instância põem dinheiro nesses negócios, mas não se envolvem na produção de serviços. As plataformas são uma espécie de intermediário. A grande fonte de valor dessas atividades é a coleta de dados dos usuários, e é isso na verdade que os fundos financeiros estão buscando”, avalia.


Como atuam

Amplimed, Comesco, Imedicina, Marsch, Conecta Médico, Dodelay e Doutor ao Vivo são algumas das principais plataformas digitais de trabalho que atuam no Brasil, segundo o levantamento da CDT-UFPR. Segundo Manzano, o formato mais comum é chamado de marketplace, em que a plataforma faz a intermediação entre pacientes e médicos e psicólogos, por exemplo, muitas vezes em troca de uma comissão. “Como as páginas amarelas de antigamente”, diz Manzano, fazendo referência a uma lista telefônica de empresas e serviços, comum antes do surgimento da internet. Outro formato é aquele em que toda a operação é realizada através da plataforma. “O atendimento é feito utilizando uma ferramenta da plataforma, o pagamento é feito por dentro da plataforma, de tal maneira que ela fica com um percentual. Pelo que a gente vem acompanhando, vai se encaminhando para um sistema cada vez mais padronizado, ou seja, que tudo ocorre por dentro da plataforma”, diz.

No Brasil, diz o pesquisador, a plataformização tem sido foco de interesse de grandes grupos hospitalares. “O Sírio-Libanês fez no ano passado uma parceria justamente com um desses grandes fundos financeiros e vão lançar uma plataforma para atender, de forma virtual, pessoas das classes C e D, a R$ 29 por mês”, relata. E completa: “A meu ver esse processo de plataformização vai ter como um desdobramento a abertura de uma nova frente de atuação do setor privado da saúde, que não conseguia chegar na população de mais baixa renda, que utiliza exclusivamente o SUS”.

Na educação, entre as principais plataformas em atuação no país, segundo a pesquisa da UFPR, estavam a Profes, Professores de Plantão, Shapp, Learncafe e Preply. Nelas, professores oferecem aulas particulares online ou presenciais, além de auxílio na elaboração de trabalhos, listas de exercícios e revisão de textos. Os modelos diferem, mas em geral envolvem a cobrança de uma comissão pelo uso da plataforma e um valor mínimo sobre o total de aulas ministradas. Também existem as plataformas que oferecem trabalho e serviço em diversas áreas, como a Getninjas, na qual é possível contratar aulas particulares sobre vários temas, como idiomas, pré-vestiular, concursos públicos, etc. Para terem acesso aos contatos com possíveis clientes, os professores comprar “moedas virtuais”.

No artigo ‘Manifestações do Trabalho em Plataformas na Educação’, que integra edição da Revista da Faculdade de Ciências do Trabalho do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) sobre a plataformização do trabalho, a técnica do Dieese Camila Yuri Santana Ikuta alerta que, além da ausência de vínculo empregatício e de direitos trabalhistas, as plataformas ainda estimulam uma concorrência desvantajosa aos professores para ver quem oferece o menor preço. “Há também o agravante da insegurança, uma vez que tanto para clientes como para os profissionais, a plataforma não oferece nenhuma garantia que o serviço será efetivamente realizado após a cobrança”, pontua.


Problemas comuns

A falta de responsabilização, segundo Ana Claudia Cardoso, é um problema comum a todas as empresas-plataforma, em todos os setores. “Elas não estão preocupadas com a qualidade do serviço prestado aos usuários e muito menos com os trabalhadores. Essa eu acho que é uma das questões principais, a ausência de responsabilização”, assinala a socióloga. Ao mesmo tempo em que transferem a responsabilidade pela avaliação da qualidade dos serviços aos próprios usuários, continua ela, as plataformas se colocam aos trabalhadores apenas como intermediárias do contato entre cliente e prestador de serviço, se isentando de qualquer responsabilidade. “O que vai acontecer é que o usuário vai culpabilizar simplesmente o trabalhador. E não vai ter nenhum retorno, porque o trabalhador do outro lado está sozinho, não tem nenhum apoio por parte da plataforma, não tem nenhum direito garantido”, analisa a pesquisadora, lembrando ainda que as plataformas não se responsabilizam pela formação. “Nós sabemos que a saúde é um setor onde o processo de inovação tecnológica é muito rápido, como temos visto sobretudo agora no contexto da pandemia. Esses trabalhadores têm que passar por um processo de formação contínua, mas as plataformas também não se responsabilizam por isso”, acrescenta.

Para Ana Claudia, nada justifica a desproteção dos trabalhadores das plataformas em relação a direitos trabalhistas. “A plataforma é uma tecnologia como outra qualquer que o capital criou. Esses trabalhadores são explorados pelas plataformas assim como nas empresas tradicionais, sem que tenham, por outro lado, a garantia de direitos, de proteção, de organização sindical. Assim como o home office. O que justifica os trabalhadores em home office não terem controle de jornada de trabalho? Nada, apenas o poder do capital de retirar direitos dos trabalhadores”, avalia.

Ela sustenta que o mundo do trabalho brasileiro pós-reforma trabalhista de 2017 contribui para a expansão das plataformas e para a falta de regulação sobre sua atuação. “Ela criou várias formas de contratação e todas essas formas de contratação são mais precárias do que o contrato de trabalho por tempo indeterminado e formal. O trabalho intermitente é um exemplo disso. Então sem dúvida nenhuma, se eu tenho uma legislação que abre diversas possibilidades e, ao mesmo tempo, não controla as novas modalidades que aparecem, como no caso das plataformas de trabalho, vira o paraíso para essas empresas”, diz Ana Claudia. Ela defende a revogação da reforma e a inclusão de novos direitos na CLT, em linha com as transformações do mundo do trabalho contemporâneo. A pesquisadora afirma não ver sentido na movimentação do Congresso Nacional em aprovar legislações específicas para os trabalhadores de plataforma nos setores de entrega e transporte. “Primeiro que elas não estão localizadas apenas nesses setores. Segundo, porque a gente tem que acabar com essa história de criar legislações específicas para trabalhadores específicos e incluir todos os trabalhadores em plataformas dentro da CLT, dentro do rol de direitos garantidos pela Constituição Federal”, conclui.