Serviços 
O conteúdo desse portal pode ser acessível em Libras usando o VLibras

Sistema Nacional de Educação avança no Congresso

Reivindicação antiga de educadores, Sistema Nacional de Educação ganha impulso. Mas para analistas, projeto de lei precisa prever mais participação e controle social e definir melhor critérios de repasses da União aos estados e municípios
André Antunes - EPSJV/Fiocruz | 26/11/2021 11h48 - Atualizado em 01/07/2022 09h40

Uma reivindicação antiga de educadores, acadêmicos, entidades e movimentos do campo da educação no país está mais próxima de se transformar em realidade. Avançam no Congresso Nacional propostas de leis para regulamentação de um Sistema Nacional de Educação, instrumento de articulação da União, estados e municípios para a implementação das políticas educacionais no país.

Embora a Constituição Federal aprovada em 1988 tenha determinado a necessidade de elaboração de lei complementar para fixar normas de cooperação entre os entes federativos na garantia do direito à educação, foi apenas recentemente que essa demanda ganhou impulso no Legislativo.  A proposta em estágio mais avançado atualmente é o texto substitutivo ao Projeto de Lei Complementar (PLP) 235/2019, de autoria do senador Dario Berger, que foi aprovado na Comissão de Educação do Senado no dia 11 de novembro, e agora deve ser analisado pelo plenário.

A pandemia evidenciou a urgência de termos um sistema nacional de educação, em um contexto em que o MEC simplesmente se excluiu dos grandes temas e se voltou para temas menores, pautas de costumes que tem uma relevância absolutamente insignificante - Carlos Jamil Cury


Demanda histórica

Segundo Carlos Jamil Cury, professor aposentado da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e docente da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG), a ideia de um sistema nacional de educação vem circulando desde os anos 1930 no país, mas sua construção sempre enfrentou dificuldades. A União, por exemplo, temia ser transformada em uma “caixa de financiamento” da educação, apenas repassando recursos para estados e municípios. Estes, por sua vez, temiam uma perda de autonomia. “Entretanto, o elemento mais antagônico ao Sistema Nacional de Educação veio do setor privado, que passou a identificá-lo a um suposto monopólio da educação pelo Estado. Essa recusa foi muito forte, seja da parte de um catolicismo conservador, seja da parte de um sistema de empresariamento laico da educação”, afirma Cury.

Mas foi a Constituição de 1988, diz ele, que impulsionou um debate mais substantivo sobre o SNE, na medida em que instituiu um regime de cooperação entre os entes federados na garantia do direito não só à educação, mas à saúde também, entre outras políticas sociais. Mais recentemente, a aprovação da Emenda Constitucional 59, que determinou a obrigatoriedade do ensino dos jovens de 4 a 17 anos e determinou o fim da incidência da Desvinculação de Receitas da União (DRU) para a educação. “Ela positivou o Sistema Nacional de Educação como  forma de viabilizar o Plano Nacional de Educação, e é exatamente em torno dela que as coisas se aceleraram”, diz o professor da PUC-MG.

Por fim, houve a pandemia de Covid-19, que segundo Cury explicitou a falta de coordenação entre os entes federados na área da educação. “A pandemia evidenciou a urgência de termos um sistema nacional de educação, em um contexto em que o MEC simplesmente se excluiu dos grandes temas e se voltou para temas menores, pautas de costumes que tem uma relevância absolutamente insignificante em relação aos temas que o Sistema Nacional está enfrentando. A ausência do SNE foi reveladora dessa ausência do MEC na coordenação da educação brasileira”, pontua.


Avanços

Segundo Cury, entre os avanços do texto do PLP 235/2012 no Senado estão a explicitação das competências de cada ente federado dentro do sistema e a criação de instâncias de pactuação interfederativa das políticas educacionais e suas competências, nos moldes das do Sistema Único de Saúde (SUS): a Comissão Intergestores Tripartite da Educação (Cite) – reunindo os três entes federados - e a Comissão Intergestores Bipartite (CIB) – reunindo gestores estaduais e municipais. Outro ponto importante segundo ele foi a indicação de quais devem ser os integrantes do Conselho Nacional de Educação (CNE), tornando obrigatória a presença de representantes da União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime) e do Conselho de Secretários Estaduais de Educação (Consed). Em julho de 2020, um decreto assinado pelo presidente Jair Bolsonaro nomeou 11 novos integrantes ao CNE, nenhum deles dessas entidades. “Um absurdo. Como é que você vai fazer um regime de colaboração se a discussão das normas, da organização pedagógica, que são competência legal do Conselho Nacional de Educação e as entidades que fazem parte do Sistema Nacional de Educação, não estão presentes?”, critica Cury.


O que pode melhorar

Ele destaca, contudo, que o projeto de lei de criação do SNE não deixa claro como se dará a articulação entre o CNE e as instâncias de pactuação interfederativa. “As instâncias, tal como está no projeto, elas têm uma dimensão administrativa financeira, o que me parece correto. Já o Conselho Nacional de Educação tem uma dimensão mais normativa, em relação a organização pedagógica. As instituições escolares e os sistemas são um conjunto: o administrativo, do financeiro e o pedagógico. E para mim ainda não está muito claro como vai se dar esta articulação entre esses organismos, isso precisa ser mais explicitado, ou na lei complementar ou em uma lei ordinária”, argumenta o pesquisador. 

Outro ponto que merecia ser melhor explicitado no texto, segundo Cury, são os critérios do Custo Aluno-Qualidade (CAQ), parâmetro referencial para a destinação de recursos pela União aos estados e municípios via Fundeb. Em nota técnica divulgada no dia 23 de novembro, a Campanha Nacional pelo Direito à Educação reforçou esse ponto, sugerindo a inclusão de vários itens no trecho do projeto que fala da estrutura física, tecnológica e de pessoal das redes públicas de educação básica que os insumos do CAQ devem contribuir para garantir, como: número máximo de alunos por turma para cada etapa ou modalidade; biblioteca ou sala de leitura com acervo; laboratórios de ciências e de informática; internet banda larga e dispositivos e tecnologias digitais quadra poliesportiva coberta; saneamento básico e água potável; acesso à luz elétrica; estrutura de acessibilidade. Pontos que para a Campanha deveria ser reforçado também no capítulo dedicado aos objetivos do SNE no texto do projeto.

Outro ponto bastante destacado pela nota da Campanha refere-se à ampliação da participação das comunidades escolares nos espaços que seriam criados para debate das políticas educacionais, com a inclusão de mais entidades nas instâncias de pactuação interfederativa, não se restringindo apenas aos gestores municipais, estaduais e federais. A Campanha sugere, por exemplo, a inclusão de representantes indicados por entidades como o Fórum dos Conselhos Estaduais e Distrital de Educação (Foncede) e pela União Nacional de Conselhos Municipais da Educação (Uncme); de entidades representativas de profissionais da educação indicados pela Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), pela Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino (Contee), e pela Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes); de entidades representativas de estudantes indicados pela União Nacional dos Estudantes (UNE), pela União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (UBES) e pela Associação Nacional de Pós-Graduandos (ANPG). A nota defende ainda um fortalecimento do papel do Fórum Nacional de Educação (FNE) e das Conferências Nacionais de Educação no planejamento e monitoramento das políticas educacionais no texto do projeto. “É preciso aprimorar a participação tanto dos municípios no Sistema, quanto da comunidade educacional - que foi apartada das instâncias principais de governança”, alerta a nota.

Para Cury, esse ponto deverá gerar muitos debates em plenário, muito por conta do contexto político desfavorável a essa demanda. “Corre-se o risco de uma burocratização do sistema nacional de educação, com a exclusão dos fóruns, das conferências. Quem vai em última instância pôr em ação o Sistema Nacional são os profissionais da educação, e se eles não tiverem o mínimo de participação, em que eles se sintam também sujeitos desse sistema, sua implementação já pode nascer esvaziada”.

tópicos: