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Suicídio cresceu entre adolescentes durante a pandemia

Pesquisa realizada pela Ensp/Fiocruz alerta para um aumento acentuado na taxa de suicídio na faixa etária que vai de 10 a 19 anos entre 2020 e 2022. Em meio ao Setembro Amarelo, campanha anual de prevenção ao suicídio, pesquisadores reivindicam uma maior atenção ao problema no SUS e nas políticas sociais como um todo
André Antunes - EPSJV/Fiocruz | 26/09/2024 15h10 - Atualizado em 26/09/2024 15h55

Um relatório divulgado recentemente por pesquisadores da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca da Fundação Oswaldo Cruz (Ensp/Fiocruz) chama atenção para o aumento nas taxas de suicídio entre adolescentes no Brasil nos últimos anos, uma tendência preocupante que vem sendo identificada no país desde o começo dos anos 2000, mas que se agudizou entre os anos de 2020 e 2022, com os efeitos provocados pela pandemia de covid-19.

É sobre esse período que se debruça o relatório técnico ‘Adolescência e suicídio: um problema de saúde pública’, dos pesquisadores Nilson do Rosário Costa, Marcelo Rasga Moreira e Raphael Mendonça Guimarães, da Ensp/Fiocruz. O documento foi divulgado em meados de setembro, mês em que ocorre a campanha de prevenção ao suicídio conhecida como Setembro Amarelo.

O documento aponta para um aumento da probabilidade de suicídio entre os adolescentes, de 10 a 19 anos, de modo que em 2022 ela se tornou 21% maior do que a identificada na população de jovens adultos, entre 20 e 29 anos. O dado é significativo na medida em que, historicamente, a probabilidade de suicídios entre jovens adultos sempre foi maior do que entre adolescentes. No entanto, os pesquisadores apontam que essa probabilidade foi gradualmente se assemelhando e, a partir de 2019, se igualou. Durante a pandemia, ocorreu a reversão.

“O suicídio vem aumentando no Brasil, independente da faixa etária, mas de forma mais acelerada entre os adolescentes. E isso nos causou preocupação, porque isso significa que alguma coisa acontece com este grupo etário que faz com que ele esteja mais vulnerável à ideação suicida do que o grupo de adultos”, explica Raphael Guimarães.

"A precarização do trabalho hoje é uma questão importante para esse adolescente pensar o futuro dele em termos de carreira, de profissão" - Raphael Guimarães

Em 2022, segundo ele, em torno de 7,2% de todos os óbitos de adolescentes  no Brasil foram por suicídio. “Isso é um número assustador. É algo que desperta atenção para a necessidade de fazer uma discussão mais profunda sobre as motivações desse suicídio, para que a gente possa, então, fomentar as políticas necessárias para mitigar esse problema”, diz Guimarães. Para efeito de comparação, vinte anos antes essa taxa era de 3,23%. Entre a população não jovem, de 30 anos ou mais, essa taxa foi de 0,82% em 2022.

Mas o que diz a literatura científica sobre as possíveis causas desse fenômeno? Segundo Guimarães, estudos recentes, nacionais e internacionais, vêm procurando oferecer explicações. “Pesam muito as incertezas que esses adolescentes têm perante o futuro. Hoje eles lidam com questões que a minha geração, por exemplo, talvez não tenha lidado de forma tão imediata, que são as questões das mudanças climáticas, de como isso vai impactar a vida a médio prazo; ou então a questão da instabilidade nos empregos. A precarização do trabalho hoje é uma questão importante para esse adolescente pensar o futuro dele em termos de carreira, de profissão”, diz o pesquisador da Ensp/Fiocruz.

Segundo a pesquisa, a taxa de mortalidade por suicídio entre adolescentes no Brasil passou de 1,71 a cada 100 mil habitantes em 2000 para 2,51 em 2015, um aumento de 47%. O ano de 2016 marca um ponto de inflexão para um aumento ainda mais acelerado das taxas até 2022. Para Guimarães, o cenário político e econômico brasileiro pode ajudar a entender essa guinada. O período foi marcado por uma crise econômica refletida na retração do Produto Interno Bruto brasileiro em dois anos consecutivos, 2015 e 2016, quando houve ainda uma explosão nas taxas de desemprego, que atingiram 11,5%. Na política, o período ficou marcado pelo impeachment da então presidente Dilma Rousseff. Em 2017, com o apoio do governo do novo presidente da República Michel Temer, o Congresso aprovou uma polêmica reforma trabalhista que flexibilizou a legislação e que, segundo a maioria das centrais sindicais, foi responsável por uma precarização das condições de trabalho no país.

“A gente não tem como estabelecer uma relação causal, mas não há dúvidas de que de 2015 para cá as questões de contexto têm piorado muito no Brasil”, afirma Guimarães. E completa: “Todas essas questões foram criando gradativamente um sistema de trabalho muito precarizado. Elas acabam recaindo com mais força justamente sobre os grupos etários que têm menos experiência de trabalho, caso dos adolescentes e adultos jovens. É uma geração que já está começando sua vida laboral nessa lógica da ‘pejotização’, da ‘uberização’, da flexibilização das leis trabalho e, com isso, a precarização. É um contexto bastante adverso”, avalia o pesquisador da Ensp/Fiocruz.


Efeitos da pandemia

 

Durante a pandemia de covid-19, se dá um novo ponto de inflexão, com a reversão indicada pela pesquisa, em que a probabilidade de suicídio na faixa etária entre 10 e 19 anos ultrapassa a dos jovens adultos, entre 20 e 29 anos.  “Não acho que seja coincidência o fato de que esse equilíbrio aparente que a gente vinha tendo entre adolescentes e adultos jovens começa a virar a partir de 2020, com a chance de um adolescente se matar se tornando maior”, aponta Guimarães.

A psicóloga e professora-pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) Marise Ramoa foi uma das profissionais da escola que participou de uma série de atividades de acolhimento na área de saúde mental para os estudantes do Curso Técnico de Nível Médio em Saúde da escola a partir de junho de 2021, poucos meses antes do início do retorno gradual das atividades educacionais de forma presencial na instituição naquele ano. “A gente viu jovens se dizendo deprimidos. Uma tristeza muito forte, profunda. Jovens que perderam muita gente, muitos familiares. Eles falaram da saudade da vivência da escola, de poder estar com outros jovens, com os professores, de estar num contexto de vida, porque a vida foi toda limitada”, lembra Ramoa. Ela considera que a pandemia foi um evento traumático para grande parte da população, mas para os adolescentes em especial. “Falo de trauma no sentido da psicanálise mesmo, que é essa ideia de um fenômeno que vem sem que a gente tenha a capacidade de falar sobre ele, nomear, simbolizar, dizer o que se está vivendo. A gente não tinha recursos simbólicos para saber como lidar com aquilo. Pensar nos jovens em um momento como esse, a angústia que veio provavelmente foi violenta”, diz a professora-pesquisadora da EPSJV/Fiocruz. E completa: “Com isso é claro que houve um aumento de atos para aliviar a dor, de automutilação, mas também de pensamentos suicidas, de tentativas de suicídio. Era uma sensação de desistência da vida. A esperança foi embora com tantas mortes e com tanta falta de investimento público também, especificamente aqui no Brasil. Era como se não se pudesse contar com o outro. Eu acho que na adolescência isso deve ter sido mais intenso ainda”.

“Acho que o sofrimento dos jovens no Brasil está diretamente relacionado à falta de políticas públicas em relação tanto à saúde, educação, assistência social, e outras" - Marise Ramoa


E o SUS com isso?

 

A tendência de aumento nas taxas de suicídio entre os jovens ocorre justamente em um período de transformações na pirâmide etária brasileira, marcada pela queda nas taxas de natalidade e aumento da longevidade: entre 1970 e 2022, a proporção de crianças no total da população caiu de 29,28% para 13,03%, enquanto a de adolescentes caiu de 23,80% para 13,81%. Um contexto novo, que impõe desafios com os quais o Sistema Único de Saúde, o SUS, terá que lidar nas próximas décadas. Ele estará preparado? “Eu acho que o SUS está se organizando para isso”, avalia Raphael Guimarães, citando a própria pesquisa, que integra uma iniciativa fomentada pelo Ministério da Saúde para produzir evidências que subsidiem a construção de uma política de atenção à saúde específica para a população adolescente. “Isso mostra um pouco a sensibilidade que o Ministério tem hoje frente a essa questão”, diz o pesquisador. Mas pondera: “A gente ainda tem muitos entraves para a questão do adolescente. Temos uma carência enorme de especialistas nessa faixa etária na rede, e uma dificuldade de organizá-la. Muitas vezes o serviço fica confuso sobre onde alocar esse jovem, se nas unidades mais pediátricas ou se ele encara o adolescente como um ‘adulto pequeno’. E nenhuma opção serve, porque ele é uma pessoa que tem necessidades diferentes das crianças, mas também absolutamente distintas das que os adultos apresentam. Isso acaba criando uma barreira para a resolutividade dos problemas de saúde desse grupo etário”, explica Guimarães.

Por outro, lado, dizem os especialistas, nem só de SUS se faz uma atenção à saúde sensível às questões que envolvem a saúde mental na adolescência. Políticas hegemônicas na área de segurança pública, por exemplo, acabam muitas vezes sendo produtoras de sofrimento psíquico, diz Ramoa. “Por exemplo, o CMS, ou Centros Municipais de Saúde, na Maré, está todo cravejado de bala. Aí quando tem tiroteio fecha o CMS, fecha a escola, fecha tudo nas comunidades. Não tem como não ser traumático para aqueles jovens”, exemplifica Ramoa, e complementa: “Por isso eu gosto de falar em adolescências, ao invés de adolescência. É completamente diferente de um jovem que tem um outro contexto. Não tem como negar que é preciso um recorte de classe, de gênero, de raça”. A professora-pesquisadora da EPSJV/Fiocruz considera que o enfrentamento ao problema do suicídio adolescente deve ter em conta que a produção do adoecimento, na perspectiva que fundamenta a atenção a saúde mental no SUS desde a Reforma Psiquiátrica, no início dos anos 2000, tem uma determinação social. “Acho que o sofrimento dos jovens no Brasil está diretamente relacionado à falta de políticas públicas em relação tanto à saúde, educação, assistência social, e outras”, avalia.