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Um (longo) caminho para a saúde universal

Em janeiro é celebrado o Dia da Visibilidade Trans, mas direitos da população transgênero ainda encontram barreiras para acesso igualitário a ações de saúde
Erika Farias - EPSJV/Fiocruz | 27/01/2023 14h47 - Atualizado em 27/01/2023 15h07

A Constituição Federal de 1988 diz que saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao seu acesso universal e igualitário. Mas no mês em que é celebrado o Dia Nacional da Visibilidade Trans, o acesso à saúde da população transgênero ainda encontra desafios no caminho para sua integralidade. Instituído em 2004, a partir de um ato nacional organizado para o lançamento da campanha “Travesti e Respeito”, no Congresso Nacional, o 29 de janeiro faz alusão ao dia em que um grupo de ativistas formado por 27 travestis, mulheres e homens trans foram até Brasília reforçar a importância do respeito à diversidade. Desde então, a data tem marcado um movimento em busca da garantia de direitos dessas populações, de forma a garantir um acesso à saúde em seu sentido mais abrangente: aquele que entende que ela é resultante das condições de educação, habitação, renda, trabalho, emprego, entre diversos outros determinantes sociais. Direitos fundamentais para além de pessoas trans e travestis – direitos humanos.

Cerca de 1,9% da população adulta brasileira, ou aproximadamente 4 milhões de pessoas, são transgênero e não binárias, segundo levantamento feito pela Faculdade de Medicina de Botucatu da Universidade Estadual Paulista (FMB/Unesp). Apesar do alto número, o censo demográfico realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) ainda não inclui perguntas sobre sexualidade e identidade de gênero em seu questionário, gerando uma invisibilidade nos dados oficiais. “Isso aumenta a dificuldade em termos dados estatísticos sobre a situação dessa comunidade para que a gente possa pensar em políticas públicas. Sem esses dados a gente não consegue mensurar, por exemplo, qual é o impacto da dificuldade no acesso aos cuidados para as pessoas trans na sua saúde física e mental”, pontua a Secretária-executiva da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), Bruna Benevides.

Saúde

Foi apenas em maio de 2019, durante a 72ª Assembleia Mundial da Saúde, em Genebra, que a transexualidade deixou oficialmente de ser considerada uma doença pela Organização Mundial da Saúde (OMS), depois de ter sido mantida na Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas de Saúde (CID) como transtorno mental por 28 anos. A CID é um cadastro com códigos para enfermidades, problemas de saúde e lesões, atualizada periodicamente pela OMS. Pela nova edição da CID 11, a transexualidade passa a integrar agora a categoria de “condições relacionadas à saúde sexual”, sendo classificada como “incongruência de gênero”, ou seja, um sentimento de profunda angústia devido ao conflito entre a identidade da pessoa e o gênero a ela atribuído no nascimento.

Para alguns especialistas, a nova classificação tende a reduzir o estigma dessa população, enquanto garante acesso a intervenções de saúde, mas ainda há outros pontos em debate. “Eu sou do grupo de pesquisadores que defende que a transexualidade fosse retirada do CID. Enquanto só for possível acesso de uma população à saúde pela patologização, essa população não será vista como plenamente humana. Ela é vista, no meu entendimento como tutelada. A despatologização é necessária e vai ser a consequência, inclusive, de uma sociedade que não veja pessoas trans como aquelas sem consciência de si, ou que não tenham condições de pensar e cuidar do seu corpo”, ressalta a professora de Psicologia do Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ) e da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz), Jaqueline Gomes de Jesus.

Para Bruna Benevides houve avanços no sentido de a transexualidade deixar de ser considerada uma doença, mas também alerta para o risco da tutela médica sobre o corpo e autonomia do sujeito. “É como se o que eu sinto, vivo e experiencio no meu dia a dia não fosse considerado algo legítimo e como se eu sempre fosse precisar de um diagnóstico médico para atestar se aquilo que eu estou dizendo é verdade. Essa talvez seja a síntese da luta pela despatologização que ainda é uma luta extremamente importante para a pessoa trans, sobretudo quando o Brasil ainda não ratificou a CID 11. Isso é uma denúncia que nós temos feito em diversos espaços nacionais e internacionais. Já que em 2018 foi publicado que a OMS já estava revendo essa classificação, a partir de 1º de janeiro de 2022 todos os estados brasileiros já deveriam ter organizado seus sistemas de saúde considerando esses novos padrões, e o Brasil ainda segue omisso para essa questão”, aponta a secretária Executiva da Antra. Benevides explica que a intenção, enquanto Associação, seria que a comunidade trans passasse para a “categoria Z00”, que estivesse em outras formas de cuidado que não dependesse exclusivamente de uma tutela. “É óbvio que o médico teria que escrever a CID, mas não seria ele a dizer se aquilo é legítimo ou não. Eu vou demandar, por exemplo, que quero fazer a cirurgia de redesignação sexual. Então ele vai lá e vai dizer ‘essa mulher trans está demandando isso aqui e vai fazer’. Como uma mulher cis grávida demanda cuidados em saúde para prevenção e cuidados da própria gravidez”, explica.

País que mais mata pessoas trans

A violência ainda é uma realidade alarmante no cotidiano de homens e mulheres trans e travestis no Brasil. Segundo dados do Dossiê ‘Assassinatos e Violência contra Travestis e Transexuais Brasileiras’ elaborado pela Antra, estima-se que a expectativa de vida desta população seja de 35 anos de idade, enquanto a da população brasileira em geral, segundo o IBGE, é de 77 anos;  números que comprovam a alta vulnerabilidade à morte violenta e prematura no Brasil.

De acordo com o levantamento, em 2021, 140 assassinatos foram cometidos contra pessoas trans no Brasil. Um número que mantém o pais na liderança dos países que mais assassinam pessoas trans no mundo pelo 13º ano consecutivo. Segundo o relatório, cinco vítimas tinham entre 13 e 17 anos, 53 vítimas tinham entre 18 e 29 anos; 28 entre 30 e 39 anos; dez entre 40 e 49 anos; três entre 50 e 59 anos; e uma entre 60 e 69 anos. A idade média das vítimas foi de 29,3 anos. A morte prematura de jovens (15 a 29 anos) por homicídio vem crescendo no Brasil desde a década de 1980, como nos alerta o Atlas da Violência, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. É importante destacar que em 2019 e 2020 a idade da vítima mais jovem era de 15 anos e que, em 2021, esse número caiu para 13 anos.

“O impacto da violência na saúde da população trans é total. A gente vive, enquanto uma comunidade, com medo de sair na rua. E esse medo gera, muitas vezes, ansiedade, depressão, gera outros diversos agravos em saúde mental. A gente sabe que isso acaba desencadeando também
essa questão que as pessoas não conseguem se relacionar socialmente, sair de casa ou até mesmo buscar os cuidados que são necessários. Ou seja, a violência não é só atirar com uma arma, ela faz parte de uma estrutura que tem todos esses processos que acabam aniquilando essa pessoa socialmente, muito antes de assassiná-la efetivamente”, afirma Benevides.

Para Carla Silva, mulher redesignada transgênero que passou pelo processo transexualizador pelo SUS, uma série de cuidados voltados à saúde da população de travestis, transexuais e outras identidades de gênero, a violência e o preconceito esbarram em questões triviais do cotidiano. “Existem angústias que não têm nada a ver com o processo de redesignação sexual, que têm a ver com meu processo de contexto social diário. A gente sofre muito nessa questão de saúde, do nosso cuidado, o cuidar do nosso corpo. Com a questão da cirurgia de redesignação, a gente passou a frequentar mais o hospital, e lá muitas pessoas que também utilizavam o ambulatório, que não era apenas para pessoas trans, eram contra esse processo. A gente ouvia muitas piadas e comentários. Muitas ficavam desestimuladas e isso nos trazia uma intensa massificação pela procura mais rápida de transformar o nosso corpo para aquela identidade de gênero que a gente se afirmava, para que a gente não sofresse essa transfobia”, relata.

Para Bruna Benevides, mesmo que se pense a melhor política de saúde para pessoas trans, se ela não contar com um olhar atento ao enfrentamento da transfobia, seja ela simbólica, psicológica ou física, não irá funcionar. “Erradicar a violência em suas diferentes esferas deve ser um compromisso da gestão para que se possa dizer que na saúde, na educação, seja onde for, você vai ser bem recebida e não será submetida à violência por parte de profissionais que estarão reproduzindo transfobias e sexismos, entre outras questões”, frisa a secretária. “Um olhar atento, por exemplo, ao medo que as pessoas trans têm de pegar um ônibus, de estar em espaços coletivos é real, legítimo e precisa ser considerado. Há pesquisas sobre crianças e adolescentes trans, jovens trans que estão nas escolas, que acabam desenvolvendo problemas urinários, porque elas pulam refeições, diminuem a quantidade de água que bebem durante o dia, porque em muitos países, estados ou locais elas não têm garantido o respeito do uso ao banheiro de acordo com sua identidade de gênero, e essa é uma realidade do Brasil”, ressalta Bruna.

Avanços

Uma das primeiras grandes conquistas para a população trans foi o reconhecimento do nome social pelo SUS. Uma pesquisa intitulada “O uso do nome escolhido está ligado à redução dos sintomas depressivos, ideação suicida e comportamento suicida entre jovens transgêneros”, publicada pelo Journal of Adolescent Health, entrevistou 129 jovens transgêneros, transexuais e com outras identidades sobre o contexto do nome social em suas vidas. O resultado mostrou que quem pode usar o nome social nos ambientes em que frequenta apresenta até 71% menos sintomas de depressão, pensa 34% menos em suicídio e tem o risco de tirar a própria vida reduzido em 65%, em comparação às pessoas que não têm seus nomes sociais respeitados. Regulamentada pelo Decreto Presidencial Nº 8.727/2016, a utilização do nome social permite que pessoas trans sejam tratadas socialmente e institucionalmente pelo gênero com o qual se identificam no âmbito da administração pública federal.

“No meu trabalho eu virava meu crachá, o tempo inteiro eles falavam que o nome tinha que ser visto. Eu falava que as pessoas não me chamavam mais com aquele nome civil, porque aquele nome já estava morto, desde quando eu comecei a me automedicar, eu já estava matando aquele ser antigo porque aquele nome ainda intensificava aquele ser masculino. E aí levou muito tempo para o RH entender. Eles perguntaram se poderiam colocar o nome que eu queria que as pessoas me chamassem em caixa alta e meu nome civil pequeno. Eu respondi: ‘bem pequenininho, pra ninguém enxergar’”, relata Silva.

Processo Transexualizador

Outra grande vitória para a população trans e travesti no campo das políticas públicas foi o processo transexualizador, instituído pela Portaria nº 1.707 e nº 457 de agosto de 2008 e ampliado em 2013 pela Portaria nº 2.803, do MS, que garante o acesso a procedimentos como terapias hormonais (hormonização), cirurgias de modificação corporal e genital, assim como acompanhamento multiprofissional. O atendimento à população trans é formado pela atenção básica, que oferece o primeiro contato com o sistema de saúde, avaliações médicas e encaminhamentos; e a atenção especializada, que pode ser ambulatorial, com acompanhamento psicoterápico e hormonioterapia; e hospitalar, para a realização de cirurgias.  Este processo garantiu que muitas pessoas trans e travestis pudessem realizar modificações em seus corpos sem colocar sua saúde em risco.

Carla Silva, mulher redesignada transgênero, passou pelo processo transexualizador do SUS“Em 2006 eu estava começando minha transição. Nessa época não existia uma portaria, mas já se discutia o processo transexualizador. E aí eu comecei a frequentar alguns lugares de travestis e comecei a buscar algumas coisas, algo para tentar ficar feminina de fato, com rosto, corpo feminino. E aí, nos grupos que eu frequentava elas davam dicas e então eu comecei a me automedicar. Não existia um protocolo de saúde ou acompanhamento de médicos. Era uma época que muitas se autoinjetavam silicone [industrial], mas eu achava aquilo muito perigoso e não fazia. Então, eu tinha que me hormonizar, achava que precisava tomar anticoncepcionais femininos. E aí tomava superdosagens, que muitas das vezes traziam alguns problemas e consequências que vêm até os dias de hoje”, afirma Carla Silva.

São requisitos básicos para acesso ao processo transexualizador ser maior de 18 anos para iniciar o processo terapêutico e realizar hormonioterapia; maior de 21 anos para cirurgias de redesignação sexual, com indicação médica; e avaliações psicológicas e psiquiátricas durante um período de dois anos, com acompanhamentos e diagnóstico final que pode encaminhar ou não a paciente para a cirurgia. Hoje no Brasil há, de acordo com o MS, cinco hospitais habilitados a realizar cirurgias de transgenitalização pelo SUS, cerca de seis ambulatórios do SUS e 22 ambulatórios das redes de saúde estaduais.

A coordenadora do Ambulatório Multiprofissional de Identidade de Gênero do Instituto Estadual de Diabetes e Endocrinologia Luiz Capriglione (Amig/Iede), Karen de Marca explica o processo para que se possa ser atendido em seu ambulatório. Criado em 1999, o Amig atende hoje cerca de 700 pacientes com uma equipe interdisciplinar formada por endocrinologistas, psicólogo, psiquiatra, assistente social, enfermeira, fonoterapeutas, proctologista, cirurgião plástico e ginecologista colaboradora. “Cada hospital tem seu fluxo de atendimento, mas o nosso ambulatório funciona através de regulação pelo Sistema Estadual de Regulação (SER); para você acessar esse agendamento, tem que ser através da secretaria de saúde da sua cidade ou de uma clínica da família. Pra ele ser encaminhado pra essa vaga, ele tem que ter sido avaliado, algum médico ou um profissional de saúde mental tem que ter atendido esse paciente, tem que ter percebido que esse paciente tem interesse, que ele se identifica como uma pessoa transgênero ou, pelo menos, acha que tem uma questão de incongruência com seu gênero de nascimento, então basta que a pessoa se autoidentifique como uma pessoa trans ou que ache que realmente tem essa questão. Esse manifesto dele ao profissional de saúde já é o que basta para ele ser encaminhado”, conta a coordenadora.

“São cuidados que representam a vida das pessoas”, declara Benevides. “Durante a pandemia, por exemplo, houve uma interrupção dos serviços que eram específicos para os cuidados em saúde da população trans, então os ambulatórios e alguns dos hospitais pararam de fazer as cirurgias e pararam de prestar atendimento à comunidade trans, o que foi um grande problema, porque a gente passou a ouvir diversas vezes, em diversos momentos, que ‘eu prefiro morrer de Covid que morrer num corpo que não é meu’. É disso que a gente está falando, cuidados em saúde trans precisam estar incorporados e serem reconhecidos como cuidados em saúde”, afirma Benevides, destacando o processo transexualizador como uma conquista histórica do movimento trans. “O Brasil é um dos poucos países no mundo que tem uma política dessas no sistema público de saúde, porém ela está muito aquém daquilo que a comunidade trans demanda e merece e dos próprios procedimentos, da forma com que o SUS está organizado. Então, a gente precisa que gestores, políticos, pessoas pesquisadoras, entre outros, se debrucem cada vez mais em denunciar que a gente precisa de uma atualização completa e complexa para que esses cuidados se tornem cada vez mais acessíveis, desburocratizados e despatologizados, sobretudo”, diz.

A cirurgia foi um renascimento para mim. essa é a palavra: eu renasci. consegui o corpo que eu queria, completo, que eu almejava. minha cirurgia durou 10 horas. eu me lembro que eu entrei 8h da manhã, numa sexta-feira, entrei no centro cirúrgico, o médico auxiliar veio me buscar naquela maca, e aí ele falou ‘chegou o grande dia’. eu falei: ‘é, chegou o grande dia’”,  Carla se emociona ao relembrar

Política Nacional de Saúde integral LGBT

Instituída pela Portaria nº 2.836, de dezembro de 2011, a Política Nacional de Saúde integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais, tem o objetivo geral de promover a saúde integral da população LGBT, eliminando a discriminação e o preconceito institucional e contribuindo para a redução das desigualdades e para a consolidação do SUS como sistema universal, integral e equitativo. Além disso, entre os objetivos específicos, a política garante acesso ao processo transexualizador na rede do SUS; promove iniciativas voltadas à redução de riscos e oferece atenção aos problemas decorrentes do uso prolongado de hormônios femininos e masculinos para travestis e transexuais; define estratégias setoriais e intersetoriais que visem reduzir a morbidade e a mortalidade de travestis; entre outros.

Para a secretária de Articulação Política da Antra, esta Política ainda não se consolidou efetivamente para a população.  “Eu tenho minhas dúvidas se essa Política tem contribuído de forma efetiva, pois temos observado que ela não está implementada em todos os estados. Garantir seu pleno funcionamento deve ser o maior desafio. É preciso melhorar o compromisso de agentes públicos, gestores e todas as pessoas que estão pensando o acesso à saúde de forma universal e equânime, como previsto no SUS, reconhecendo que as identidades, as orientações sexuais, as diversidades corporais não têm sido consideradas nesse processo. E para isso é necessário melhorar a destinação de recursos: materiais, pessoais, estruturais e financeiros, e que possam gerar pesquisas, dados e informações muito mais aprofundados que mostrem o porquê de a Política não estar sendo implementada. Além disso, também é importante pensar na necessidade de atualização e revisão”, avalia.

Uma das consequências do enfraquecimento da Política é a falta de conhecimento e formação para boa parte dos profissionais de saúde, que não contam, nem na graduação nem em cursos técnicos, com ensino específico sobre gênero e sexualidades. Tendo em vista que o acolhimento inicial é determinante para esta população já tão estigmatizada pela sociedade e pelo sistema, alguns cuidados são fundamentais para a aproximação da pessoa com o sistema de saúde. “Me preocupa muito o acesso, as pessoas procuram muito o médico, óbvio, e muitas vezes o profissional de medicina não tem uma formação que considera questões básicas de gênero, de sexualidade, de raça, questões de identidade. Então é muito importante que haja essa formação”, afirma Gomes de Jesus.

Profissional do Amig/Iede atende paciente do ambulatórioPara Karen de Marca, falta interesse de muitos profissionais de saúde. “Acho que por uma questão de universalização dessa questão da variação de gênero, todo mundo sabe o que é uma pessoa trans. Eles podem não saber como mexer na hormonoterapia, que é a parte mais técnica, mas ainda é limitador, acho que, principalmente, pelo preconceito e pela falta de vontade de estudar a respeito disso. Porque as pessoas geralmente não se interessam, então não investem nesse estudo, então é fácil dizer: ‘isso eu não sei fazer, isso eu não atendo’”, observa a coordenadora.

Estigmas e marginalização

Segundo estimativas da Organização das Nações Unidas (ONU), em 2021 o Brasil registrou 50 mil novos casos de infecção por HIV, fazendo o país chegar ao número de 960 mil pessoas vivendo com o vírus no país. Entre os subgrupos com maior prevalência da doença estão aqueles compostos por pessoas com maior tendência a serem marginalizados pela sociedade e com menos acesso às condições primordiais de saúde, como homens gays e bissexuais e pessoas trans. Os números corroboram uma pesquisa da Universidade de Maastricht, na Holanda, que analisou por duas décadas dados de 34 países e concluiu que mulheres trans têm 66 vezes mais chances de contrair o vírus HIV.

“O que precisa ser colocado em pauta é quais são os processos que colocam essa comunidade em alta vulnerabilidade para infecção por ISTs, sobretudo HIV e Aids, e aí, sim, a gente vai entender que a violência, a dificuldade de ingresso e manutenção no mercado formal de trabalho, todos os processos e estigmas sociais que são colocados sobre a nossa comunidade, que familiares que precisam ter um olhar atento e acolhedor sobre aquelas pessoas acabam também tendo uma responsabilidade de contribuir para tirar a humanidade dessa parcela da nossa comunidade trans. Eu acho que é um desafio muito grande”, aponta Benevides.

Exclusão e saúde mental

Segundo o Boletim Epidemiológico do MS de setembro de 2021, o suicídio é um importante problema de saúde pública, com impactos na sociedade como um todo. A Organização Mundial de Saúde (OMS) estima que, no mundo, mais de 700 mil pessoas morrem por suicídio anualmente, sendo a quarta maior causa de mortes de jovens de 15 a 29 anos de idade. De acordo com o documento, apesar da complexidade de sua determinação, o suicídio pode ser prevenido com intervenções individuais e coletivas de diagnóstico, atenção, tratamento e prevenção a transtornos mentais, ações de conscientização, promoção de apoio socioemocional, entre outras formas. Quando se fala em população trans, esse enfoque deve ser visto com ainda mais atenção. Levantamentos da pesquisa “Pensamento suicida entre a população transgênero: um estudo epidemiológico”, de 2020, na qual foram entrevistados 154 participantes transexuais, apontam que 48,3% possuíam ideação suicida e 23,8% tentaram suicídio, constatando que existem níveis mais altos de ideação e tentativas suicidas em pessoas com disforia de gênero do que na população geral.

Esses números são consequência da exclusão por grupos sociais, até mesmo pelos próprios pais, famílias e ou pela sociedade, pela dificuldade de acesso ao mercado de trabalho e pelos constantes ataques transfóbicos, seja por meio de comentários ou violências físicas. Alguns pesquisadores utilizam até mesmo a expressão “foram suicidadas” para destacar a exclusão causada pelo sistema a determinadas pessoas que acabam cometendo o suicídio. Gomes de Jesus explica: “Quando se fala que a pessoa foi suicidada, estamos falando que existe toda uma forma de funcionamento e de indução da pessoa ao suicídio, e infelizmente, é mais alto entre população LGBT e particularmente população trans. Homens trans têm uma prevalência maior ainda do suicídio, principalmente os mais jovens. Particularmente no Brasil, como a maioria da população é negra, a gente vai ver muito isso entre homens trans negros. Então tem várias associações aí, não é só invisibilidade. É fundamental que, para além de criar uma imagem de que vagamente ‘a sociedade’ é responsável, como se ela fosse uma entidade, trazer para a responsabilidade todos os sujeitos, inclusive, aqueles muitos próximos à pessoa, seja a família biológica, a família de origem, seja escola, seja local de trabalho, que pela falta de apoio, pelo não investimento, leva essa pessoa ao suicídio”, explica.

Empregabilidade e saúde

Dados levantados pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), em 2020, demonstraram que 13,9% das mulheres trans e travestis trabalhavam em empregos formais. A pesquisa foi realizada com 528 transexuais que trabalhavam em sete cidades paulistas. Os baixos números, especialmente entre mulheres trans e travestis, colocam um sinal de alerta sobre a empregabilidade de pessoas trans, e apontam uma estigmatização que só contribui para a vulnerabilidade social dessa população.

“Diferentes dados mostram que a população trans no Brasil está muito restrita, por exemplo, ao trabalho sexual, principalmente quando se é uma mulher trans travesti. Vejo que um primeiro ponto é reconhecer a intersetorialidade de que questões de saúde da população trans decorrem do fato de que ela, muitas vezes, vive de forma precária em espaços em que ela foi desvinculada da família de origem, em que ela até tem laços, tem uma rede, mas pode ser que essa rede não seja suficiente para os cuidados dela em saúde”, aponta Gomes de Jesus.

Já Benevides explica que a questão da empregabilidade é tão central quanto a questão da violência “A gente perde a capacidade de ter renda, de ter dignidade, de poder contribuir inclusive para o próprio funcionamento, avanço, melhoria da sociedade como um todo. Quando a gente olha sobretudo o recorte de gênero, raça e classe, temos uma população de travestis e mulheres trans que em geral está sendo levada para a prostituição, e vemos os impactos disso na expectativa de vida dessas pessoas que já é muito baixa, que é essa média de 35 anos. A gente vê que a dificuldade do acesso ao emprego, que empurra essas pessoas para a prostituição e/ou para precarização”, argumenta a secretária.

Visibilidade

Apesar dos avanços conquistados, o dia 29 de janeiro relembra que ainda há muito a se fazer, visto que, além de todas as garantias que já eram buscadas, nos últimos anos ainda houve um agravamento na situação de pessoas trans. “Estamos em um momento em que se reabrem os canais de diálogo entre o governo e a sociedade civil, sobretudo pessoas politicamente mobilizadas, então nós temos, sim, muito que celebrar. Foi durante o governo Lula que instituiu-se o processo transexualizador, que implementou a política de saúde integral, que houve a possibilidade de a gente pautar isso em conferências e se transformou numa política. Então há, sim, muito o que celebrar, porém há muito o que se fazer. Vai ser necessário um compromisso e um esforço gigantesco de todos os setores, mas, sobretudo, neste novo momento, deste novo governo, para não apenas reparar os danos e os retrocessos, mas para que possamos pensar em avançar cada vez mais”, finaliza Bruna Benevides.

Para Jaqueline Gomes de Jesus, é fundamental pensar a partir desse mote, do tema que o Dia da Visibilidade Trans traz, a importância da representatividade e da participação das pessoas trans em todas as esferas. “É como se vissem a pessoa trans só como usuária de políticas específicas, como se não tivesse profissional de saúde trans, professora trans, juiz trans. É preciso que as instituições de ensino, as seleções docentes considerem a população trans, que a gente tenha mais ações afirmativas para a população trans, para que tenhamos mais profissionais, mais pesquisadoras, pesquisadores, que sejam pessoas trans também para estarem em diferentes áreas. O meu horizonte é esse, que a gente tenha uma inclusão das pessoas trans também nas políticas públicas por meio de ação afirmativa para que elas sejam gestoras, executoras dessas políticas”, conclui a professora.

* Esta matéria faz parte da edição 87 da Revista Poli, publicada em janeiro de 2023. Baixe aqui.