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Um olhar ampliado

Aproximação dos jovens com a ciência fortalece papel da escola e é estratégia contra o negacionismo
Juliana Passos - EPSJV/Fiocruz | 26/08/2024 11h27 - Atualizado em 28/08/2024 11h55
Foto: Greg Rakozy/Unplash

Einstein, Isaac Newton, Galileu, Marie Curie. Nomes de grandes cientistas rapidamente relacionados ao desenvolvimento da teoria da relatividade, da gravidade, da compreensão do sistema solar e da invenção do raio-x. Nomes lembrados e associados a uma ciência que parece muito distante do cotidiano e desenvolvida por uma genialidade rara de poucas pessoas. Mas a verdade é que existem aplicações da ciência em toda a parte, desde o uso diário da energia elétrica para manter a geladeira funcionando, até a reflexão sobre as desigualdades sociais. Então basta observar uma maçã caindo para ser cientista? Não é bem assim, mas a maneira de a ciência olhar o mundo com curiosidade, ceticismo e a necessidade de análise cuidadosa sobre um conjunto de fatos ou fenômenos contribui para uma visão mais ampla e complexa sobre a realidade.

Em linhas gerais, o método científico consiste em observar um problema, formular e testar hipóteses, sempre recorrendo a trabalhos de quem já fez algo parecido, e apontar conclusões. “Nosso ensino deveria ser uma oportunidade para os alunos aprenderem os processos da ciência, terem a oportunidade de realizar experimentos, porque a sala de aula é o lugar onde deveríamos aprender a identificar as críticas do mundo”, diz Sandra Selles, professora da Universidade Federal Fluminense (UFF).

Do interesse ao conhecimento
Aguçar esse interesse entre os jovens nem sempre é tarefa fácil, mas o caminho está mais na construção de políticas públicas que apoiem o desenvolvimento desse interesse do que na responsabilização dos estudantes. Essa argumentação, comum aos entrevistados desta reportagem, pode ser constatada a partir de alguns dados. De acordo com a pesquisa ‘O que os jovens brasileiros pensam sobre ciência e tecnologia – 2024’, realizada pelo Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Comunicação Pública da C&T (INCT/CPCT), que entrevistou cerca de 2 mil jovens entre 15 e 24 anos em fevereiro de 2024, 77% afirmam ser interessados ou muito interessados por meio ambiente, 67% por ciência e tecnologia e 66% por medicina e saúde. As respostas foram coletadas a partir de uma lista em que os entrevistados informavam seu grau de interesse sobre oito temas – ciência e tecnologia, saúde, meio ambiente, política, arte e cultura, esportes, economia e religião – e no topo ficaram os três primeiros. Os números são próximos ao obtido pela edição de 2023 da mesma pesquisa, realizada, no entanto, com a população geral – e não apenas com jovens. Nesse caso, o interesse por medicina e saúde é de 78%, meio ambiente 76% e 60% por ciência e tecnologia. Já a pesquisa realizada pelo Instituto Sou Ciência, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), entre 2021 e 2022, cujos resultados foram divulgados em dezembro de 2023, mostra um interesse ainda maior da população em geral com índices que superam os 80% sobre essas mesmas temáticas: medicina e saúde, meio ambiente e C&T. Nesse estudo, não houve um recorte específico para a juventude em relação ao interesse, mas a faixa etária entre 16 e 29 anos aparece entre o que mais defende o crescimento do investimento em ciência e pesquisa (64%).

Embora a curiosidade exista, esses jovens conhecem pouco sobre ciência e apenas uma minoria (8%) sabe citar um cientista brasileiro, de acordo com o levantamento realizado pelo INCT/CPCT. No topo da lista dos mais lembrados está o geofísico e divulgador científico Sérgio Sacani, mais conhecido como ‘Serjão dos Foguetes’, com 15% das menções, seguido por Santos Dumont (9%), um dos percursores da aviação, o astronauta e ex-ministro de C&T Marcos Pontes (9%) e o médico e cientista Oswaldo Cruz (8%). Já as instituições de pesquisa foram lembradas com um pouco mais de frequência em 2024: 19% ante aos dados obtidos em 2019 (12%), sendo a Fiocruz, o Butantan e o IBGE, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, as mais citadas. Em separado, o questionário perguntou se os entrevistados sabiam o nome de uma universidade, o que foi o caso de 32%. No topo da lista está a Universidade de São Paulo (USP), com 18% das menções, mas a diversidade predominou e 46% formam a categoria ‘Outros’ por terem sido mencionadas, mas que não superaram 1% das citações individualmente. “Quando a gente fala em interesse, até que ponto não estamos atribuindo aos indivíduos uma responsabilidade que é sistêmica, diante de uma necessidade de melhoria na infraestrutura, financiamento mais adequado e valorização do professor?”, questiona Paulo Carrano, professor da Universidade Federal Fluminense (UFF). Cristiane Braga, professora-pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) e coordenadora do Provoc, o Programa de Vocação Científica da Fiocruz, concorda. “Se o estudante não conhece, ele não escolhe. Na medida em que você proporciona um leque de possibilidades, eles terão uma maior facilidade de escolher”, diz.

Ciência na escola
E esse interesse pode ser estimulado por diferentes formas. Foi o cinema, por exemplo, um dos elementos responsáveis por motivar a estudante Sofia do Prado, que cursa o quarto ano do técnico em Análises Clínicas integrado ao Ensino Médio na Escola Politécnica da Fiocruz. “Com 14 anos eu vi uma série chamada ‘Acampamento Cretáceo’, que pertence à franquia de Jurassic Park, e a partir dela comecei a pesquisar, comecei a saber o que é uma coisa ali, outra coisa aqui”, recorda ela, atualmente com 17 anos. Hoje seu museu favorito é o de Ciências da Terra, localizado no Rio de Janeiro, que tem como destaque a exposição de fósseis de dinossauros. O fato de sua mãe ser bióloga é uma influência importante no seu gosto pela fauna e flora, mas Sofia atribui também à vivência na escola a possibilidade de se aproximar mais desses temas, a partir das experiências em laboratório. “Eu achava que o coração era um só bloco, então pudemos ver várias células juntinhas pelo microscópio. Também observamos bactérias e pudemos detalhar suas várias estruturas”, ilustra.

Foi também o cinema, mais precisamente os filmes de ficção científica ‘Interestelar’ e ‘Perdido em Marte’, que fez com que, ainda criança, Kawan Henrique, estudante do terceiro ano do curso de Biotecnologia da EPSJV/Fiocruz, começasse a sonhar em ser astronauta. Com a entrada na Escola Politécnica no Ensino Médio, ele passou a ter mais acesso ao computador e à internet e, com isso, a pesquisar sobre o espaço, descobertas da Nasa, a agência espacial dos Estados Unidos, e acompanhar canais no YouTube com vídeos sobre a temática. E essas atividades de pesquisa não foram só divertimento: em 2022 e 2023, o estudante foi o responsável por projetar e acionar um minifoguete na feira de ciências da escola. “Hoje em dia meu sonho [de ser astronauta] está mais pé no chão”, confessa, entre risos, “mas eu continuo interessado pelo espaço e quero fazer faculdade de astronomia”.

A possibilidade de ter acesso a laboratórios e a mediação de professores é fundamental para que o conhecimento que está disseminado na internet e nas redes sociais, principal fonte de informação da juventude, seja processado e apropriado adequadamente, na visão de Paulo Carrano. “Eles precisam de apoio, de suporte, de mediação. Nesse sentido, uma formação científica, que inclua tanto as ciências exatas quanto as humanas, pode ser protetora”, avalia, ressaltando ainda que o estímulo à formação científica é essencial para a formação humana que as escolas devem desenvolver. “Eu acredito que o espaço da sala de aula é importante para oferecer explicações mais complexas sobre o mundo, em especial a partir do ensino do método científico”, completa a professora da UFF Sandra Selles.

Escola além da sala de aula
É preciso ir além dos muros da escola, avaliam os entrevistados, e promover a visitação desses jovens a espaços de ciência e cultura, como museus e clubes de ciência. Sobretudo na realidade da Educação pública, essa aproximação, quando existe, muitas vezes é feita por iniciativas das próprias escolas ou professores, e Carrano defende que sejam parte de políticas amplas, para que não dependa do voluntarismo do professor. “Um professor que queira levar os seus alunos a uma casa de ciência que é distante da escola muitas vezes esbarra em grande dificuldade de transporte, de burocracias. Então, é preciso construir uma rede de apoio, um suporte para que essa ponte entre o laboratório e o mundo da vida possa ocorrer”, diz.

Essa também foi uma preocupação da pesquisa do INCT/CPCT. Os entrevistados foram apresentados a uma lista e questionados sobre quais atividades ou espaços científico-culturais foram frequentados pelo menos uma vez no último ano. Na liderança estão bibliotecas, parques ambientais e palestras – presenciais ou online – sobre temáticas relacionadas à ciência, que foram frequentados por 30% dos entrevistados que fizeram alguma atividade. A pesquisa não menciona a taxa de não visitação. No fim da lista estão os museus de ciência ou espaços de ciência e tecnologia, visitados por apenas 8%. A pesquisa questionou os entrevistados especificamente sobre os motivos da não visitação desses museus e entre as principais respostas estão a falta de tempo e de dinheiro e a inexistência deles. A ausência desses espaços para visitação foi a principal razão apontada pelos jovens das regiões Norte e Centro-Oeste, carência que pode ser constatada com um simples olhar no mapa de distribuição de museus pelo país. A Plataforma de Museus, do Instituto Brasileiro de Museus, informa a existência de mais de 3,5 mil estabelecimentos públicos ou privados no Brasil, sendo a maioria de história (1817), artes, arquitetura e linguística (501), ciências exatas, da terra, biológicas e da saúde (449).
O Sudeste concentra 1.561 instalações, seguido pela região Sul, com 1.054, e pelo Nordeste com 858. Na base dessa lista estão o Norte (179) e o Centro-Oeste (278). Os estados do Amapá, Roraima e Rondônia não possuem museus de ciência. “Se você não tem acesso, se não tem espaços onde isso possa ser renovado como interesse, a gente não tem nem como exigir que os jovens se interessem pela ciência, ou pela cultura, ou pela arte. É preciso ampliar a oferta”,
argumenta Carrano.

Entre os exemplos que podem servir de inspiração, ele cita o Museu da Ciência e da Indústria em Paris, na França, o da Ciência de Londres, na Inglaterra, e o de Munique, na Alemanha e o Espaço Ciência em Olinda, Pernambuco. O que esses espaços têm em comum são programas específicos relacionados à formação científica para jovens. “Eu acho que é preciso fortalecer o que já existe e, a partir daí, ampliar as experiências e políticas. E lembrar que os jovens precisam de suporte para que possam frequentar as escolas e esses espaços que vêm sendo criados com qualidade. Se não, a gente vai ter casas de ciência, centros culturais, museus de ciência vazios, porque esses jovens vão estar trabalhando e não vão poder frequentar esses espaços”, comenta.

Leonardo Werneck, estudante integrante do Grêmio da EPSJV/Fiocruz, defende um maior esforço na aproximação das instituições científicas com a população, especialmente entre aqueles segmentos que têm maior dificuldade de acessar escolas, espaços de ciência e arte. “Geralmente, a pessoa vira cientista a partir de um exemplo cotidiano e dentro de uma visão bastante fechada da ciência. Dificilmente as pessoas relacionam um cantor de trap às questões levantadas pelas ciências sociais”, ilustra, sugerindo a música como um ponto de conexão com o fazer científico. Ele também reflete sobre o recorte de raça, gênero e classe na ciência e aponta temas que deveriam ser trabalhados com mais ênfase como forma de expandir a compreensão sobre ciência em referência à experiência como estudante da EPSJV/Fiocruz. “Esses temas aparecem em nossas aulas de sociologia como quando estudamos sobre o livro ‘Mulher, raça e classe’, de Angela Davis, e discutimos o racismo ambiental, que é um tema atualíssimo”, exemplifica.

Foi a partir das aulas nas ciências sociais que a também estudante da Escola Politécnica Isis Rosa decidiu o tema do seu projeto de final de curso: ‘A importância da aceitação do cabelo crespo/cacheado para a construção da identidade da mulher negra’. A referência é a um trabalho de pesquisa que os estudantes da EPSJV/Fiocruz desenvolvem durante dois anos, como parte do ‘Projeto Trabalho Ciência e Cultura’ (PTCC), uma iniciativa pedagógica centrada na iniciação científica que faz parte da grade curricular do Ensino Médio integrado à Educação Profissional na Escola Politécnica da Fiocruz. O objetivo é provocar os alunos a desenvolverem todas as fases de um projeto de pesquisa que culmina com a produção de uma monografia, considerada, inclusive, como requisito para a conclusão do curso. “Eu já tinha interesse por ciência, tanto sociais quanto biológicas, mas no Poli estamos sempre inseridos em diversos projetos, dinâmicas e aprendizados e assim estamos sempre produzindo ciência e muitas vezes sem perceber”, diz Isis.

Ciência contra o negacionismo
O debate sobre a importância do ensino de ciências e do método científico tem ganhado força diante da disseminação de notícias falsas e da negação da ciência nos mais diversos espaços da sociedade. E na escola não é diferente. “Os tensionamentos entre os valores trazidos pelos estudantes de suas casas e o que é ensinado em sala de aula sempre foram comuns. No entanto, nos últimos anos, a ascensão de valores conservadores que levam à negação de consensos científicos se exacerbou”, avalia a professora Sandra Selles, da UFF. Ela atribui essa mudança a um movimento contemporâneo conservador atrelado a princípios religiosos e que envolve a universalização de padrões morais e a negação de consensos científicos. Entre os alvos estão conhecimentos consolidados como a teoria da evolução, que explica a origem dos humanos a partir de um elo comum com os macacos, a capacidade das vacinas de proteger a população de doenças e a importância da ciência em geral. Ela chama a atenção para o fato de que esse fenômeno é intensificado pelo uso massivo das redes sociais, que aceleram a disseminação de pautas negacionistas, e de que não se trata de meras atitudes individuais, mas de ideias de circulação massiva que têm o poder de atrasar ou mudar a direção de políticas públicas. 

A preocupação da professora é endossada pela pesquisa do INCT sobre a Comunicação Pública da Ciência e da Tecnologia, que indica um índice moderado de jovens que conferem as notícias antes de compartilhá-las. Na edição de 2019, apenas 15% disseram checar as informações repassadas, enquanto em 2024, esse número cresceu para 32%. No entanto, pouco mais da metade não considera uma tarefa fácil confirmar se determinada informação é verídica. Vanessa Fagundes, pesquisadora do INCT-CPCT, atribui esse aumento da desconfiança em relação aos conteúdos acessados a uma maior convivência com a desinformação e seu impacto no cotidiano desses jovens, em especial após a pandemia de covid-19. Mas alerta que ainda há muito a ser feito. “Os jovens consideram a ciência e a tecnologia como algo interessante e positivo. Temos nas mãos uma grande oportunidade para melhorar a comunicação da ciência e, consequentemente, talvez, o conhecimento desse público sobre o campo”, avalia. 

Para identificar o nível de compreensão sobre ciência e a adesão à desinformação sobre esse tema, o questionário elaborado pela equipe do INCT apresentou uma série de afirmações negacionistas e outras com conceitos científicos para os estudantes apontarem se as sentenças eram corretas ou falsas. O resultado demonstra pouco conhecimento em biologia, uma vez que uma minoria (28%) acertou que os antibióticos não servem para matar vírus, e sim bactérias; por outro lado, 81% sabem que a emissão de gás carbônico contribui para o efeito estufa. Entre os dados que chamam mais atenção na temática negacionista é o de que apenas 61% consideraram correta a afirmação de que os seres humanos descendem de outros animais. Na afirmação ‘As vacinas podem causar autismo’, 75% disseram “não”. Nos dois casos há um percentual significativo de respostas corretas, mas com margem para reflexões sobre o impacto do negacionismo. Fagundes prefere a cautela ao comentar esses dados e defende serem necessários mais estudos para entender as implicações das informações coletadas. “Temos que tratar esse dado com cuidado. Temos alguns indícios de que se trata de desinformação, mas precisamos entender um pouco melhor quem são esses jovens. Sabemos que existem outros fatores que influenciam essas opiniões sobre ciência e essa afirmação pode estar dialogando, por exemplo, com a religião, com alguma percepção relacionada à economia, à política. Mas é algo que de fato precisa ser estudado”, reflete.

Paulo Carrano observa que a dinâmica das redes sociais tem levado as pessoas a questionarem consensos científicos de um modo que, com simples frases, inverte-se ‘o ônus da prova’. “É preciso disseminar essa capacidade mediadora entre os próprios jovens e capacitar cada vez mais educadores para lidar com as novas gerações que precisam se apropriar de maneira qualificada do conhecimento produzido”, defende.

A professora da UFF Sandra Selles considera importante ressaltar que defender o método científico contra o negacionismo não deve significar um elogio cego à ciência. Ela lembra que é preciso ter uma visão histórica, exemplificando com o caráter racista de pesquisas do passado, que, por exemplo, atribuíram diferenças a cérebros de pessoas brancas, negras e indígenas. Da mesma forma, Selles reconhece que a ciência não é neutra, mas ressalta que a capacidade de duvidar, necessária ao processo científico, requer compreensão dos processos para não se incorrer no erro de negar algo simplesmente por desconhecimento. “Podemos ter como exemplo o funcionamento de um celular. Sabemos que funciona, mas se você me perguntar cientificamente como conseguimos chegar até aqui, não vou saber explicar em todos os detalhes. É preciso ter um equilíbrio entre a dúvida e a compreensão do modo de se fazer ciência”, afirma.

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