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Um olhar sobre os professores do ensino técnico de nível médio

Qual o perfil, os desafios e as lutas contemporâneas dos docentes desse segmento no país em meio à pandemia de Covid-19 e a implementação da Reforma do Ensino Médio
André Antunes - EPSJV/Fiocruz | 14/10/2021 12h55 - Atualizado em 01/07/2022 09h41

Os professores vêm sendo uma das categorias mais afetadas pela pandemia de Covid-19. Segundo dados do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) divulgados em junho, o número de contratos de trabalho encerrados em razão da morte do profissional entre os trabalhadores da educação cresceu 128% entre janeiro e abril de 2021, na comparação com o mesmo período do ano passado. Foi de longe a categoria com maior número de contratos encerrados por esse motivo no período, segundo a entidade. A pandemia também trouxe como consequência o fechamento das escolas e as dificuldades da adoção do ensino remoto, que de acordo com sindicatos da categoria representou a ampliação da jornada de trabalho, afetando também a saúde mental desses trabalhadores. Isso sem falar em um contexto anterior, marcado por cortes orçamentários para a educação como um todo e, no caso do ensino médio, pelo avanço da implementação da reforma aprovada em 2017.

É em meio a esse cenário desanimador que será celebrado, em 15 de outubro, o Dia do Professor. Para marcar a data, a Poli traz, nesta matéria, um olhar específico sobre os professores do ensino técnico de nível médio no Brasil. Qual o perfil desses profissionais? Quais os desafios para o exercício da profissão em meio às mudanças trazidas pela Reforma do Ensino Médio, aprovada em 2017? Quais os impactos e as especificidades da pandemia de Covid-19 para esses trabalhadores?

Perfis distintos

O professor do Instituto Federal do Rio Grande do Norte (IFRN) Dante Moura identifica perfis distintos de profissionais que atuam como docentes no ensino técnico de nível médio no país. “São três mundos diferentes: o da rede federal, o das redes estaduais e o da rede privada”, comenta. Segundo dados elaborados por ele a partir de informações da Plataforma Nilo Peçanha e do Censo da Educação Básica 2019 do Instituto Nacional de Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), uma primeira distinção se refere à formação. Entre os docentes dos institutos federais, Cefets e Colégio Pedro II, predominam profissionais com elevada titulação: 85,4% são mestres ou doutores (52% mestres e 33,4% doutores). Os dados gerais referentes à educação profissional do censo do Inep, que incluem os docentes da rede federal que atuam na educação profissional e tecnológica, mas também os das redes estaduais, municipais, e privada, mostram um número bem mais baixo de professores com título de mestrado ou doutorado: 24,63%, sendo 18,1% mestres e 6,62% doutores. Predomina a especialização lato sensu, que responde por 40,6% desses profissionais.

“A soma de mestres e doutores na rede federal hoje em termos percentuais é muito próxima do que é nas universidades federais. A remuneração também é diferente, evidentemente. Na rede federal existe uma carreira, com um salário bastante razoável para as condições da sociedade brasileira, que varia em função da titulação. Há um incentivo para que haja essa titulação no nível de mestres e doutores”, diz Moura, complementando que o cenário muda bastante em outras redes. “Nas redes estaduais, a questão salarial já é completamente diferente. A média salarial é bem abaixo da rede federal. Nessas exige-se desse professor que ele seja, pelo menos, graduado, mas em geral não há incentivo para que esse profissional tenha formação continuada no nível de mestrado e doutorado. O nível de pós-graduação que existe nas redes estaduais é predominantemente os cursos lato sensu”, explica o professor do IFRN.

Outra distinção importante, segundo ele, se refere aos vínculos empregatícios. A precarização do trabalho é maior nas redes estaduais, que em 2019 concentravam pouco mais de 22,2 mil contratos temporários de um total de 27.259 então existentes entre os docentes da educação profissional. Segundo o levantamento realizado pelo professor do IFRN, nas redes estaduais a soma dos contratos temporários, terceirizados e CLT (33.123) ultrapassa o número de docentes concursados (27.390); enquanto na rede federal o número de contratos temporários, terceirizados e CLT (4.660) representou 16,1% do total de servidores (28.963). 
Outro número do Censo da Educação Básica que chama atenção é o percentual de profissionais que atuam na educação profissional que são graduados, mas não possuem licenciatura: 40%. Essa é outra clivagem importante no perfil dos docentes que atuam na esfera pública. “Nós temos um grande problema nesse campo da formação de professores para a educação profissional”, ressalta Moura, complementando: “Não há cursos de licenciatura voltados para formar professor para educação profissional. Os professores licenciados foram formados para dar aula de língua portuguesa, de matemática, de história, química, física, biologia, no ensino médio propedêutico. Não é a mesma coisa você ser professor de matemática no ensino médio integrado a um curso técnico. Quando você está trabalhando para formar um técnico, a matemática vai precisar dialogar com aquela área”.

Além dos professores licenciados, há ainda um grande número de bacharéis e tecnólogos, diz Moura. “São os profissionais que atuam nas disciplinas técnicas. Alguém que vai atuar, por exemplo, como professor de um curso de eletrotécnica, fez uma graduação em engenharia elétrica, mas ele não estudou para ser professor. Ele se formou para ser engenheiro, e é transformado em professor sem ter passado por um processo formativo para isso”, afirma o professor do IFRN, para quem esse é um problema hoje tanto nas redes estaduais quanto na federal, ainda que nesta última seja menos acentuado.  “Deveria haver um programa de formação continuada centralizado em nível federal no Ministério da Educação, mas não há. Não havendo, deveria haver em cada instituição, mas também não há. Esse problema se intensifica nas redes estaduais, porque as condições são mais difíceis para se implementar um processo de formação continuada”, diz Moura.

Na esfera privada, diz ele, a realidade é pior. “A denominação muitas vezes utilizada na rede privada não é nem de professor, mas sim de instrutor, que é aquele profissional que, por exemplo, domina um determinado fazer prático e termina virando um instrutor daquele fazer que ele domina, muitas vezes sem ter nem graduação nem licenciatura. Não é a maioria, mas acontece com alguma frequência”.

Um problema histórico

Para a professora aposentada da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Lucília Machado, a carência de professores devidamente qualificados para o exercício da docência na educação profissional e tecnológica é um problema histórico no país, que resulta da falta de uma “política coerente, consistente e contínua”. “Ministrar conteúdos sobre processos técnicos e suas relações com o trabalho humano tem suas exigências, principalmente porque envolve contradições, necessidades sociais, decisões envolvendo alternativas críticas. Por outro lado, a atualização em conhecimentos tecnológicos demanda interação com o meio, pesquisa, senso crítico, capacidade propositora e avaliadora, o que requer respaldo de formação sólida”, pontua Machado. 

Não é preciso voltar muito no tempo para ilustrar a descontinuidade criticada pela professora da UFMG. Poucos meses após a aprovação da Lei 9.394/96, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), o governo do então presidente Fernando Henrique Cardoso instituiu o decreto 2.208/97, destinado a regulamentar artigos da nova legislação referentes à educação profissional. O decreto separou a educação profissional e o ensino médio, o que na prática fez com que a exigência de licenciatura prevista pela LDB para os professores da educação básica não incidisse sobre a educação profissional. “Daí o perfil do professor da educação profissional seria principalmente de caráter prático”, diz Marise Ramos, professora-pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz). “Isso ‘resolveu’ um problema que vinha sendo arrastado desde muito tempo, que era a falta de políticas específicas para a formação de professores na educação profissional”, diz ela.

Sete anos depois, continua Ramos, o problema foi recolocado no debate público pela apresentação do decreto 5.154/2004, que revogou o 2.208/97 e passou a permitir a integração do ensino médio com a educação profissional técnica de nível médio. “Ao permitir a integração entre os dois, ele recoloca a educação profissional no âmbito da educação básica escolar. Nesse sentido, passa a reconhecer o professor da educação profissional integrada ao ensino médio, que precisa ter requisitos de formação docente, formação pedagógica”, afirma.

Que formação?

Assim, em 2006, a Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica do Ministério da Educação (Setec/MEC) e o Inep promoveram o simpósio ‘Educação Superior em Debate: Formação de Professores para a Educação Profissional e Tecnológica’, cujo objetivo era sistematizar propostas e recomendações para a construção de uma política para a área. No ano seguinte, o Departamento de Políticas e Articulações Institucionais da Setec criou um grupo de trabalho reunindo pesquisadores e gestores que foi incumbido de elaborar uma proposta de Diretrizes Curriculares Nacionais para a formação de professores da educação profissional, a ser encaminhada para deliberação do Conselho Nacional de Educação (CNE).

Encaminhada ao CNE em 2008, a proposta do grupo de trabalho, segundo Lucília Machado, previa licenciaturas que poderiam ser ofertadas de quatro formas: para pessoas com diploma de graduação, com carga horária mínima global de 1,2 mil horas, constituídas por 800 horas de formação didático-pedagógica e 400 horas de estágio pedagógico supervisionado; integrado com curso de graduação em tecnologia, com carga horária mínima de 4 mil horas; para técnicos de nível médio ou equivalente, com carga horária mínima de 2,4 mil horas; e para concluintes do ensino médio, com carga horária mínima de 3,2 mil horas.
No CNE, foi acrescentada uma quinta possibilidade, que seria a habilitação para a docência por meio da oferta de cursos de pós-graduação lato sensu, desde que estruturados para atender às necessidades da educação profissional. Essa proposta estava alinhada com uma resolução de 1997 do CNE, que dispõe sobre os programas especiais para a formação pedagógica de docentes para as disciplinas da educação profissional em nível médio, mas também do ensino fundamental e do ensino médio. Voltada para trabalhadores com curso superior e conhecimentos práticos em uma determinada área, a resolução permitia a oferta de cursos de licenciatura de 540 horas como forma de preparação para o magistério. Na saúde, a resolução serviu de base para a criação do Projeto de Profissionalização dos Trabalhadores da Área de Enfermagem (Profae).

“A proposta não foi para frente porque o CNE entendeu que primeiro tinha que definir as normas gerais para a formação de professores para toda educação básica em suas etapas e modalidades, para depois aprovar diretrizes específicas para a educação profissional”, resgata Francisco Cordão, ex-conselheiro do CNE que relatou a proposta das DCN para a educação profissional. “Só que demorou muito para se chegar a um acordo no Conselho, e as diretrizes para a educação básica foram aprovadas só em 2015”, lembra Cordão, que saiu do CNE em 2016.

Notório saber: precarização?

Naquele mesmo ano, no entanto, o governo do então presidente Michel Temer apresentou a Medida Provisória 746, que marcaria uma guinada nas políticas de educação voltadas para o ensino médio, com consequências profundas para a educação profissional. Aprovada pelo Congresso Nacional no ano seguinte – em meio a uma ampla mobilização de entidades estudantis, sindicatos de professores e associações acadêmicas – a MP se tornaria a lei 13.415, que instituiu a chamada Reforma do Ensino Médio. Entre outras medidas, a lei estabeleceu uma divisão do currículo do ensino médio em duas partes: uma comum a todos os estudantes, orientada pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC), aprovada em 2018, e outra orientada pelos chamados itinerários formativos, entre os quais a formação técnica e profissional.

A nova lei incluiu no texto da LDB a polêmica figura do “notório saber” como um critério para a contratação de professores para as disciplinas relativas a esse itinerário, abrindo a possibilidade de que profissionais com experiência profissional em determinada área, ainda que sem formação para a docência, sejam contratados como professores das disciplinas ligadas a formação técnica. Mais tarde, em janeiro de 2021, o CNE aprovou as novas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Profissional e Tecnológica (EPT), que trazem, no capítulo sobre a formação docente na EPT, artigo que estabelece que para atender ao itinerário de formação técnica e profissional criado pelo lei 13.415/2017 podem também ser admitidos para a docência profissionais com “notório saber reconhecido pelos respectivos sistemas de ensino, atestados por titulação específica ou prática de ensino em unidades educacionais da rede pública ou privada ou que tenham atuado profissionalmente em instituições públicas ou privadas, demonstrando níveis de excelência profissional, em processo específico de avaliação de competências profissionais pela instituição ou rede de ensino ofertante”.

Para Marise Ramos, a distinção criada pela introdução do notório saber na LDB cria um fosso entre o perfil de formação exigido dos profissionais responsáveis pela formação geral e os da formação profissional. “O perfil de formação dos professores da educação profissional é basicamente definido pela experiência profissional, e não pelo domínio científico e tecnológico daquela profissão e daquela área”, ressalta a professora-pesquisadora da EPSJV/Fiocruz,para quem a flexibilização da exigência de formação dos professores da educação técnica é um ponto que sinaliza uma orientação pelo barateamento da oferta de educação profissional pelo Estado.

Lucília Machado defende posição similar. Para a professora aposentada da UFMG, o encaminhamento dado ao tema do notório saber pela Reforma do Ensino Médio vem ao encontro da precarização da formação técnica e profissional oferecida aos estudantes brasileiros. “A adoção desse dispositivo é mais um dos ingredientes de reafirmação da escola dual e da desigualdade social”, critica. E complementa: “Tal medida provoca, mais uma vez, o adiamento da adoção de políticas sérias de formação de professores para a educação profissional e tecnológica. Ela representa a desvalorização da carreira docente e faz parte das estratégias destinadas a isentar o Estado de sua responsabilidade com a educação brasileira”.

Segundo Dante Moura, o notório saber é uma questão que ainda deve ser regulamentada pelas redes estaduais e pelos institutos federais. “Qual é o movimento que nós estamos fazendo na rede federal? Não fazer essa regulamentação. Mas eu tenho certeza que a maioria das redes estaduais vai regulamentar isso, porque a iniciativa privada já está pressionando”, aponta o professor do IFRN. Para ele, com a introdução do notório saber, a lei 13.415/2017 legalizou uma prática que, anteriormente, era ilegal de acordo com o texto da LDB, que era a contratação de profissionais que não tenham, no mínimo, a graduação, para ministrarem disciplinas da formação técnica. “Isso já era comum na rede privada, e agora é permitido por lei”, diz Moura.

A coordenadora-geral do Sindicato Nacional dos Servidores Federais da Educação Básica e Profissional (Sinasefe), Camila Marques, por sua vez, assinala que a reforma do Ensino Médio aprofunda um processo de precarização do trabalho docente na educação técnica de nível médio de várias formas. Primeiro, pela introdução do notório saber como critério de contratação de professores, que para ela aponta para a desvalorização da categoria enquanto educadores, e pela precarização do trabalho e da qualidade do ensino, na medida em que abre caminho para a contratação de profissionais sem formação pedagógica e por meio de vínculos empregatícios sem estabilidade. Mas ela também destaca que um dos efeitos da implementação da reforma tem sido uma piora nas condições de trabalho de profissionais das disciplinas da formação geral que tiveram sua carga horária reduzida. “Com a reforma, os alunos só têm contato nos primeiro e segundo anos com algumas das disciplinas, como filosofia e sociologia, por exemplo. Em alguns locais têm só um semestre. Então o professor, para conseguir a carga horária mínima, precisa trabalhar em várias cidades, se deslocar para poder dar aula. É uma precarização muito grande para o trabalhador”, lamenta Marques.