O ano de 2023 ficou marcado pela manutenção dos altos índices de assassinatos, suicídios e mortalidade infantil entre os povos indígenas, bem como pela continuidade do cenário de invasões, conflitos e ações violentas contra essas comunidades registrado durante o último ciclo de governo, que se encerrou em 2022. É o que denuncia o ‘Relatório Violência contra os Povos Indígenas no Brasil – Dados de 2023’, publicação anual do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), entidade vinculada à Confederação Nacional dos Bispos (CNBB). O documento foi divulgado no dia 22.
Os números
O documento lista os dados da violência sofrida pelos indígenas ao longo de 2023 em três categorias principais: violência contra a pessoa, contra o patrimônio, e violência por omissão do poder público. Segundo o relatório, em 2023 foram registrados 411 casos de violência contra a pessoa, cinco a menos do que em 2022. Entre os dados destaca-se o número de assassinatos (208), de tentativas de assassinato (35), de violência sexual contra indígenas (23), lesões corporais (18) e ameaça de morte (17). O relatório destaca a relação entre a violência contra os indígenas e os conflitos territoriais envolvendo interesses econômicos sobre suas terras, como no caso dos ataques de garimpeiros contra indígenas Yanomami em Roraima e no Amazonas, e casos de violência armada contra os povos Tembé e Turiwara, no Pará, em conflitos com empresas ligadas à monocultura e produção de dendê.
Os casos de violência contra o patrimônio somaram 1.276 casos em 2023, ligeira queda em relação a 2022 (1.334). Casos de omissão e morosidade na regularização de terras somaram a maioria dos registros: 850. A categoria de “invasões possessórias, exploração ilegal de recursos naturais e danos diversos ao patrimônio” somou 276 casos e a de “conflitos a direitos territoriais” somou 150 casos. “As categorias de conflitos territoriais e de invasões a terras indígenas mantiveram-se em patamares elevados, apesar de registrarem ligeira redução em relação a anos anteriores. Se por um lado os dados refletem a retomada das operações de fiscalização ambiental, por outro, a maior parte dos relatos indica a continuidade das ações de invasores, a desestruturação dos órgãos responsáveis por estas tarefas e a falta de uma política permanente de proteção aos territórios indígenas”, avalia o documento.
As mortes de crianças indígenas de 0 a 4 anos em 2023 representam os principais casos do que o relatório do Cimi chama de ‘violência por omissão do poder público’. Foram 1.040 registros no ano passado, um aumento expressivo em relação ao ano anterior, quando foram contabilizados 835 casos. “Isso é muita morte em se tratando de povos indígenas”, lamenta a antropóloga Lucia Helena Rangel, assessora do Cimi e professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). E pondera: “A Sesai está melhorando aos poucos. Há de se reconhecer que há um empenho em melhorar o atendimento à saúde dos povos indígenas. Mas ela foi completamente destruída no governo anterior”.
Além disso, os registros de violência por omissão do poder público contabilizam os casos de suicídios (180), mortes por desassistência à saúde (111), desassistência na área da saúde (101), desassistência na área de educação (61) e desassistência geral (66). “Desassistência é quando os indígenas denunciam alguma falta de atendimento. Na educação por exemplo, pode ser que os estudantes não estejam recebendo merenda de forma continuada, não recebem material escolar. Não adianta ter uma divisão de educação indígena no MEC, que existe, e que vai construir princípios, propostas, diretrizes, mas quem vai executar isso são os estados, que em muitos casos não têm compromisso com essa pauta”, afirma a assessora do Cimi. Na área da saúde, continua Lucia, são frequentes casos como falta de remédios, de meios para remover doentes para um hospital, de água limpa para beber, entre outros. “São violências no sentido de omissão, de o Estado não dar a devida assistência. E que tem consequências muito sérias e muito rápidas na área da saúde. Por isso o alto número de crianças que morre de doenças que seriam tratáveis, como disenteria, insuficiência respiratória”.
O relatório avalia que “a realidade social se impôs”, apesar do “ambiente de esperanças renovadas” com o fim do governo “abertamente anti-indígena” de Jair Bolsonaro e a implementação, pelo governo de Luiz Inácio Lula da Silva, de medidas como a criação do inédito Ministério dos Povos Indígenas (MPI) e a nomeação de lideranças indígenas para a chefia de órgãos como a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e a Secretaria de Saúde Indígena do Ministério da Saúde (Sesai/MS). “As disputas [...] refletiram-se num cenário de continuidade das violências e violações contra os povos originários e seus territórios em 2023. O primeiro ano do novo governo federal foi marcado pela retomada de ações de fiscalização e repressão às invasões em alguns territórios indígenas, mas a demarcação de terras e as ações de proteção e assistência às comunidades permaneceram insuficientes. O ambiente institucional de ataque aos direitos indígenas foi espelhado, nas diversas regiões do país, pela continuidade das invasões, conflitos e ações violentas contra comunidades”, aponta o relatório. De acordo com o relatório, o principal motivo desse ambiente institucional favorável foi a aprovação no final de 2023, do ‘Marco Temporal’ pelo Congresso Nacional deu o tom das disputas que se dariam a partir dali sobre os direitos indígenas nos três poderes da República. A lei 14.701/2023 determina que só podem ser demarcadas terras indígenas sob a posse ou em disputa comprovada na data de promulgação da Constituição de 1988 - tese que já havia sido julgada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal (STF) um mês antes da aprovação da lei.
Para Lucia Helena, os dados estão mostrando que, apesar dos avanços obtidos em 2023, faltou força para eleger um Legislativo mais aberto às causas indígenas. “Enquanto o governo cria ministério e os indígenas se organizam, o Congresso Nacional está votando o marco temporal, mineração em área indígena. Essas ações legislativas ressoam nas áreas de conflito, nas terras indígenas, nos estados, como uma garantia de impunidade”, diz a assessora do Cimi. E completa: “Persiste o cenário de impunidade avalizado pelo Congresso Nacional. Vários ex-ministros do Bolsonaro hoje são deputados, senadores. Até o Ricardo Salles [ex-ministro do Meio Ambiente do governo Bolsonaro e atualmente deputado federal pelo PL-SP] está lá. O Bolsonaro se foi mas o bolsonarismo ficou, e com maioria no Congresso”.