Serviços 
O conteúdo desse portal pode ser acessível em Libras usando o VLibras

Uma reforma (também) na Educação Profissional

Acaba de ser divulgada na Comissão de Educação do Senado a proposta de substitutivo do PL 5.230, que altera o Novo Ensino Médio. Entenda, nesta matéria, os impactos que o projeto original tem sobre a formação técnica
Cátia Guimarães - EPSJV/Fiocruz | 12/06/2024 14h29 - Atualizado em 13/06/2024 14h42
Foto: Fernando Frazão/ABr

Num debate durante a Conferência Nacional de Educação (Conae) que aconteceu em janeiro deste ano, a professora Monica Ribeiro, da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e da Rede EMPesquisa, defendeu que a Reforma do Ensino Médio é também uma reforma da Educação Profissional. Quatro meses depois, os rumos dessa etapa da Educação Básica continuam sendo discutidos no Legislativo mas as disputas em torno do Projeto de Lei 5.230/24, que modifica aspectos do Novo Ensino Médio (NEM), parecem confirmar esse argumento: afinal, a maior parte das mudanças que o texto apresentado pelo Executivo sofreu na Câmara dos Deputados tem relação direta com o itinerário da formação profissional, a parte flexível do currículo que se propõe a oferecer aos jovens uma qualificação para o mundo do trabalho. O exemplo mais visível tem a ver com a carga horária: enquanto os estudantes que cursarem os outros itinerários formativos terão 2,4 mil horas de formação geral, aqueles que optarem pela formação profissional terão penas 2,1 mil horas de disciplinas ‘básicas’. Mas não para por aí: a volta do notório saber como critério aceitável para a docência e a autorização para parcerias – inclusive com instituições privadas – são dois outros exemplos de medidas que têm sido criticadas por pesquisadores e profissionais da Educação desde o início do debate sobre a Reforma e que atingem diretamente a concepção e a prática da Educação Profissional que vinha se desenvolvendo no Brasil. Não por acaso, esses são também os focos principais da maior parte das Emendas Parlamentares que tinham sido apresentadas ao projeto no Senado até o fechamento desta reportagem.

Fim do integrado?

Desde que todo esse processo começou, em 2016, pesquisadores têm alertado de que o desenho proposto pela Reforma, com conteúdos previstos na Base Nacional Comum Curricular (BNCC) somados a um iti-nerário de formação profissional, enfraquece o modelo do Ensino Médio Integrado, reconhecido como uma experiência exitosa que prevalece nos Institutos Federais. Entendida como “preparação geral para o trabalho e, facultativamente, a habilitação profissional”, de acordo com a Lei de Diretrizes e Bases (LDB) da Educação Nacional (nº 9.394/1996), em relação ao Ensino Médio a Educação Profissional pode ser oferecida de forma “articulada” ou “subsequente”. Neste último caso, trata-se de cursos voltados para a qualificação de jovens e adultos que concluíram a Educação Básica. Já na forma articulada, essa formação acontece ao mesmo tempo que o Ensino Médio, podendo, por sua vez, se dar de modo integrado ou concomitante. E é aqui que começa o problema.

Formalmente, a diferença entre essas duas formas de oferta é que na primeira o estudante tem apenas uma matrícula, enquanto na segunda ele tem um vínculo com o curso de formação profissional e outro no Ensino Médio, em geral, em instituições distintas. Mas essa diferença carrega também um debate curricular, já que o principal argumento de quem ‘milita’ em defesa do Ensino Médio Integrado à Educação Profissional é que o aprendizado para o trabalho não pode ser isolado dos conhecimentos científicos gerais que fundamentam a prática – e é exatamente essa concepção que, segundo os pesquisadores ouvidos para a reportagem, vem sendo cada vez mais ameaçada pela Reforma do Ensino Médio. “A concepção de Ensino Médio que orienta o PL [5.230/24] é escancaradamente dual, segmentada”, diz Lucas Pelissari, professor e pesquisador da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), ressaltando que a diferença de carga horária entre os currículos com e sem profissionalização, que foi instituída a partir do substitutivo do deputado Men-donça Filho (União-PE) ao projeto do governo, torna essa dualidade ainda mais explícita. Como se isso não fosse o bastante, o professor e pesquisador do Instituto Federal do Rio Grande do Norte (IFRN) Dante Moura alerta que o texto aprovado na Câmara também revogou o trecho da lei do Novo Ensino Médio atualmente em vigor (nº 13.415/17) que era considerado a principal brecha que permitiria às redes e escolas desenvolverem a integração curricular. Ele se refere ao parágrafo 3º do artigo 36, que hoje autoriza os sistemas de ensino a proporem um “itinerário formativo integrado”, composto tanto por conteúdos da BNCC quanto dos diferentes itinerários formativos que integram a parte flexível do currículo – e que deixará de existir, se o texto for aprovado como está.

Discurso e projeto

Com tudo isso, se desde o início a Reforma já desincentivava a oferta do Ensino Médio Integrado, na avaliação de Pelissari, as últimas mudanças que o texto sofreu praticamente inviabilizam a continuidade desses cursos. “A oferta do integrado, se seguir acontecendo, vai ser um ato de resistência, heroico”, aposta. Por quê?

Aqui novamente o debate sobre a carga horária ajuda a entender o argumento. O texto original do Projeto de Lei 5.230/24, apresentado pelo governo federal, destacava a ampliação para 2,4 mil horas de formação geral básica como um avanço importante em relação ao Novo Ensino Médio tal como tinha sido implementado até então, mas já admitia, “excepcionalmente”, que esse total fosse reduzido para 2,1 mil quando se tratasse da “oferta de cursos técnicos, com certificação prevista no Catálogo Nacional de Cursos Técnicos”. Na sequência, o texto sinalizava a extensão da jornada e o Ensino Médio Integral como alternativas para as formações que demandassem mais do que as 3 mil horas estabelecidas como carga horária mínima para o segmento.

O que há é uma indução de que o itinerário de formação técnico profissional seja realizado por meio dos cursos FIC
Dante Moura

E o que mudou? Primeiro, o que no texto do governo era admitido como uma excepcionalidade se torna regra com o substitutivo do deputado Mendonça Filho, aprovado na Câmara e agora em apreciação no Senado. Mas há ainda uma sutileza importante: embora o argumento do parecer tenha sido de que uma exigência maior do que as 2,1 mil horas inviabilizaria a oferta de cursos técnicos, já que a carga horária mínima desse tipo de formação são 800 horas, o texto apresentado por ele – diferente da proposta original do governo – reduz o tempo de formação geral em todas as situações que envolvem o itinerário 5, portanto, mesmo nos casos em que, em vez de uma habilitação profissional, as redes ofereçam apenas uma sequência de cursos rápidos(como cabeleireiro, manicure ou brigadeiro gourmet, classificados pela legislação como de Formação Inicial e Continuada, FIC). Para o professor do IFRN, essa contradição – que parece passar desper-cebida nas notícias que destacaram como o projeto aprovado na Câmara valorizaria os cursos técnicos – é apenas aparente. “É uma incoerência no texto, no discurso. Mas é coerente com a intenção que está por trás disso, que é desresponsabilizar os estados de terem que fazer cursos técnicos, que são caros”, analisa Dante Moura. E completa: “O que há é uma indução de que o itinerário de formação técnico profissional seja realizado por meio dos cursos FIC”.

E isso se torna ainda mais claro, segundo o professor, com a mudança que ele considera a mais grave e com maior impacto sobre a Educação Profissional entre aquelas que o substitutivo aprovado na Câmara promoveu no PL 5.230: a redução dos itinerários para um mínimo de 600 horas. “Nenhum curso técnico tem apenas 600 horas”, constata, argumentando que, nas poucas escolas técnicas estaduais que existem, que normalmente são de tempo integral, provavelmente continuarão a ser oferecidos cursos técnicos, mas que, no restante das instituições, que compõe a imensa maioria da rede pública, uma parte do Ensino Médio dos jovens será reduzida a cursos rápidos. Reportagem publicada na Poli nº 68, de 2020, já apontava essa ten-dência que, na avaliação do professor, só deve aumentar se o PL 5.230 for aprovado como está.

Completa esse quadro a definição – que já constava do texto original do governo – de que o itinerário de formação técnica e profissional pode ser oferecido por meio de “cooperação técnica” com instituições de Educação Profissional – o que, aliás, reforça o modelo da concomitância em substituição ao integrado. O substitutivo aprovado na Câmara mantém, no texto, o alerta de que essas parecerias devem se dar “pre-ferencialmente” com instituições públicas, mas, segundo Moura, o que tem acontecido na prática é rigorosa-mente o contrário. Na pesquisa que coordena sobre a Reforma do Ensino Médio no Nordeste, o professor do IFRN identificou que todos os estados da região estão lançando mão de parcerias para executar o NEM e os entes que mais aparecem nessa cooperação são privados. Segundo ele, os dados mostram que as parcerias firmadas foram voltadas, principalmente, para a formulação do currículo, a formação dos professores e a oferta do itinerário 5, de formação profissional – e nesse caso, de acordo com o professor, a entidade que mais está presente é o Sistema S, ligado às confederações empresariais.

Da mesma forma, segundo Moura, embora alguns prevejam também cursos técnicos, todos os estados do Nordeste oferecem o itinerário de formação profissional no Ensino Médio na forma de cursos FIC. “Essa indução já está funcionando”, atesta, alertando que a manutenção do texto tal como aprovado na Câmara pode piorar o cenário. Recuperando a denúncia da concepção dual que prevalece no texto da Reforma, Lucas Pelissari lembra que, “obviamente”, essa diferenciação de carga horária e de currículo “vai acabar se expressando nos públicos que acessam esses dois sistemas distintos”: a formação aligeirada, para o trabalho, voltada para os mais pobres, que precisam aprender a ‘se virar’, e a formação científica reservada para os menos desfavorecidos. Nas palavras de Moura, trata-se de formar uma “subjetividade flexível”, que ajude a “classe trabalhadora a aceitar a realidade de que não tem mais emprego fixo, é tudo temporário”.

Para completar, as modificações da Reforma que estão sendo discutidas agora no Congresso também in-corporaram elementos da lei 14.645/23, relatada pela deputada Tabata Amaral (PSB-SP) e aprovada em 2023, que autoriza o aproveitamento de processos de aprendizagem extraescolar como carga horária quando o Ensino Médio se der tem tempo integral. No texto aprovado na Câmara, estão incluídos nessa lista de possibilidades, que passariam a contar para compor as exigências curriculares de uma etapa da Educação Básica, experiências como estágio, trabalho voluntário, outros cursos de qualificação profissional, projetos de iniciação científica e até “atividades de direção em grêmios estudantis”.

Por dentro dos Institutos Federais

Reconhecidos pela experiência exitosa do Ensino Médio Integrado à Educação Profissional, os Institutos Federais são historicamente um oásis no sistema público de ensino, tanto no que diz respeito à boa formação científica quanto em relação à formação técnica. Em reportagens anteriores, pelas quais a Poli vem acompanhando o desenrolar das mudanças no Ensino Médio desde o início, o Conselho Nacional dos Institutos Federais (Conif), que reúne 41 dessas entidades, afirmou mais de uma vez que o currículo das instituições da Rede Federal de Educação Profissional e Tecnológica (EPCT) não seria afetado pela Reforma. “Mas isso não é o que a gente tem verificado na prática”, diz Pelissari, que é um dos coordenadores de uma pesquisa que está analisando exatamente o impacto da Reforma na Rede EPCT. Partindo de uma mostra de 15 Institutos Federais, ele alerta que muitos projetos de cursos acabaram por incorporar “parâmetros” estabelecidos pela Reforma, principalmente a redução da carga horária da formação geral. Segundo Pelissari, entre 30% e 40% dos planos de curso analisados a partir da mostra da pesquisa já estão organizados em 1,8 mil horas ou algo muito próximo desse número – vale lembrar que essa é a carga horária mínima estabelecida pelo Novo Ensino Médio que está em vigor hoje, enquanto não são aprovadas em definitivo as modificações propostas pelo PL 5.230/24, que ampliará esse número. “Isso sem falar [na presença] de componentes curriculares com conteúdo de empreendedorismo e da EaD”, completa o pesquisador, informando que há situações em que todos os novos cursos de um instituto adotaram até 20% do conteúdo à distância. “Isso não é exceção, mas também não é regra”, pondera, lembrando que “muitas experiências de integração [curricular] seguem acontecendo”, apesar de as mudanças defendidas pela Reforma atingirem cada vez mais os Institutos Federais e o ‘modelo’ de Educação Profissional que eles representam.

Dante Moura explica que, no caso da redução da carga horária da formação geral, para os IFs a Reforma acabou funcionando como um respaldo legal a uma mudança que tentava responder à restrição orça-mentária causada por outra medida do então presidente Michel: a Emenda Constitucional 95, que instituiu um teto de gastos para o governo federal. Foi nesse contexto, conta o professor, que o Conif alterou os critérios que definiam a distribuição dos recursos entre os Institutos Federais, passando a considerar a carga horária exigida pelo Catálogo Nacional de Cursos Técnicos para cada habilitação e não mais as horas desenvolvidas efetivamente em cada plano de curso. O resultado, segundo ele, é que realizar um curso com mais tempo do que o necessário do ponto de vista legal se tornou desvantajoso, gerando um “movimento nacional” de redução da carga horária nos Institutos Federais.

A reportagem enviou perguntas ao Conif, tanto sobre a avaliação do texto do PL 5.230 quanto em relação às mudanças em cursos dos Institutos Federais na direção da proposta da Reforma, mas o Conselho respondeu, via assessoria de imprensa, que só se manifestaria sobre o tema após uma reunião agendada para data poste-rior ao fechamento desta edição.

Mudança de rumo

Tudo isso é o ponto de chegada – pelo menos até agora. Mas, na fala que abre esta matéria, realizada durante a Conae, Monica Ribeiro traçou um breve histórico que tentava mostrar como essas mudanças que impactam a Educação Profissional representam também um ponto de “ruptura” com a política que vinha sendo desenvolvida antes. “Nós vínhamos num caminho interessante a partir de 2004”, disse, citando medidas como o decreto 5.154/04, que substituiu o 2208/97, e a criação da Rede Federal de Educação Profissional e Tecnológica, em 2008, como iniciativas que fomentaram a concepção e a prática do Ensino Médio Integrado, sem contar o processo de interiorização dos Institutos Federais, que levou essa formação a lugares a que antes ela nunca tinha chegado.

Embora tenha havido “ensaios” de reforma antes, o ponto de ruptura, segundo ela, vem em 2016, com a Medida Provisória 746, que, ao modificar o Ensino Médio, impacta diretamente também a Educação Profissional. “Quando propõe a Educação Profissional como itinerário formativo, isso significa que não haverá qualquer compromisso com a integração entre base científica e formação técnica profissional”, disse Ribeiro, explicando que essa nova direção que a política tomou expressa concepções que vão muito além do campo da Educação: “[Com] a Reforma, nem sequer [se] prepara para o emprego, prepara-se para o desemprego” .

Próximos passos

Waledemir Barreto/Agência SenadoNo momento em que esta matéria foi concluída, a versão do PL 5.230/23 aprovada na Câmara na forma do substitutivo de deputado Mendonça Filho estava em debate na Comissão de Educação, Cultura e Esporte do Senado, de onde será encaminhada para votação em plenário e, caso haja mudança no texto, deverá ser devolvida para nova discussão na Câmara. No dia 11 de junho, a relatora do projeto, senadora Dorinha Seabra (União-TO), apresentou uma proposta de substitutivo. O presidente da comissão, senador Flavio Arns (PSB-PR) acatou o pedido de vistas coletivas, de modo que não há ainda previsão de votação do texto nesse espaço. Antes da finalização do relatório, quando a versão desta reportagem para a Revista Poli estava sendo finalizada, foram enviadas perguntas para a senadora professora Dorinha Seabra, mas não se obteve resposta.