Em 2024, comemoramos 50 anos da Revolução dos Cravos em Portugal e descomemoramos os 60 anos do golpe empresarial-militar no Brasil. O Brasil inaugurou uma sequência de golpes e ditaduras que se espalharam pela América Latina. Já Portugal realizou aquela que muitos consideram a última revolução europeia. Considerando-se o contexto daquela época e as diferenças entre o centro e a periferia do capitalismo, o que explica esses acontecimentos?
Ambos, quer o golpe de 1964 no Brasil, quer a Revolução Portuguesa de 1974, enquadram-se na fase final daquilo que eu acho que deve ser descrito como 35 anos de ciclo progressista da História mundial, que começa com o fim da Segunda Guerra e avança com muita força com a autodeterminação dos povos asiáticos e africanos que, por sua vez, se articula com a luta de emancipação das minorias étnicas nas Américas, particularmente dos afro-americanos nos Estados Unidos. Não nos esqueçamos do papel muito especial da Revolução Cubana como grande exemplo de um modelo revolucionário socialista emancipador, muito diferente das revoluções americanas de final do século 18 e início do século 19. Depois, [esse ciclo progressista] finalmente avança, já nos anos 1950 e 1960, para os movimentos de emancipação e construção dos direitos das mulheres. Temos que recordar: só nos anos 1970 é que a maioria dos países da Europa Ocidental legaliza a prática da interrupção voluntária da gravidez, há países da Europa Ocidental, como a Itália, em que o divórcio só é legalizado em 1975.
O golpe empresarial-militar no Brasil, em 1964, ocorre no momento de avanço dos movimentos populares e de emancipação no país. Esse movimento popular brasileiro dos primeiros anos [da década de] 1960 é uma prefiguração de alguns dos elementos do 1968 latino-americano. E o golpe – exatamente como acontece em 1973 no Chile, em 1976 na Argentina, em 1973 no Uruguai – o que pretende é travar, reprimir com muita violência o impulso desse movimento popular. No caso português, 1974 é produto desse mesmo contexto, agravado com as contradições de um país que está na periferia do centro – o que, na altura, era mais visível porque ainda era um país colonial. Nesse sentido, a Revolução Portuguesa ocorre claramente ao contrário do golpe brasileiro de 1964 e dos golpes do Cone Sul dos anos 1970. Ocorre para tentar resolver as contradições de um Estado que, insisto, era a periferia do centro, sobretudo as contradições que tinham a ver com uma modernização autoritária que a ditadura empresarial-militar também fez no Brasil durante os anos da ditadura, de 1964 a 1985. E, ao mesmo tempo, [havia] uma guerra colonial em três das colônias africanas – Angola, Moçambique e Guiné –, que estava a retirar totalmente qualquer possibilidade de sobrevivência à ditadura portuguesa. Ora, ambas, do ponto de vista cronológico, situam-se naqueles dez, 15 anos finais deste ciclo de avanço entre 1945 e meados dos anos 70, com a particularidade de que, como também se notará com a redemocratização brasileira, a Revolução Portuguesa é o canto do cisne de todo este ciclo emancipador, com uma explícita ideologia socialista que informa a Constituição de 1976. Três anos depois da aprovação da Constituição Portuguesa, em 1979, o ciclo do triunfo político neoliberal com a Margaret Thatcher na Grã-Bretanha inicia-se.
"A definição do que é uma democracia social no Brasil e em Portugal vai se fazer em pleno arranque do impulso neoliberal"
Também a redemocratização brasileira se fará em pleno ciclo do arranque neoliberal. E as duas coisas marcam o futuro dos nossos dois povos. Quando a democracia liberal se constrói, no caso brasileiro, a partir de 1985, isso já se faz num contexto político que nada tem a ver com aquele que foi o da luta de resistência contra a ditadura. Da mesma forma, aquilo que habitualmente – e mal – a linguagem mainstream hegemônica chama de “normalização democrática” em Portugal – se dá em pleno período de triunfo neoliberal. E isso vai marcar, por exemplo, a definição do que em ambos os países se considerava ser uma democracia social: que serviços públicos, com que limitações, que papel para a empresa privada em áreas de políticas sociais públicas tão importantes quanto a saúde, a educação e a previdência social... Em todos estes casos, a definição do que é uma democracia social no Brasil e em Portugal vai se fazer em pleno arranque do impulso neoliberal. E tem as consequências que tem.
Em Portugal, a democracia veio por meio de uma revolução. No Brasil, por meio de uma transição “lenta, gradual e segura”, feita pelo alto. Há diferenças na ‘qualidade’ da democracia que resulta de dois processos tão distintos?
Eu acho que sim. A Constituição Portuguesa de 1976 foi até 1989, nos seus aspectos centrais, e nomeadamente no que diz respeito à agenda política, econômica e social, uma Constituição de tipo socialista. Em 1989, havia dez anos que Thatcher estava no poder, já o neoliberalismo tinha avançado, Ronald Reagan já tinha até saído da presidência ao fim de dois mandatos, e [Fernando] Collor [de Melo] era eleito no Brasil. Até 1979, a Constituição Portuguesa continuava a considerar irrenunciável para a democracia a socialização da terra, com a consagração legal da tese da ‘terra a quem a trabalha’. Em segundo lugar, com a consagração constitucional das nacionalizações, não simplesmente dos grandes serviços públicos, mas de grandes grupos econômicos. E, por último, de aspectos importantes na gestão das relações de trabalho, como o controle operário, um princípio tipicamente socialista. Só a reforma constitucional de 1989 é que porá fim definitivamente a esse regime. A direita classificou sempre a Constituição como socialista. E usou o processo de integração europeia como pretexto para enterrar definitivamente o legado da Revolução. Por mais revisões que se tenham feito, ainda hoje a Constituição, no seu preâmbulo, invoca o socialismo como meta. Eu cito sempre isto: no preâmbulo da Constituição, recorda-se que a democracia portuguesa resulta de um movimento militar que serve à expressão da vontade do povo português, condena o fascismo e o colonialismo. Princípios desta natureza, mais uma grande parte ainda da agenda econômica e social quanto às exigências que impõe ao Estado no campo da democracia social, tornam a Constituição muito insatisfatória para a direita e um caso relativamente único no conjunto da Europa.
O caso brasileiro é um caso típico de transição, que, apesar de ter sido claramente forçada pelos movimentos sociais, pela impossibilidade de manter coesa a elite política e social, é como se as Forças Armadas entendessem ser aceitável e desejável uma abertura que permitisse a legalização dos partidos políticos e assegurasse a flexibilidade de um Estado liberal – que, por ser flexível, consegue resistir ou impedir a ruptura revolucionária que pudesse surgir da base a partir de um movimento de massas. Essa transição foi mais ou menos negociada com os setores da oposição. É quando amadurece a narrativa econômica, tipicamente neoliberal, dos governos brasileiros e portugueses pós-1985, com uma grande diferença: o grande projeto privatizador do setor empresarial do Estado na economia no Brasil terá que esperar por Fernando Henrique Cardoso. É apresentado como uma modernização da economia brasileira e da estrutura do Estado, mas sofrendo claramente um embate com os movimentos sociais e com a esquerda brasileira, enquanto no caso português tratava-se, com muito mais agressividade, hostilidade e violência, de desmantelar a herança de uma Revolução socialista. Isso permitiu durante mais tempo à esquerda portuguesa uma mobilização tipicamente defensiva em torno daquilo que ainda hoje em Portugal nós chamamos de conquistas da Revolução. E obrigou uma parte do poder a, mesmo depois das privatizações, ter que respeitar o processo de construção dos instrumentos da democracia social, pelo menos aqueles que os Estados liberais democráticos aceitam: um Serviço Nacional de Saúde público, uma escola pública amplamente majoritária e uma Previdência Social que assegurasse direitos sociais a todos, pela primeira vez na história portuguesa.
Depois, chegamos ao final do século, a partir de 1997, e, uma vez mais, sob o pretexto de que se tratava de uma imposição para nos adequarmos à construção do euro como moeda única, um governo socialista se torna o campeão das privatizações em Portugal. O processo de privatizações, formalmente, não toca a Saúde, a Educação e a Previdência Social. Mas toca indiretamente. O grupo Melo, um dos antigos grupos econômicos nacionalizados em 1975, no auge da Revolução, de um antigo conglomerado industrial e financeiro chamado Companhia União Fabril, a CUF, renasce sob a forma de banco, que entretanto já foi desaparecendo, e renasce sob a forma do maior grupo de saúde no país. Não houve privatização direta de estruturas na área da saúde, o que houve foi abrir um caminho para que, na saúde, os privados pudessem entrar de forma significativa.
No caso brasileiro, o caminho tinha que ser feito na ausência de um verdadeiro Estado de Bem-Estar social. A tarefa da construção dos grandes instrumentos e da tentativa de alguma consolidação [de um Estado de Bem-Estar Social] vem com a redemocratização. Mas com a esquizofrenia, que também acontece em Portugal e em todos os outros lugares, de construir ao mesmo tempo que se desconstrói. Com as limitações do neoliberalismo. Vamos fazer um Sistema Único de Saúde, mas, ao mesmo tempo, com uma linguagem que diz que não podemos construir sistemas ultraburocratizados, que despendam rios de recursos, e que temos que assegurar a pluralidade da escolha dos pacientes, que podem escolher entre o público e o privado. E se só tiverem privado, porque o público ainda não foi criado, então eu tenho um Estado que subvenciona.
Uma cronologia interessante é que a ascensão de [Luiz Inácio] Lula [da Silva] ao poder, em 2002, coincide com o triunfo da direita eleitoral em Portugal. É relativamente breve, só vai durar até 2005. Mas, com todas as contradições que depois o PT e o petismo têm, a ascensão de Lula ao poder vem na sequência de décadas de avanço dos movimentos sociais brasileiros – com exigência de Reforma Agrária, moradia para todos, direitos sociais no campo da Saúde, da Educação, etc. –, que contribuíram claramente para criar um ambiente em que a eleição do Lula se tornava inevitável. Tão inevitável que uma parte da direita brasileira percebeu que o melhor era associar-se a ele em vez de se manter fora dele. Isso não há no caso português. Em Portugal, partimos de um patamar muito elevado, revolucionário, com prescrições socialistas dentro da Constituição, para ir perdendo gradualmente batalhas, mas mantendo a mobilização em torno da defesa do que tinha havido no passado. No Brasil, não é a defesa do que tinha havido no passado, é a construção. E a insatisfação que os movimentos sociais brasileiros mostram na construção de uma efetiva democracia social gerou um impulso que levou, em algum momento, à eleição de um operário. Não é simplesmente simbólico que um operário do ABC seja eleito Presidente da República no Brasil, é um caso muito raro à escala internacional, e num dos maiores países do mundo. É evidente que isto não tem pouco significado. Criou-se nesse momento um conjunto de expectativas que depois se frustraram, mas nós temos que reconhecer que, pelo menos até 2014, houve uma série de avanços do ponto de vista da conquista do bem-estar social. Todos eles incompletos, mas em todo o mundo, onde se fala de democratização social, [os avanços] são incompletos. Todos foram intrinsecamente condicionados pela opção do PT de tentar as alianças o mais amplas possíveis, de não cutucar a fera, de fazer com que esse velho ancestral Brasil desigualitário, herdeiro da escravidão e profundamente classista que ainda hoje existe, não esmagasse qualquer tentativa reformista posterior.
Uma vez mais, são dois processos muito diferentes. Um, o português – não quero exagerar, mas fazendo uma mediana do processo –, permanentemente em perda, o outro, brasileiro, permanentemente em ganho – lento, muito lento –, até 2014. E desde então o processo, como em muitos outros países onde o neoliberalismo se transforma em opção autoritária, faz chegarmos a pontos relativamente semelhantes da política econômica. Eu acho que esta imagem de uma esperança crescente na sociedade brasileira, que culmina com a eleição do Lula e se mantém, apesar de tudo, aberta até 2014, é um percurso inverso ao português para os dois [países] acabarem quase no mesmo ponto.
"De repente, juntam-se no mesmo bloco social aqueles que nunca quiseram a democratização social e aqueles que perderam as esperanças de que ela ocorra"
Você apontou essa hegemonia de uma cartilha neoliberal como um ponto de chegada comum a Brasil e Portugal. A ascensão de movimentos, partidos e lideranças da extrema-direita parece também um ponto comum de chegada entre os dois países neste momento. Eu queria que você comentasse isso.
As crises são sistêmicas no capitalismo. Mas a verdade é que nós temos a sensação, nomeadamente na sociedade portuguesa, e mais recentemente na sociedade brasileira, de períodos de prosperidade praticamente terem desaparecido. Se fizermos as contas, desde que Portugal entrou [na zona do] euro, em 2002, e se usássemos apenas um indicador muito relativo e superficial, que é a evolução do PIB [Produto Interno Bruto], em 22 anos, houve três ou quatro anos de crescimento de PIB mais ou menos sistemático. Eu sublinho sempre o papel que o otimismo e o pessimismo têm na nossa capacidade de mobilização enquanto movimentos sociais alternativos e na criação de ambientes socialmente depressivos. Há uma desilusão das esperanças, quer na sociedade portuguesa, quer na sociedade brasileira – embora a cronologia seja diferente porque no Brasil essa desilusão coletiva de massas nas classes populares é posterior ao governo Lula, é de 2013, e a partir daí começa a produzir efeitos políticos. Não produz imediatamente porque Dilma [Rousseff] foi reeleita, mas evidentemente a incapacidade de resistir ao golpe em 2016 e de criar uma alternativa à eleição de [Jair] Bolsonaro tem esse efeito, que acontece também em Portugal: de repente, juntam-se no mesmo bloco social aqueles que nunca quiseram a democratização social e aqueles que perderam as esperanças de que ela ocorra. Isso é produto e consequência inevitável de anos de neoliberalismo, precarização, empobrecimento e alargamento do fosso social, contudo acompanhado do crescimento de expectativas sociais. Porque temos que reconhecer que na maioria das sociedades, por todo o mundo, o aumento das qualificações escolares e educativas tem levado a um aumento das expectativas neste nível e elas têm sido frustradas a uma velocidade mais rápida do que antes. Essa carga de ressentimento, que surge do incumprimento dessas expectativas, acompanhada de uma retórica da desideologização que tem a ver com a implosão do bloco soviético, desarmaram a capacidade de mobilização e consciencialização que a esquerda era capaz de fazer.
"Historicamente, o sucesso da esquerda resulta da capacidade de criação de uma meta de emancipação para a grande maioria da população à escala planetária, resulta da vontade de politizar, de dizer que não há nada de absolutamente natural e inevitável no nosso posicionamento dentro da sociedade, na economia, na cultura, nas relações familiares, afetivas e sexuais. E, portanto, tudo isso é político. Um dos triunfos do neoliberalismo é a despolitização"
Historicamente, o sucesso da esquerda resulta da capacidade de criação de uma meta de emancipação para a grande maioria da população à escala planetária, resulta da vontade de politizar, de dizer que não há nada de absolutamente natural e inevitável no nosso posicionamento dentro da sociedade, na economia, na cultura, nas relações familiares, afetivas e sexuais. E, portanto, tudo isso é político. Um dos triunfos do neoliberalismo é a despolitização. O objetivo é tentar transformar cada elemento da agenda política progressista em qualquer coisa consensualizável com todos os setores da vida social. [É como se] defender os direitos das mulheres não fosse nem de esquerda nem de direita. Qualquer um pode fazer. Condenar o racismo passa a ser uma questão moral, não política. Essa é a armadilha intelectual, ideológica e filosófica que foi criada pelo neoliberalismo. É transformar grandes batalhas de natureza social e política em questões puramente morais. E, ao mesmo tempo, procura-se um esquema moral de representação da sociedade que permite dizer que toda corrupção é de esquerda.
"Não se trata simplesmente de um avanço da extrema-direita, mas da transição direta de setores da direita tradicional para a extrema-direita"
Ora, no contexto do século 21, crises de empobrecimento rápido e a percepção do fracasso e do incumprimento destas expectativas criaram um ambiente no qual é possível aos setores da direita mais radicais, que tinham perdido todas as batalhas do ponto de vista político e cultural, passarem a mobilizar muita gente, a convencer uma grande parte da sociedade de que o erro está em sistemas que permitem a ascensão ao poder de representantes da esquerda, do mundo sindical, do mundo popular. E, [num processo que] é menos válido para a extrema-direita brasileira e o bolsonarismo, mas é muito válido para a extrema-direita europeia, isso deixou um amplo espaço para que eles digam que são os verdadeiros defensores de políticas sociais, que os setores da esquerda não fazem nada pela classe trabalhadora, mas apenas para os ‘novos privilegiados’: as mulheres, as minorias de orientação sexual... [O discurso é] que a esquerda gosta é de imigrantes, dos refugiados, não gosta dos nossos trabalhadores nacionais. E, neste contexto, um ambiente moral ressentido e punitivista favoreceu claramente esse avanço. Não se trata simplesmente de um avanço da extrema-direita, mas da transição direta de setores da direita tradicional para a extrema-direita. Aqueles que no passado tinham um discurso relativamente liberal-conservador, mas sem assumir o caráter boçal e deliberadamente ofensivo que tem o discurso da extrema-direita dos nossos dias, passaram-se diretamente para este campo.
Você tem caracterizado a ascensão da extrema-direita mundial como “neofascismo adaptado ao século 21”. O que isso significa? Quais as semelhanças entre o que vivemos hoje e o fascismo dos anos 1920/1930?
"Por mais esforço deliberado, assumido, consciente, que a extrema-direita faz para não se confundir com o fascismo clássico, muitos dos argumentos centrais do fascismo clássico estão presentes na extrema-direita"
Começo por uma frase mais ou menos irônica, mas que sintetiza um pouco isto: não é muito fácil inovar ideologicamente, inventar a roda de novo. E, portanto, por mais esforço deliberado, assumido, consciente, que a extrema-direita faz para não se confundir com o fascismo clássico, muitos dos argumentos centrais do fascismo clássico estão presentes na extrema-direita. Todas as extremas-direitas dos nossos dias recolhem do fascismo uma retórica anticomunista, mesmo quando não há comunistas ou há uma representação muito diminuta deles. Os comunistas – aqueles que efetivamente o forem e aqueles que a extrema-direita assim descreve – passam a fazer parte de um outro elemento central, que é o inimigo interno. A tese é de que primeiro o liberalismo, depois o socialismo, vieram romper a unidade da sociedade. O inimigo interno pode ser o comunista, pode ser uma minoria étnica, pode ser uma nova minoria étnica e religiosa que surge das migrações – e toda a História está feita de migrações. Portanto, [o discurso] de combate ao inimigo público é que a existência destas minorias põe em causa a natureza própria das sociedades. Há, no fascismo clássico, como na extrema-direita dos nossos dias, uma linguagem do campo da medicina, metáforas que falam do câncer, do vírus, da contaminação. É, portanto, a tese de que a presença do outro pode contaminar, ajudar a minar por dentro a unidade social. E isto está presente nas obsessões sobre aquilo que a extrema-direita e as igrejas chamam de “ideologia de gênero”, que é pura invenção. E esse quase fetichismo já estava presente nos anos 1920, não nos esqueçamos. O fascismo italiano, o nazismo alemão e todos os seus congêneres por todo o mundo reagiram aquilo que entendem ser um feminismo que os Estados Liberais fomentariam, nomeadamente aqueles descritos como os ‘loucos anos 20’, de emergência de novos sujeitos femininos, como se tivesse sido o Estado Liberal a querer construí-los e não uma mudança social de agência das próprias mulheres. Portanto, a tese é transformar todas as mudanças sociais em produto de uma conspiração. Quem conspira? Cada um destes vários sujeitos dentro do inimigo interno. Em Portugal e no Brasil com menos impacto, mas em vários países da Europa Centro-Oriental, diz-se também que o inimigo interno é fomentado pelo inimigo externo. O nazismo dizia sistematicamente isto.
É central nesta explicação a composição do bloco social que apoia o fascismo nos anos 1920 e 30. O neofascismo, agora no século 21, tem esta composição de uma classe média baixa, uma pequena burguesia de baixo rendimento e altas expectativas, com um profundo ressentimento pela mudança social depois de ciclos que – desde a democratização em Portugal e desde os governos Lula no Brasil – levaram ao aumento do rendimento, qualificação, bem-estar, dignidade e prestígio social das classes trabalhadoras. E, de repente, esta mesma classe média sente, com toda razão, que o seu rendimento e o seu papel na sociedade estão em perda. Em vez de atribuir essa responsabilidade aos setores da classe dominante que gerem a economia, em vez de culpar acima, ela responsabiliza os de baixo. Quem é que ela culpabiliza como poder? Meramente o poder político.
"Nós ainda não vimos até agora um regime fascista completo, na sua versão final, pleno, no século 21, como demoramos muito tempo a perceber os regimes fascistas dos anos 20 e 30. Eu recordo, para quem entende que o nazismo significa Auschwitz, que não houve efetivamente solução final do problema judaico, fórmula sinistra que o regime assumiu para o Holocausto, antes de 1941, e já tinha havido oito anos de nazismo"
Há um aumento da violência social, ou seja, do clima de tensão, policiamento e intervenção do Estado na sociedade. E é verdade que, em muitos casos, a reação por parte da sociedade cria um ambiente que legitima uma percepção totalmente construída de que vivemos em guerra civil permanentemente. Esta pequena burguesia julga que os problemas de natureza econômica e social se resolvem colocando o exército nas ruas, a golpe e a bala, abrindo caminho, como aconteceu nos anos 30 e agora está a acontecer, à legitimidade da guerra e à ideia de que estamos em guerra. E esse é o último dos elementos que aproxima mais ainda a extrema-direita dos nossos dias à tese da continuidade com o fascismo do passado: é que ela cresce mais depressa com a invasão russa da Ucrânia a partir de 2022 e a criação de um ambiente [em que parece que] o conjunto dos governos europeus estão em guerra, que a Europa está sob uma ameaça existencial. Usa-se, nesse sentido, um discurso muito semelhante àquele que [Benjamin] Netanyahu [Primeiro Ministro de Israel] e a extrema-direita israelita que está no poder usam, de que qualquer movimento social e qualquer atentado que se possa atribuir aos palestinos nos próprios territórios ocupados é uma ameaça existencial contra Israel. Este tipo de elementos eu acho que justificam claramente a continuidade entre uma coisa e outra. Recordando sempre que nós ainda não vimos até agora um regime fascista completo, na sua versão final, pleno, no século 21, como demoramos muito tempo a perceber os regimes fascistas dos anos 20 e 30. Eu recordo, para quem entende que o nazismo significa Auschwitz, que não houve efetivamente 'solução final' do problema judaico, fórmula sinistra que o regime assumiu para o Holocausto, antes de 1941, e já tinha havido oito anos de nazismo. Todos os regimes, mesmo os democráticos liberais formais em que vivemos, são híbridos, estão permanentemente em transição para algum lugar. O que eu acho é que, desde pelo menos o 11 de setembro de 2001, nós vivemos num período de hibridização dos regimes democráticos liberais, numa transição autoritária que tem ajudado e se retroalimenta na fascistização das democracias liberais.
Você tem se dedicado ao estudo das políticas e processos de memória sobre a Revolução, em Portugal. Qual a importância desse debate?
Os estudos da memória coletiva têm uma importância central na recuperação das memórias invisíveis, que habitualmente coincidem com as memórias dos subalternos: em primeiro lugar, as memórias das classes populares, mas também de todos os outros grupos sociais e étnicos de subalternos. Esses estudos têm um especial significado em todos os contextos nacionais e transnacionais onde a violência política, social, étnica e de gênero tenha marcado de tal forma a sociedade que é possível falarmos em traumas coletivos – e, dessa forma, produzido o que chamamos de ‘passados incômodos’. Há vários passados incômodos brasileiros, a começar pela escravidão, no Brasil colonial, e, evidentemente, o passado dos períodos autoritários. Mas isso é válido para todos os países, portanto, nesse sentido, os estudos da memória coletiva têm um valor verdadeiramente universal.
Nas classes populares, praticamente não se produz memória escrita. Quando fazemos histórias de vida com membros das classes populares ou de minorias étnicas, por exemplo, [vemos que] todos esses sujeitos subalternos incorporaram em algum momento da sua formação a ideia de que são invisíveis e que é natural que assim seja. Em segundo lugar, é verdade que as grandes disputas em torno da memória coletiva e sua reprodução ao longo dos tempos se centram nesses passados incômodos, mesmo aqueles cuja análise crítica tenha construído a base de legitimação das nossas democracias. Eu não conheço suficientemente a Constituição Brasileira de 1988 para saber se há alguma referência à escravidão. Mas, provavelmente não. Mas, a partir do final dos anos 1990, e sobretudo nos governos do PT, a cultura pública mais ou menos legítima no Brasil incorporou à escala dos sistemas educativos, do discurso mediático e daquilo que a maioria dos atores políticos e sociais dizem na esfera pública uma condenação explícita do racismo. E uma condenação explícita às vezes simplesmente sob a forma de um lamento, que pode soar muito retórico, do que foi a escravidão, do que é o seu significado humano, moral e ético, sem se analisar, contudo, o seu significado político. A mesma coisa ocorre em Portugal. O passado mais incômodo para os portugueses dos nossos dias é o colonial. É como se, na relação com os passados incômodos, a maioria das sociedades quisesse dizer: ‘Nós já não estamos nessa fase, já acertmos contas’.
"Os objetos e os lugares de memória têm uma identidade de classe"
Aquilo que eu tenho feito, do ponto de vista dos estudos da memória coletiva, tem normalmente uma dimensão transnacional, entre Portugal, Espanha e América Latina – Brasil, Argentina e Chile são os casos que eu melhor conheço. E centram-se na memória pós-autoritária: como é que nos períodos pós-autoritários, para não usar o termo democrático, a memória das sociedades se vai reconstruindo. As ditaduras terminaram, mas o autoritarismo não desapareceu, nem a violência, muito menos a desigualdade. A minha tese, que é fácil de se perceber porque muitos partilham, é que o que narramos como memória individual ou coletiva autobiográfica é uma narrativa que deve ser lida prioritariamente no momento em que enunciamos essa memória, no momento da fala. Isso significa que lembrarmo-nos da guerra colonial portuguesa em 1978 é uma coisa, em 1988, por hipótese, é outra. Da mesma forma, no Brasil, a memória coletiva da escravidão foi muito diferente nos anos 40, depois durante a ditadura empresarial e militar e, forçosamente, é muito diferente nos dias de hoje. E isso é muito interessante de se acompanhar porque a memória é construtora de identidade, nós lembramos-nos daquilo que queremos dizer que somos. A nossa narrativa da memória é uma forma de cartão de apresentação. Eu recordo sempre que quem escreve e conserva documentos escritos, fotografias e filmes de há mais de 30 anos, quem enche as suas casas, o seu património de objetos materiais, que permitem a descrição de si próprio e dos outros de quem nós descendemos, está na burguesia. E, portanto, os objetos e os lugares de memória têm uma identidade de classe. Ou nós recolhemos a memória dos subalternos, mesmo que não seja autobiográfica, ou não vamos estar à espera que em qualquer casa de uma favela do Rio haja fotografias de 1970. Os estudos da memória têm, à escala internacional, esse enorme interesse, e têm permitido, em sociedades que passaram pelo trauma da ditadura, da violência de Estado, da violência de classe, independentemente se houve ditaduras ou não, recolher essa memória do ponto de vista da história oral. Permite não simplesmente estudar essa memória, mas completar um quadro muito mais democrático da representação do passado.