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Entrevista: 
Heleno Araújo

‘Tivemos conquistas nas leis, mas ainda falta efetivamente ampliar essas conquistas na parte prática’

Foi em 1963 que um decreto do então presidente Joao Goulart estabeleceu o 15 de outubro como momento de homenagem e reconhecimento ao trabalhado dos professores no Brasil. A data, no entanto, remete a um outro decreto, de 1827, pelo qual o imperador D. Pedro I determinava que todas as cidades do país deveriam ter ‘Escolas de Primeiras Letras’, que equivaliam, mais ou menos, ao que hoje conhecemos como Ensino Fundamental. Passados 198 anos desse primeiro marco, há muito o que se comemorar em relação à situação dos professores brasileiros, mas também há muito ainda a se conquistar – e os desafios vão desde o cumprimento da lei do piso salarial até a garantia de banheiro e água potável em todas as escolas. A avaliação é de Heleno Araújo, presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores da Educação (CNTE) desde 2017, professor concursado da rede estadual de Pernambuco e da rede municipal de Paulista (PE) desde 1993. Nesta entrevista, ele denuncia a ação dos gestores que descumprem a legislação e ajudam a tornar a carreira docente menos atrativa, critica o tipo de formação, predominantemente privada e à distância, que os professores da Educação Básica têm recebido e analisa o impacto de programas e políticas recentes sobre a categoria. É com preocupação, inclusive, que Heleno Araújo comenta o parecer do Projeto de Lei (PL) do novo Plano Nacional de Educação (PNE) apresentado no último dia 14 de outubro na Câmara pelo relator, deputado Moses Rodrigues (União-CE). “Essas contas não batem”, diz.
Cátia Guimarães - EPSJV/Fiocruz | 17/10/2025 10h23 - Atualizado em 17/10/2025 10h35

Diversos dados têm mostrado a carreira docente, principalmente na Educação Básica, como pouco atrativa no Brasil, com um crescimento baixo (7,5%) no número de professores na última década e uma alta taxa de desistência nos cursos de licenciatura. Pensando nas pautas e lutas dos professores como categoria profissional, há o que comemorar neste 15 de outubro? Há conquistas relevantes?

Olha, pensando na nossa profissão, [e lembrando que] esse dia tem como referência o 15 de outubro de 1827, nós podemos considerar que durante todo esse período de tempo, tivemos avanços importantes e necessários. Há mais de 200 anos, esse decreto imperial determinava o piso do magistério, que nunca foi pago. Depois de 2008, temos a Lei do Piso, que traz elementos que ainda não chegaram a 100% dos municípios e estados, mas significou avanços importantes. Então, pensando na perspectiva de legislação, tivemos avanços importantes na valorização da nossa profissão. Agora, nós precisamos continuar a luta para que a legislação seja implementada de forma efetiva. Tivemos conquistas nas leis, mas ainda falta efetivamente ampliar essas conquistas na parte prática.

E que demandas permanecem sem resposta? Quais são as principais pautas de reivindicação dos professores, principalmente da Educação Básica, no Brasil hoje?

Nós temos alguns indicadores da pauta de valorização da nossa categoria. Primeiro, é a formação inicial, que deve ser exclusivamente presencial. Nessa parte, estamos perdendo feio, porque os cursos de licenciatura, na sua maioria, estão no setor privado e estão aumentando as matrículas na licenciatura à distância. O segundo ponto é que, para atuar numa escola pública, o ingresso, segundo a Constituição Federal, deve ser exclusivamente por concurso público. Também estamos perdendo, porque mais da metade [dos professores] hoje são contratos temporários. O terceiro ponto é o salário decente, ou seja, temos a lei do piso salarial, mas ele ainda é um valor inadequado para uma exclusividade de vínculo e de atuação em uma única escola. Os professores ainda dobram o trabalho em duas ou mais escolas, então, ainda não conseguimos efetivar.

Boa parte da formação continuada, que é fundamental para nós, também está entregue para fundações privadas

Boa parte da formação continuada, que é fundamental para nós, também está entregue para fundações privadas. Sofremos com a falta de infraestrutura adequada das escolas. Ainda temos no Brasil escolas que não têm água potável, nem energia elétrica, que não têm saneamento básico. E se formos computar biblioteca, quadra de esportes, sala de leitura, a situação piora. Então, falta infraestrutura adequada para que a escola cumpra o seu papel. E ainda sentimos a ausência de uma gestão democrática, de uma efetiva participação de todos os trabalhadores em Educação, de estudantes, pais, mães e responsáveis, na condução do projeto político-pedagógico da escola e na definição do currículo.

A meta 17 do PNE que está em vigor (lei nº 13.005/2014) até este ano falava em equiparar o salário dos professores com o rendimento médio dos demais profissionais com a mesma escolaridade. Segundo o painel de monitoramento, atingiu-se 86% dessa meta. A remuneração dos professores ainda é mais baixa do que a média com a mesma escolaridade no Brasil? Existem dados sobre isso?

Sim. [De acordo com o PNE em vigor], em 2020, cinco anos atrás, a gente deveria ter equiparado essa média nacional [salarial] de outras profissões com a nossa. Nós não conseguimos equiparar essa média e essa subida de torno de 60% para 86% se deu em boa parte pela redução da média salarial de outras profissões e pouco pela subida da nossa. No entanto, nós temos alguns estados e municípios em que essa média já é equiparada e até superior, mas em outras partes ela ainda está aquém, continua em torno de 65%, 70% dessa média. Então, esse continua sendo um desafio para valorizar a profissão.

O Brasil aprovou, desde 2008, um Piso Nacional Docente, mas, segundo o painel de monitoramento do PNE atual, em 2021, que são os últimos dados disponíveis, menos de 60% das unidades federativas cumpriam essa lei. O painel mostra, inclusive, uma redução de 2018 para 2021. Não por acaso, o PL do novo PNE insiste nessa meta, de cumprimento do piso, que não foi exitosa. A que isso se deve e o que precisa ser feito para reverter esse quadro?

Isso se deve à falta de respeito do gestor público com as leis, a prefeitos, prefeitas, governadoras e governadores que, descaradamente, descumprem uma lei federal. A lei federal tem como base a regulamentação do artigo 60 das disposições transitórias da Constituição Federal. Com base nisso, criou-se o piso do magistério – e não o piso dos profissionais de educação, como determina o corpo da lei da Constituição Federal no seu artigo 206. Mas, desde o primeiro ano, 2008, em que a lei foi sancionada pelo presidente Lula, governadores e prefeitos a questionam na justiça. Cinco governadores questionaram no Supremo Tribunal Federal. Nós comprovamos que a lei é constitucional e o Supremo deliberou [dessa forma]. Então, eles foram derrotados.

Mesmo assim, não houve aplicação adequada em 100% dos entes federados. Em 2020, com o fim do Fundeb provisório, a lei do piso ficou garantida no Fundeb permanente. Ela está lá na Constituição Federal ainda. E, embora o conteúdo dessa Emenda Constitucional não tenha revogado a lei do piso, quem entrou em ação foi a Confederação Nacional dos Municípios [CNM], dizendo aos prefeitos que a lei do piso não existia mais, que eles não tinham a obrigação de cumpri-la. E começaram a judicializar a lei do piso. Foi para o Supremo, nós já derrotamos a CNM no Supremo, mas essa orientação terminou levando muitos prefeitos a não cumprirem a lei do piso. Por isso que aparecem os dados que você citou: antes de 2020 aumentou, depois de 2020 diminuiu. Porque entraram em ação prefeitos contra a lei do piso.

Quanto em média ganha um professor da Educação Básica na rede pública no Brasil?

Os dados do Fundeb com o IBGE mostram uma média salarial em torno de R$ 5.400.

Isso é mais do que o piso...

A média, sim.

Isso é porque há municípios e estados em que eles ganham acima do piso e muitos em que ganham abaixo?

Exatamente. Por isso que a média não é referência para a gente. A referência é o vencimento inicial na carreira, que deveria ser R$ 4.867. E com a formação normal-médio. Se você tem uma licenciatura, deveria ser maior, uma especialização maior ainda. Mas o que acontece para se chegar a essa situação? O estado de Pernambuco, por exemplo, e o estado de Santa Catarina pagam o valor do piso a professor com pós-graduação, com especialização. É uma aberração, né? Aquilo que era para o normal-médio, eles pagam para quem tem especialização.

Essa lógica de o salário ir aumentando conforme a formação e a qualificação do professor tem a ver com outro debate que também não está resolvido, que é sobre a implementação de um plano de carreira, cargos e salários para professores. Essa ainda é uma demanda? Em que pé está essa pauta?

Essa demanda existe porque ela é legal, está na Constituição Federal, está na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e está na lei que foi aprovada em 2024, que é a Lei de Valorização dos Profissionais da Educação, a nº 14.817. E na própria Lei do Plano Nacional da Educação. Então, em termos legais, a carreira já está dada. Agora, mais uma vez, governantes irresponsáveis descumprem a Constituição Federal e as leis existentes. E ao descumprirem, promovem o achatamento da nossa carreira.

Apesar de já existir um piso nacional docente, o PL do novo PNE coloca como meta ainda a regulamentação do piso salarial para profissionais da educação escolar pública. Isso tem a ver com a ressalva que você fez de que temos um piso para o magistério, mas não para os profissionais da educação em geral? Explica qual a diferença.

Isso. A lei do PNE tem que obedecer ao que determina a Constituição Federal. A Emenda Constitucional nº 53, de 2006, que resultou no Fundeb 2007-2020, determinou, no inciso 8º do artigo 206 da Constituição Federal, que tinha que ter uma lei para o piso salarial nacional para os profissionais da educação, que envolve funcionários, professores e especialistas. A lei atual do Plano Nacional da Educação [nº 13.005,2014], para atender à Constituição Federal, colocou isso na meta 18. E agora se repete no relatório do Projeto de Lei do novo PNE [nº 2.614/2024], que foi anunciado no último dia 14 de outubro.

Sobre esse parecer do relator do Projeto de Lei do PNE, que acaba de ser apresentado, existe alguma mudança, positiva ou negativa, em relação ao projeto original submetido pelo governo, que você destaque em relação à valorização e às condições de trabalho dos professores?

Para os professores, há uma preocupação negativa [em relação] àquela ideia de fazer os cálculos de vencimento e tudo mais, de que não precisa de 10% do PIB [para financiar a Educação], que 7,5% são suficientes. Essas contas não batem. É importante que as pessoas entendam o seguinte: a referência que nós defendemos é o que está no artigo 205 da Constituição Federal, que “Educação é um direito de todas as pessoas e um dever do Estado”. Quando o relator apresenta aqueles cálculos, ele está falando de um universo de 47 milhões de matrículas que nós temos hoje na Educação Básica – e que não têm qualidade e precisam de investimentos. Quanto precisamos para investir nessas matrículas? Só que nós temos, no Brasil, 80 milhões de pessoas que não tiveram acesso ou não concluíram a Educação Básica. Então, se eu falo do direito, tenho que somar esses 80 milhões com as 47 milhões de matrículas que eu tenho. São 127 milhões de pessoas que têm direito à Educação e a concluir a Educação Básica que não são atendidas de forma adequada. Quanto eu preciso para garantir esse direito de fato? E aí baixar para 7,5% [do PIB o investimento em Educação] é uma grande preocupação.

Além das questões salariais, é comum que se reivindiquem melhores condições de trabalho para os professores. O que isso significa?

Tem escola que não tem água potável

Vamos pensar o seguinte: você está num local de trabalho em que precisa tomar uma água potável. Tem escola que não tem água potável. Você está numa escola trabalhando e quer ir ao banheiro. Tem escolas no Brasil que não têm banheiro. Tem escolas que continuam com a fossa e outras que têm banheiro, mas o saneamento escorre a céu aberto, o que traz mau cheiro, insetos, inconveniências no local de trabalho. Isso falando do básico.

Como profissional da Educação, para que eu possa desempenhar bem a minha tarefa, tenho que ter uma sala de professores adequada em que eu possa desenvolver minhas aulas e atividades, em que tenha espaço para atender os estudantes, pais e mães responsáveis fora da sala de aula. Eu preciso ter uma bibliotecária que me auxilie no processo de formação e estímulo à leitura dos estudantes e outros programas que incentivam a aprendizagem. E a escola não tem biblioteca. Eu precisaria de um espaço adequado para a sala de leitura, para estimular a leitura como processo de formação. E esse espaço não existe na escola. A formação do meu estudante não é só tomar conhecimento de conteúdos, ela tem que estar vinculada à arte, à cultura e ao esporte. Então, a educação física tem que ter uma quadra de esporte coberta. Em muitos locais do Brasil, o sol é intenso e eu não tenho nem a quadra na maioria das escolas. Então, o que estamos falando sobre estrutura, para que a escola cumpra o seu papel, precisa de um quadro de pessoal completo.

Muitas vezes, é exigido do professor colocar o nome do aluno no diário de classe porque falta funcionário administrativo. Se exige dele tomar conta do portão na sua aula, às vezes, porque não tem um porteiro concursado dentro da escola. Tudo isso são condições adequadas de trabalho para que eu tenha tempo para focar no processo exato de ensino e aprendizagem. Para que eu possa focar a minha atenção em termos de conteúdo e do trabalho que tenho que fazer em sala de aula. Mas, com a ausência de quadro de pessoal adequado e com a falta de estrutura, eu tenho que improvisar ou ter intensificado o meu trabalho, perdendo a perspectiva daquilo que é o meu papel na sala de aula e dentro da escola.

Uma das estratégias do PL do novo PNE fala em criar mecanismos para induzir que o professor trabalhe em um único estabelecimento de ensino, em vez de ter que atuar em várias escolas. Por que isso? Qual a importância dessa mudança? O Programa da Escola em Tempo Integral contribui com essa mudança ou traz outros obstáculos?

Sobre isso eu queria comentar com a prática e com os estudos. Primeiro, a prática. Quando comecei a carreira, com os meus 26 anos, eu só tinha um vínculo empregatício, uma única escola. E isso me possibilitava fazer o planejamento de aula e de curso, eu conseguia implementar aquilo que planejei para a aula e para todo o curso daquela turma. Eu tinha tempo de fazer exercício físico, de fazer leituras extras, podia conviver melhor com meus familiares e tinha mais qualidade de vida. Eu era solteiro na época. Quando casei, tive mais despesas. E com um único vínculo, o salário não dava conta de cuidar da família. Então, precisei de um segundo vínculo. E com esse segundo vínculo, eu perdi todas essas condições de tranquilidade de tempo para que o planejamento fosse executado. Essa é uma questão prática que eu vivenciei e percebi: que ter um segundo vínculo atrapalha o desempenho que eu poderia ter com os meus estudantes.

Agora, [vamos à] questão de estudos que mostram isso. A OCDE [Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico] fez um recorte dos resultados da prova do Pisa [Programa Internacional de Avaliação de Estudantes], que ela aplica. Pegou os resultados só dos estudantes que tinham professores que trabalhavam numa única escola. E, com isso, mostrou que o desempenho desses estudantes foi bem melhor, dez vezes maior, do que o dos estudantes de professores que têm dois vínculos. Tanto para língua portuguesa ou a língua nativa de cada país, quanto para matemática. Então, isso é uma comprovação da própria OCDE de que ter um único vínculo, em uma única escola, ajuda a melhorar o desempenho dos nossos estudantes.

A escola oferece tempo integral, mas não oferece salário integral para que o professor fique num único vínculo de 40 horas lá

O que acontece na escola de tempo integral? A escola oferece tempo integral, mas não oferece salário integral para que o professor fique num único vínculo de 40 horas lá. Traz os professores para uma escola de tempo integral, mas o professor tem um vínculo com o município, outro com o estado, outro com a escola particular, porque se aumentou o tempo dentro da escola, mas não se aumentou o seu salário de forma devida. Pernambuco, por exemplo, que foi o primeiro a ter escola integral, quando começou o programa, tinha uma gratificação de R$ 2.200, que era maior do que o salário base. Com o advento do piso, essa gratificação ficou congelada, porque era nominal. Aí o que fizeram os professores efetivos? Saíram da escola de tempo integral. Hoje, em Pernambuco, os professores temporários são maioria dentro da escola de tempo integral.

Várias estratégias do Projeto de Lei que institui o novo Plano Nacional de Educação tratam da formação docente. Qual o diagnóstico e quais são as demandas principais em relação a isso? De que tipos diferentes de formação estamos falando?

A maioria desses professores estão sendo formados à distância, o que já traz um prejuízo a essa formação

Olha, continua de forma negativa e confusa esse processo da formação. Negativa porque a maioria desses professores estão sendo formados à distância, o que já traz um prejuízo a essa formação. A maioria esmagadora dos cursos à distância, quase 94%, estão na rede privada, que documentalmente apresenta ao MEC as condições de funcionamento, mas, na prática, não executa aquilo que deveria dar qualidade a essa formação. Não cumpre exatamente o que tem que ser feito. Então, isso já traz um prejuízo enorme para a formação inicial deste docente e desta docente. A questão da formação continuada é também, em boa parte, entregue a fundações privadas, que oferecem pacotes aos municípios e aos estados para fazer esse processo de formação. Semana passada, eu estava na reunião do Conselho Nacional de Educação, em Recife (PE), e o ex-secretário da Educação do Estado e do município do Recife saiu da secretaria e disse que hoje compõe um grupo chamado Motriz, que é uma fundação privada, uma organização social privada, que vai para os municípios e estados oferecer políticas de formação continuada. Ele comemorava dizendo que Porto Alegre (RS) não tinha uma política de formação continuada dos professores e agora tem porque a Motriz foi para lá. Ou seja, o [ex] secretário da Educação do Estado de Pernambuco agora está fazendo formação continuada lá em Porto Alegre. Uma pessoa que sempre viveu em Pernambuco, que conhece muito bem a cultura e a realidade de Pernambuco, agora vai lá para Porto Alegre, que tem outra cultura, outra realidade, outra demanda, fazer a formação continuada dos professores e professoras como se fosse uma regra geral, de ponta a ponta, desconsiderando as realidades locais. Isso traz um prejuízo enorme, porque chega lá uma cartilha pronta com aquilo em que eles têm de experiência e acham que pode levar para qualquer lugar, sem fazer a escuta de qual demanda os professores têm e do que cada escola precisa. Quando eu passei a ter dois vínculos [como professor], trabalhei em escolas em bairros diferentes. E vi que, dentro do mesmo município, em dois bairros distintos, havia realidades diferentes. Imagina um país continental como o nosso! É um prejuízo forte para a nossa formação quando o setor privado, com suas fundações, vem atuar dentro do espaço público, fazendo suas cartilhas prontas como se fosse o caminho para resolver o problema da Educação brasileira.

O Censo do Ensino Superior, que foi divulgado há poucas semanas, mostrou que, pela primeira vez, o Brasil tem mais matrículas de graduação à distância do que presenciais. E o primeiro lugar no ranking de EaD é o curso de pedagogia. Isso altera o cenário dos professores no Brasil? É um problema? A CNTE tem proposta quanto a isso?

Você pode botar isso na Constituição, botar na lei, e os governantes continuam descumprindo. Essas pessoas formadas à distância, no curso privado sem qualidade, são aquelas que vão ter a tarefa de ir trabalhar na creche, na pré-escola e nos anos iniciais do Ensino Fundamental. Ou seja, na base que vai estimular os estudantes a continuarem os seus estudos. A gente já tem uma formação defasada para atuar na base da Educação Básica, essa é uma questão. A outra é que boa parte desses pedagogos formados não querem vir para a Educação porque o salário é baixo. Eles vão fazer concursos para tribunais de justiça para compor uma comissão multifuncional, onde vão receber muito mais do que professores. Já tem um movimento de pedagogos de São Paulo que está com um Projeto de Lei no Congresso Nacional querendo a regulamentação da profissão de pedagogo – que, para nós, já está regulamentada porque são professores. Mas eles querem regulamentar a [profissão] de pedagogos para poderem atuar em outra área fora da Educação.

O governo federal lançou, recentemente, algumas iniciativas voltadas a esse objetivo, como o Programa Mais Professores, que inclui o Pé-de-Meia Licenciaturas, que garante uma bolsa para quem está fazendo a formação para ser professor, e a Prova Nacional Docente, que ajudaria na seleção dos profissionais pelos estados e municípios. Qual a sua avaliação sobre essas iniciativas?

Sobre a Prova Nacional Docente, nós discutimos lá atrás, desde a época do ministro Fernando Haddad [na Pasta da Educação] e consideramos necessária porque muitas prefeituras têm dois movimentos: uns dizem que não têm recursos para fazer concurso público e outros promovem corrupção, criam empresas familiares para contratar para fazer concurso público. Então, a Prova Docente vem do que nós discutimos, com a intenção de ser um concurso público nacional feito pelo Inep [Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira]. O governo não quis chamar de concurso público para que as pessoas não entrassem na justiça contra o governo federal, por isso chamam de Prova Docente. O município ou estado que fizer adesão pode utilizar essa Prova Docente como processo de ingresso na carreira na sua rede. Nós consideramos essa uma política interessante para resolver a questão de corrupção e desse discurso de que não tem dinheiro para fazer concurso público.

A questão do Pé de Meia Licenciatura também é uma forma de tentar incentivar os estudantes a se manterem na licenciatura e, quando terminarem, ingressarem na Educação pública. Só que, na nossa leitura, as medidas que foram anunciadas são insuficientes para, de fato, motivar esse estudante a estar lá. E faltaram medidas para motivar também quem está na rede [de ensino], que está abandonando, desistindo ou adoecendo. Na nossa leitura, o Pé de Meia é um estímulo interessante, mas incompleto para, de fato, motivar quem está [na rede] e atrair a juventude.

O Senado votou, na semana passada, a instituição do Sistema Nacional de Educação (SNE), que agora aguarda sanção presidencial. Em relação à valorização dos professores, o SNE tem condição de fazer alguma diferença?

Vamos precisar continuar lutando para regulamentar o financiamento que dê aos entes federados condições de cumprir as suas tarefas de melhorar as condições da Educação Básica do nosso país

Era para ser assim, mas o conteúdo aprovado deixa a desejar. Nós conseguimos colocar na Constituição Federal, em 2020, que o Custo Aluno-Qualidade [CAQ] é a referência de financiamento na Educação Básica e que ele precisa de uma lei específica regulamentando. A nossa expectativa era de que a lei do Sistema Nacional de Educação pudesse trazer a regulamentação do Custo Aluno-Qualidade e que, com essa referência de financiamento, fosse melhorar as condições da escola e dos profissionais da Educação. Como a lei só cita novamente o Custo Aluno-Qualidade como referência e não o regulamenta, ela fica insuficiente para cumprir esse papel. Ou seja, é importante a sua produção, mas vamos precisar continuar lutando para regulamentar o financiamento que dê aos entes federados condições de cumprir as suas tarefas de melhorar as condições da Educação Básica do nosso país.

Por fim, eu queria lhe perguntar se a proposta de Reforma Administrativa, que mexe diretamente com os servidores públicos e está em debate no Congresso, afeta os professores e profissionais da Educação. A CNTE tem acompanhado essa discussão e tem posição sobre isso?

Sim, tem impacto sobre nós, sobre os serviços públicos e sobre a população. Ao fazermos a leitura do relatório que está aí coletando assinaturas para se transformar numa PEC [Proposta de Emenda Constitucional] oficial, nós observamos que, com esse conteúdo, eles fazem primeiro uma leitura equivocada do papel do Estado. E aí eu volto ao artigo 205 da Constituição Federal: “a Educação é direito de todas as pessoas e dever do Estado”. Quando o conteúdo [da proposta de Reforma Administrativa] traz que o Estado seja desobrigado a cumprir o seu dever, você olha que essas medidas vêm na linha de um Estado gerencial. E esse Estado gerencial, um Estado-empresa, coloca o processo da competição por bônus, do desempenho e dos resultados como se fosse uma empresa onde os mais fortes conseguem e os mais fracos ficam para trás, desaparecem. Isso contraria totalmente o papel do Estado em garantir que todas as pessoas tenham direito à Educação. Quando essa proposta de PEC da Reforma Administrativa traz esse caráter, ela desresponsabiliza o Estado, entrega a ação administrativa para a parte gerencial. E isso vai fazer com que mais pessoas tenham acesso a uma Educação em que servidores serão mais terceirizados e contratados temporariamente. Educação é um processo. Eu sou professor do Ensino Fundamental e do Ensino Médio, quando pego no sexto ano e vou acompanhando essa turma até o nono ano e, se possível, continuo no Ensino Médio, é uma coisa. Eu vou saber exatamente as habilidades e as dificuldades de cada estudante. Quando sou temporário, eu acompanho o sexto ano, sétimo ano, aí saio do contrato, volto aqui a seis meses para acompanhar outra turma... Você desanda aquele processo de ensino e aprendizagem que exige um acompanhamento. De fato, essa reforma desmonta tudo isso e o prejuízo é para todo mundo.

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A primeira vez que uma equipe de reportagem da Escola Politécnica da Fiocruz entrevistou o professor Carlos Jamil Cury, da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG), foi em 2009, como parte do debate preparatório para a 1ª Conferência Nacional de Educação (Conae). Depois vieram muitas outras conversas e, em quase todas elas, o tema principal era a importância – e a expectativa – de que o Brasil instituísse um Sistema Nacional de Educação (SNE), capaz de articular as ações do governo federal, estados e municípios em relação à oferta, à organização pedagógica e ao financiamento da Educação no país. Realizada em 2010, aquela 1ª Conae mobilizou milhares de pessoas em torno do tema ‘Construindo o Sistema Nacional Articulado de Educação: o Plano Nacional de Educação, diretrizes e estratégias de ação’ e resultou em propostas concretas, mas nada se efetivou. Tantos anos depois, finalmente acaba de ser aprovado pelo Senado, no último dia 7 de outubro, o Projeto de Lei nº 235/2019, que cria o Sistema Nacional de Educação. O texto é de autoria do senador Flávio Arns (PSB-PR), foi modificado na Câmara dos Deputados em setembro, voltou para o Senado e agora, após aprovação do relatório da senadora Professora Dorinha Seabra (União-TO), segue para a sanção presidencial. Nesta nova entrevista, Cury explica a importância dessa conquista, analisa os termos do projeto aprovado e historiciza a oposição que essa medida sofreu ao longo das décadas, mapeando, inclusive, os interesses divergentes que ainda permanecem em relação a alguns pontos, principalmente o financiamento.
Pela primeira vez, em 2024, o Brasil teve mais matrículas de graduação à distância do que em cursos presenciais. A informação, trazida pelo Censo da Educação Superior, divulgado no último dia 22 de setembro, pode ter causado um certo choque, mas a observação atenta dos dados da última década mostra que essa era uma tragédia anunciada. Para piorar o cenário, a taxa de evasão segue tendência diametralmente oposta: mais de 24% dos ingressantes nos cursos EaD abandonam os estudos, contra 9,5% nos presenciais. Como uma pista que ajuda a entender como chegamos a esse ponto, o mapeamento feito pelo Inep, o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Anísio Teixeira, mostrou, ainda, que quase 96% desses cursos à distância estão concentrados nas instituições privadas, em especial, aquelas com fins lucrativos. Completando esse desenho, o censo informa que, nos últimos dez anos, a rede privada de ensino superior cresceu mais de 73%, contra menos de 5% da rede pública. Nesta entrevista, Maria Angélica Minhoto, professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e coordenadora de pesquisa do Centro de Estudos Sociedade, Universidade e Ciência (SoU Ciência), analisa esses dados, historiciza o processo de transformação do “modelo de negócios” das instituições privadas de ensino superior e comenta sobre o novo marco regulatório da EaD no Brasil, o decreto 12.456, publicado em maio de 2025. Avaliando o caminho adotado pelas políticas públicas ao longo dos diferentes governos, a pesquisadora até admite que a estratégia de ampliar o acesso ao ensino superior com a participação de instituições privadas poderia “fazer parte do jogo”, mas alerta que “não nessa dimensão”. “Esse modelo de Educação Superior que a gente tem no Brasil é uma coisa não comparável”.