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Segunda versão da Base Nacional Curricular Comum: ainda há espaço para disputa?

Após mudanças feitas a partir de mais 12 milhões de contribuições, documento deve ser debatido em seminários estaduais e depois segue para Conselho Nacional de Educação. GT da EPSJV/Fiocruz discutiu a primeira versão da BNCC e encaminhou contribuições.
Raquel Júnia - EPSJV/Fiocruz | 16/05/2016 12h23 - Atualizado em 01/07/2022 09h46

No último dia 3 de maio, em cerimônia realizada no Conselho Nacional de Educação (CNE), o MEC apresentou a segunda versão da Base Nacional Curricular Comum e deu como encerrada a sua coordenação no processo de discussão do documento. Nesta nova etapa, prevista para durar até junho, o Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed) e a União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime) são os responsáveis por conduzir seminários regionais sobre a Base. Depois, a previsão é de que o documento siga para avaliação final do CNE.

De acordo com o MEC, nesta segunda versão, alguns aspectos foram alterados, principalmente nas áreas de história e português com o acréscimo de novos conteúdos e melhor definição do que se pretende que o aluno aprenda em cada fase. O texto voltado para a educação infantil também foi redefinido de forma a estabelecer os objetivos de aprendizagem conforme a faixa etária, o que não ocorria no documento anterior. De acordo com a apresentação feita pelo próprio Ministério, a parte dedicada ao ensino médio foi outra que passou por alterações. Os conteúdos para esta etapa de ensino foram divididos por unidades curriculares, o que, na avaliação da pasta, vai garantir mais flexibilidade na elaboração dos currículos e uma integração maior com o “ensino técnico-profissionalizante”.

No componente de história – um dos mais polêmicos e criticados – foram incluídos objetivos de aprendizagem relativos à cultura ocidental europeia. Segundo o secretário da Associação Nacional de História (Anpuh), Paulo Mello, a mudança foi uma demanda da própria Anpuh e de outros pesquisadores. No entanto, a inclusão também vem gerando polêmica porque há historiadores que defendem a primeira versão, que valorizava mais a história africana e ameríndia, e acreditam que este segundo documento é uma submissão à visão eurocêntrica da história.

Para Paulo, a polêmica demonstra que, neste formato de Base, é praticamente impossível chegar a um consenso. “O erro da Base é transformar objetivos de aprendizagem em conteúdo. Por exemplo, o objetivo é que o aluno saiba ler e interpretar criticamente um documento histórico. Isso é um consenso. Agora, se eu, professor, vou dar história dos assírios, dos fenícios ou vou começar pela história dos povos ameríndios, aí vai ser polêmico. Agora, é consensual que ele tem que interpretar um documento assírio ou um documento da cultura incaica e saber ler e contextualizar esse documento, que essa é uma formação intelectual relevante para o aluno. Então, a ideia de que esses objetivos mais cognitivos poderiam ser mais valorizados acabaram perdendo o foco e ganhou mais força a discussão do conteúdo em si”, afirma.

O conteúdo de história também foi objeto de crítica por parte do Grupo de Trabalho (GT) da EPSJV/Fiocruz criado para analisar a BNCC e realizar contribuições à consulta pública coordenada pelo MEC. “No componente de história, há uma forte ênfase em valores de liberdade, justiça social, pluralidade, solidariedade, sem deixar claro os referenciais teóricos de tais conceitos. Há um destaque à ideia de indivíduo, dando margens a uma abordagem biográfica das chamadas ‘grandes personalidades’ e o ’ito do herói’.  Apesar de o documento destacar o estudo do Brasil, não fica claro sob quais perspectiva discursiva este estudo será feito, como, por exemplo, a abordagem eurocêntrica”, destaca a contribuição enviada pela EPSJV que se referia ao primeiro texto da Base.

Para os professores da Escola, outra área bastante problemática ainda dentro das ciências humanas é o ensino religioso. A contribuição da EPSJV alerta para os riscos de tratar o tema como um componente curricular. “Entendemos que o tema ‘Religião’ é transversal aos componentes de todas as Ciências Humanas, portanto definir uma ‘disciplina’ é uma contradição que limita a interdisciplinaridade e transversalidade do tema. No documento, os conceitos de cultura e diversidade sugerem relações harmoniosas, ocultando a abordagem dos conflitos e disputas existentes. Entendemos a diversidade cultural nas suas múltiplas dimensões: religiosa, de gênero, étnico-racial. De todo modo, compreendemos que o conceito de diversidade não pode esconder a desigualdade e as relações de poder existentes na sociedade”, reforça o documento da EPSJV.

O GT se debruçou também sobre a necessidade de reflexão acerca da saúde, passível de ser trabalhada em diferentes disciplinas e contextos, como detalha o documento sobre as ciências humanas na parte dedicada à geografia: “A saúde aparece na Geografia como necessidade do cuidado individual através de hábitos e costumes. A comunidade científica, bem como as organizações internacionais (OMS, OPAS, etc.), trabalham na perspectiva do conceito de saúde ampliado, não se limitando pela ausência de doença. Além da adequação do debate atual da saúde no BNCC, recomendamos trabalhar o tema como uma produção social, circunscrita teoricamente na determinação social da saúde, e na Geografia, através do conceito de território, como conceito que possibilita identificar as condições de vida de determinada população através das suas práticas sociais cotidianas”.

Invisibilidade da Educação de Jovens e Adultos

A EPSJV apresentou ainda considerações na área de linguagens, problematizando, por exemplo, a falta de clareza nas concepções por trás do conceito de letramento e a ausência de discussões mais bem fundamentadas em relação à Educação de Jovens e Adultos (EJA), situação que pouco foi modificada nesta segunda versão. A Escola Politécnica fez contribuições a partir da experiência dos professores nas salas de aula da EJA. “O trabalho desenvolvido nesta área de conhecimento nos exige atrelar a importância da linguagem à nossa concepção de EJA; vale dizer: se entendemos que estudantes jovens e adultos devem reconhecer suas potencialidades como agentes transformadores da estrutura social, sobretudo a partir de uma mobilização coletiva, a linguagem, em suas diferentes manifestações, é fundamental neste processo de intervenção na sociedade”, reforçam os professores da EPSJV.

A contribuição referente ao conteúdo de química também critica a ausência da EJA e sugere uma abordagem partindo da experiência da Escola: “o proposto para a disciplina de química pela BNCC não contempla o currículo da EJA. Embora na página 223 do documento conste o ‘uso de situações cotidianas  e processos tecnológicos socialmente  relevantes’, não aborda a tecnologia social como um elemento fundamental e relevante para a aproximação dessa temática de outras formas de produção tecnológica e da vida desses estudantes. O currículo da química na EJA-Manguinhos se apropria da tecnologia social para trabalhar tais conceitos, assim como aqueles os quais os educandos acrescentam”.

Os professores-pesquisadores da EPSJV também debateram no grupo de trabalho a importância de se incentivar a iniciação científica na educação básica. Tomando como exemplo a experiência da Escola com o Programa de Vocação Científica (Provoc), que acolhe estudantes de outras escolas públicas e privadas para desenvolverem projetos de pesquisa na Fiocruz, e também o Projeto Trabalho, Ciência e Cultura (PTCC), voltado para os alunos do Politécnico, a análise foi a de que a iniciação científica poderia ser um vetor curricular que atravessasse toda a formação. “Trabalhar com iniciação cientifica é trabalhar com a pesquisa como princípio educativo. É criar condições para estimular a busca de investigação da realidade do mundo. E são poucas as escolas que têm a iniciação como campo da formação. Nós entendemos que é um espaço precioso de formação. Como a nossa escola tem esses dois modelos formativos em convívio, ela tem uma oportunidade rara de lançar essa discussão para outros espaços, de propor como política pública acentuar o direito de um aluno da educação básica ter a iniciação à pesquisa como algo fundamental para a sua formação humana”, destaca a professora-pesquisadora da EPSJV Ana Lúcia Souto Mayor.

Concepção da BNCC

Entre os documentos enviados pela EPSJV/Fiocruz à consulta pública sobre a primeira versão do documento está uma análise sobre a concepção e os interesses por trás desse formato de Base. Da mesma forma como se posicionaram organizações como a Anpuh e a Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (Anped), o texto problematiza a concepção do documento, de forma a atender interesses empresariais. A professora-pesquisadora da EPSJV, Rosa Correia das Neves analisou o Movimento pela Base, que reúne várias associações ligadas a grandes empresas, como o Instituto Itaú Social, Instituto Unibanco, Natura, Fundação Ayrton Senna, Fundação Leman, Instituto Fernando Henrique Cardoso e Fundação Roberto Marinho. “Neste movimento há uma importante fonte de investigação para entender os pressupostos dessa Base e a forma como essa proposta foi formulada, porque isso não está claro no documento divulgado pelo MEC. Por trás de determinados indivíduos que compõe o movimento existe um agenciamento de grandes grupos privados. Esses grupos estão em ascensão no Brasil, então é natural que eles queiram uma mudança de base na educação. Os empresários de uma forma geral têm reclamado dos índices de produtividade brasileiros e associam a questão da produtividade à questão da educação. Então, a reforma caminha na direção de atender a esses interesses”, aponta Rosa.

Apesar dessas ponderações, o GT constituído pelos professores da Escola para estudar a BNCC concluiu que, mesmo com as críticas ao processo, a EPSJV enviaria contribuições. “Nós entendemos que deveríamos problematizar, mas também não deixar de fazer uma intervenção propositiva, assumindo que não fazer isso poderia significar perder uma oportunidade porque a Base pode mesmo virar realidade e a Escola deixaria de ter de algum modo uma tentativa de intervenção produtiva”, explica Ana Lúcia.

Próximos passos

De acordo com Paulo Mello, a Anpuh vai continuar tentando interferir no processo de elaboração da Base junto ao Conselho Nacional de Educação. O secretário da entidade alerta, no entanto, que o desafio principal será a aplicação desses conteúdos na sala de aula. “Não basta fazer currículo, colocar num papel, mandar para as escolas e achar que isso vai virar realidade. Uma implementação curricular negocia necessariamente com o professor. Se a preocupação oficial é estabelecer a Base e forçar cada sistema a adotar esse currículo, a gente estaria limitando bastante a concepção de debate curricular”, reforça. O historiador completa: “É preciso dar margem de liberdade para que o professor tome decisões que devem ser feitas democraticamente no coletivo e que ele tenha responsabilidade sobre essas decisões. Se não, ele passa a ser cumpridor de um currículo oficial obrigatório, que é exigido em exames, e o papel dele é apenas mediar o conhecimento que está nos exames e aquilo que deve ser aprendido pelos alunos. Isso é um atrofiamento da competência profissional do professor”, alerta.

A EPSJV vai se organizar para voltar a discutir coletivamente a segunda versão da Base e definir se existe necessidade e caminhos para continuar contribuindo com a finalização do documento. Com o processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff não se sabe exatamente o futuro da BNCC. No último dia 13, tomou posse como Ministro da Educação, Mendonça Filho, nomeado pelo governo provisório de Michel Temer e ainda não há informações sobre como o novo ministro tocará o tema. No documento ‘Travessia Social’, que detalha a visão e ações do governo provisório para a área social fala em reformulação no currículo, mas não cita a Base.

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Conceito da Base Nacional Curricular Comum que deve ser seguida em todas as escolas do país é criticado por especialistas e entidades de pesquisadores. O MEC, no entanto, corre contra o tempo para finalizar o documento no prazo previsto pelo PNE.