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Contrainformação

Há quem chame de midiativismo e outros nomes da moda. Mas há também quem ache que a cobertura que o grupo de jornalistas do Mídia Ninja fez durante as manifestações de junho foi um bom e velho trabalho de contra-informação. As gravações do grupo, que cobriam e transmitiam ao vivo os protestos, sempre perto dos locais em que em geral explodiam os embates entre a polícia e os manifestantes, chegaram a ter 50 mil acessos ao mesmo tempo, alcançando 180 mil em uma mesma transmissão.
Cátia Guimarães - EPSJV/Fiocruz | 25/02/2016 11h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h47

Há quem chame de midiativismo e outros nomes da moda. Mas há também quem ache que a cobertura que o grupo de jornalistas do Mídia Ninja fez durante as manifestações de junho foi um bom e velho trabalho de contra-informação. As gravações do grupo, que cobriam e transmitiam ao vivo os protestos, sempre perto dos locais em que em geral explodiam os embates entre a polícia e os manifestantes, chegaram a ter 50 mil acessos ao mesmo tempo, alcançando 180 mil em uma mesma transmissão. O testemunho coletivo de quem acompanhava os protestos em tempo real e o registro dessas imagens deram, inclusive, o pontapé inicial para a produção de provas que levaram ao arquivamento do processo de um manifestante injustamente preso e indiciado por formação de quadrilha no Rio de Janeiro. A polícia divulgava informações, os grandes meios de comunicação reproduziam e lá estavam as imagens e a narrativa dos Ninja para desmentir. “O conceito de contrainformação precisa ser entendido a partir da ideia de narrativas, como a possibilidade de outro enredo dentro da mesma informação que é passada”, opina Bruno Torturra, jornalista e um dos fundadores do Mídia Ninja.

Origem militar

No caso do fenômeno jornalístico que surgiu junto com as manifestações, o ‘contra’ tem se referido ao fato de se tratar de informação diferente daquela veiculada pelos grandes meios de comunicação. Produzida a partir de imagens em tempo real e sem edição, o ‘contra’ se oporia à informação considerada ‘oficial’ divulgada pela grande mídia empresarial. Mas o jornalista Alberto Dines, que comanda o Observatório da Imprensa, discorda do uso do termo. “A palavra contrainformação vem do linguajar bélico-militar, como estratégia de guerra psicológica. Eu prefiro fugir disso porque fica parecendo que voltamos à época da Guerra Fria”, diz, alertando que o problema não é só semântico, mas ideológico.

De fato, o dicionário Houaiss define contrainformação como o “ato ou efeito de impedir, frustrar ou dificultar o acesso do inimigo ou adversário a dados próprios (p. ex. facilitando o acesso a informações falsas)”. No Brasil, em 1946, foi criado um Serviço Federal de Informações e Contrainformações (SFICI), como uma seção específica do Conselho de Segurança Nacional, que já na década de 1950 colaborou com os países alinhados aos EUA no contexto da Guerra Fria. Em 1964, com o golpe civil-militar, a coordenação de “atividades de informações e contrainformações, em particular as que interessem à Segurança Nacional” foi transferida para o então recém-criado Serviço Nacional de Informações (SNI), um importante braço da repressão.

Guerrilha comunicacional

Mas essa origem militar não é propriamente esquecida quando se associa contrainformação à contra-hegemonia no campo da comunicação. O ‘nodo50’, por exemplo, uma organização espanhola sem fins lucrativos que presta serviços informáticos e comunicacionais para movimentos sociais, usa a ideia de ‘contrainformação em rede’ como slogan e associa diretamente essa escolha à referência bélica que o termo traz. Um artigo escrito por integrantes do grupo (‘Do tan-tan ao duplo clique. Uma história conceitual da contrainformação’, em português) explica que a contrainformação se torna um “modelo de comunicação” no contexto de uma “guerrilha comunicativa”.

Embora o texto aponte apenas a internet como espaço para formas alternativas de comunicação, o que relega todos os outros meios — TV, rádio e mídia impressa — à categoria de “convencional”, a principal distinção se dá em outro registro: “a contrainformação nasce contra a informação concebida como mercadoria”, explica o artigo do nodo50. E isso se reflete diretamente no modo como se define o que é e o que não é informação. “O modelo industrial e mercantilizado de produção cultural é sustentado pelos falsos discursos da objetividade informativa e do profissionalismo que, somados, teriam como resultado o informativo, a informação”, explica o texto, ressaltando que é contra esse modelo que nascem as primeiras práticas contrainformativas.

Foi também como resposta a essa definição única do que é informação e de quem produz notícia que explodiram as transmissões do Mídia Ninja a partir das manifestações populares de junho no Brasil. Para quem tem dúvida sobre se o que eles estão produzindo é informação, Bruno Torturra propõe uma comparação: “Contracultura não é cultura também? Mas é contra a cultura hegemônica. Estamos fornecendo informação contrária ao que é hegemônico, mas nem por isso é menos informação”. O jornalista Alberto Dines, que comanda o Observatório da Imprensa, tem leitura parecida. “Eles estão procurando a mesma informação que a mídia dita tradicional, mas com olhar, pauta e apresentação diferentes”, diz. Já para quem questiona se o que os Ninja fazem é jornalismo, Bruno reconhece que eles atuam numa “área cinza” que se confunde com ativismo, mas acredita que isso pode ser exatamente uma nova forma de fazer jornalismo, que quebra alguns “tabus e ideias pré-concebidas muito sólidas”, como a de que jornalista precisa ser neutro. “Eu acredito que subjetividade e objetividade não são palavras opostas no caso do jornalismo. Quando você assume a subjetividade, está sendo objetivo. A imparcialidade dá muito mais margem para a hipocrisia do que para o balanço que a grande mídia tanto diz ter. Ser parcial não significa ser desonesto. E ser imparcial diante de uma situação injusta é muito mais omissão do que objetividade.”, opina. E define: “A gente faz um jornalismo de baixa resolução e alta fidelidade”.

Alternativo

Alberto Dines identifica uma semelhança entre o fenômeno atual e o que aconteceu na década de 1970,quando, segundo ele, a mídia alternativa pautou a grande imprensa. Ele conta que, imersa num longo período de censura, como todos os jornais, a Folha de S. Paulo aproveitou o movimento de “distensão lenta e gradual” que começou no governo Geisel para criar uma página de opinião que publicasse conteúdos semelhantes aos que a imprensa alternativa vinha veiculando como forma de resistência à ditadura. Na época, o próprio Dines, além de outros nomes conhecidos do jornalismo, como Samuel Weiner e Claudio Abramo, foram convidados a escrever nesse espaço. “A Folha entendeu que aquele jornalismo rebelde tinha uma contribuição a dar. E usou os elementos ‘alternativos’ para ‘bater’ o Estadão”, conta. E completa: “Quando eu vi a Mídia Ninja no Jornal Nacional [da TV Globo], pensei: ‘esse é o caminho da renovação, quando a grande imprensa começa a admitir a existência de um outro polo de jornalismo”. E, segundo Dines, todo esse movimento se dá num contexto de crise econômica, identitária e política da grande imprensa. “A imprensa não está mais aguentando o corporativismo. Tem que inventar coisas novas e a invenção está no lado de quem é contestador”, acredita.

Democratização da comunicação

O marco de 180 mil acessos em uma mesma transmissão, como chegou a ter o Mídia Ninja durante as manifestações, pode parecer muita coisa, mas sequer se compara com a audiência de um programa das principais emissoras de televisão — o Jornal Nacional, por exemplo, segundo dados da Rede Globo baseados no Ibope, tem em média 25 milhões de espectadores em cada edição. Ainda assim, distribuídas pelas redes sociais, as imagens produzidas pelos Ninja não só causaram muito barulho como interferiram diretamente no rumo dos acontecimentos. “Eu não acho que a gente deva disputar audiência no sentido tradicional. Claro que a gente tem interesse de falar com o máximo de pessoas possível, mas não queremos nos tornar um canal que vai ser visto por milhões em uma transmissão só. O mais interessante é a pulverização de muitos streamings vistos por milhares de pessoas cada um”, explica Bruno Torturra. E exemplifica: “Vamos dizer que haja mil pessoas transmitindo, cada um sendo assistido por outras mil: teremos 1 milhão de pessoas deixando de ver a televisão tradicional. É um novo tipo de comunicação, mais segmentada, mais aprofundada, mais honesta, que consegue dialogar com o espectador”.
Bruno destaca ainda a importância de se aproveitar a audiência da grande mídia para interferir nas narrativas “por dentro”. “Já havia muita (contra) informação sendo produzida, o que faltava, principalmente, era a difusão. A diferença é que a gente conseguiu dar maior visibilidade e alcance e, de alguma maneira, constrangeu e pautou a grande mídia”, opina, e aposta: “Cada vez mais a grande mídia vai entender que pode ser constrangida. Até hoje, ela tinha o monopólio do constrangimento”.

Mas o diagnóstico dos movimentos sociais que lutam pela democratização da comunicação no Brasil é de que essa grande mídia comercial detém também outros monopólios, inclusive aquele que é proibido pela Constituição Federal. O parágrafo 5° do artigo 220 da Carta diz que “os meios de comunicação social não podem, direta ou indiretamente, ser objeto de monopólio ou oligopólio”. Mas, como esse artigo não foi regulamentado, não existem parâmetros para se fazer cumprir a legislação. Os dados, no entanto, mostram um cenário de significativa concentração desses meios — e, por decorrência, do conteúdo, mensagem e informação que eles transmitem. De acordo com o banco de dados do projeto Donos da Mídia, o grupo Globo, por exemplo, é dono de 69 veículos em todo o país, entre jornais, revistas, rádio e TV aberta e fechada. E, como mostra esse estudo, em relação ao conteúdo e à informação difundida, esses números se multiplicam. “Maior rede de televisão em operação no Brasil, a Rede Globo encabeça o Sistema Central de Mídia nacional (...). São 35 grupos que controlam, ao todo, 340 veículos. (...) A relação com empresas em todos os estados permite que o conteúdo gerado pelos 69 veículos próprios do grupo carioca seja distribuído por um sistema que inclui outros 33 jornais, 52 rádios AM, 76 FMs, 11 OCs [ondas curtas], 105 emissoras de TV, 27 revistas, 17 canais e 9 operadoras de TV paga. Além disso, a penetração de sua rede de televisão é reforçada por um sistema de retransmissão que inclui 3305 RTVs [retransmissoras de TV]”, diz o site Donos da Mídia. E esse sistema de audiência se retroalimenta, com apoio, inclusive, do dinheiro público: contando apenas a TV aberta, a Globo recebeu, em 2012, quase 44% da verba publicitária que o governo federal — o maior anunciante do país — investiu em televisão — meio que, por sua vez, recebeu mais de 62% do total de investimento em publicidade da União, contra pouco mais de 5% da internet, por exemplo.

A mais recente tentativa de regular pelo menos a comunicação social eletrônica (telecomunicações e radiodifusão), que é uma concessão pública e não propriedade privada, é a proposta de Projeto de Lei de Iniciativa Popular, que busca a regulamentação dos artigos 5, 21, 220, 221, 222 e 223 da Constituição Federal. O texto, produzido por diversos movimentos sociais e publicizado no dia 1º de maio deste ano, precisa conseguir 1,3 milhão de assinaturas para tramitar no Congresso Nacional. Para conhecer o texto do projeto e contribuir com a divulgação e coleta de assinatura, acesse o site wwww.paraexpressaraliberdade.org.br.

A luta pela democratização da comunicação é muito anterior ao fenômeno Mídia Ninja, mas pode ganhar visibilidade com as críticas que a grande imprensa tem recebido sobre a cobertura jornalística das manifestações sociais recentes. Para quem aposta que essas mudanças são passageiras, e vão morrer junto com as manifestações, o Ninja Bruno provoca: “Quem disse que vai passar? 2014 vai ser um deus nos acuda!”.