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Hegemonia

Como se faz para que um trabalhador acorde diariamente, deixe sua casa, enfrente transportes lotados e uma série de dificuldades para ser explorado e reproduzir a ordem que o oprime? A resposta imediata a essa pergunta, certamente, levaria em consideração as necessidades materiais do trabalhador e também os mecanismos que o obrigam a submeter-se a essas condições, como a repressão àqueles que questionam a ordem, as ameaças de demissão, entre outros. Mas apenas isso não basta para entender o estabelecimento e a manutenção das relações de poder.
Leila Leal - EPSJV/Fiocruz | 15/05/2010 10h27 - Atualizado em 01/07/2022 09h47

Como se faz para que um trabalhador acorde diariamente, deixe sua casa, enfrente transportes lotados e uma série de dificuldades para ser explorado e reproduzir a ordem que o oprime? A resposta imediata a essa pergunta, certamente, levaria em consideração as necessidades materiais do trabalhador e também os mecanismos que o obrigam a submeter-se a essas condições, como a repressão àqueles que questionam a ordem, as ameaças de demissão, entre outros. Mas apenas isso não basta para entender o estabelecimento e a manutenção das relações de poder. Há que se pensar, também, que esse trabalhador é fruto de processos de naturalização das relações de exploração; que acha justo que o seu patrão ganhe muito mais do que ele próprio com o seu trabalho; que acredita que o trabalho ‘dignifica o homem’; e que concorda que reivindicar melhores condições é ‘coisa de baderneiro’. Esse entendimento sobre a produção do consenso, do consentimento e do convencimento para a conformação e a perpetuação de uma determinada estrutura social, ao lado do uso da força e da coerção, é o ponto de partida para a compreensão do conceito de hegemonia. Identificado na teoria marxista com o pensador italiano Antonio Gramsci , o conceito coloca também o lugar da luta travada entre as diferentes classes sociais, em defesa de seus interesses, nessas dimensões de consenso e convencimento.

História

A noção de hegemonia ganha aprofundamento na década de 1930, quando Gramsci, preso pelo fascismo, formula a chamada teoria ampliada do Estado. Mas o conceito se originou muito antes disso, na Grécia Antiga, quando tinha um sentido de direção estritamente relacionado ao âmbito militar. Derivando do grego eghestai - que significa ‘ser líder’, ‘conduzir’ -, a palavra eghemonia designava o comando supremo das Forças Armadas. Na história do pensamento político marxista, o conceito foi, antes de Gramsci, utilizado por Lênin, o principal dirigente da Revolução Russa de 1917. Ele referia-se à hegemonia como capacidade de liderança política de uma classe no processo de construção de alianças, especificamente do proletariado russo na fase democrático-burguesa do processo revolucionário daquele país. Nesse sentido, para Lênin a hegemonia significou, naquele contexto, a capacidade de o proletariado conformar aliança com setores camponeses obtendo a liderança política a partir da unificação dos interesses que estavam em jogo.

Ainda hoje, mesmo com a difusão das formulações de Gramsci, há diferentes acepções para o termo. Isso significa que o conceito gramsciano não é o único a ser utilizado, mesmo sendo o mais desenvolvido e fazendo parte de uma teoria mais ampla. É o que explica Eduardo Coutinho, professor da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ECO/UFRJ) e coordenador do projeto de pesquisa ‘Gramsci: a comunicação como política’: “A palavra hegemonia é utilizada, nos dias de hoje, em dois sentidos opostos. Ela pode significar predomínio político, o que geralmente é associado à postura de um Estado sobre o outro e pode ter como sinônimos as noções de ‘hegemonismo’ ou ‘imperialismo’. Mas pode, também, significar uma liderança política, que envolva a noção de consentimento, de uma classe sobre outras”, diz, lembrando que é nesse último sentido que o conceito aparece nas formulações marxistas e, mais especificamente, na obra de Gramsci.

Coerção e convencimento

A noção de hegemonia pode ser entendida a partir de exemplos cotidianos. Foi através de uma comparação com a estrutura familiar que Luiz Filgueiras, professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e pós-doutor em economia pela Universidade Paris 13, discutiu esse conceito com os alunos dos cursos técnicos de nível médio da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), na aula inaugural que proferiu no ano passado. “Pergunto: quem tem a hegemonia na casa de vocês? Seus pais e suas mães, um dos dois ou vocês? Os pais têm o poder de tirar a mesada, colocar de castigo, fazer proibições – e isso é a dominação, feita a partir da violência, da força e da coerção. Mas além da dominação é preciso o elemento do consentimento. Isso significa reconhecer nos seus pais uma legitimidade em relação a vocês. Reconhecer que eles têm uma preponderância porque são interessantes, têm mais experiência e coisas a lhes passar. Ou seja, vocês têm uma certa admiração, um certo consentimento na dominação e no poder que seus pais têm. No momento em que não querem consentir, eles usam a coerção”, comparou. Esse é um exemplo que demonstra, com materialidade, a articulação entre coerção e consentimento. A única diferença dessa situação cotidiana com o conceito propriamente de hegemonia é que, diferente de pais e filhos, a sociedade não é 'menor' do que o Estado 'adulto', nem é 'educada' como faz a socialização primária da família.

Hegemonia e teoria ampliada do Estado

O exemplo que abre esta matéria mostra que a sociedade não é harmônica, mas sim permeada por interesses conflituosos. Quando aquele trabalhador se insurge contra algum dos aspectos que o oprimem, aparecem prontas para repreendê-lo, com pressão ou violência, estruturas como a polícia, as forças armadas, as leis e outras. Essas instâncias, que são meios para a utilização legal da força, são parte integrante do Estado. A conclusão? O Estado, que é uma estrutura de poder instituída nas esferas política, jurídica e social, não é ‘neutro’ em relação à sociedade; ao contrário, existe em parte para colocar a sua força a serviço da manutenção das estruturas de poder nela vigentes.

Mas, para entender o conceito de hegemonia, é preciso saber que essa reprodução da ordem social só acontece quando a força se combina com estratégias de convencimento e consentimento. Nesse contexto, instituições como a Igreja, a escola, a mídia, os sindicatos, os partidos políticos e as Organizações Não-Governamentais (ONGs), entre outras, cumprem papel fundamental, elaborando e difundindo as ideologias que formam as consciências das classes e o consenso.

E qual a verdadeira relação entre essas instituições e o Estado? A resposta a essa pergunta é uma das ideias mais importantes do pensamento de Gramsci. Contrariando o senso comum, que as entende como esferas separadas, que precisam, inclusive, manter entre si o maior distanciamento possível, o autor italiano defendeu que uma noção ampliada de Estado deve entendê-lo como a soma do que ele chamou de “sociedade política”, organizada para a coerção, e “sociedade civil”, que engloba as instituições responsáveis pela produção do consenso. As instituições que compõem a sociedade civil são, então, ‘aparelhos privados de hegemonia’ que exercem, segundo Eduardo Coutinho, função política e cultural. “Assim, o Estado passa a ter a função de organizar a cultura e criar uma consciência correspondente aos seus interesses, na luta pela direção político-ideológica da sociedade”, explica.

A grande novidade, em Gramsci, é perceber que a hegemonia encontra, na sociedade civil, a sua base material. É importante lembrar que, para ele, esse processo acontece nas sociedades que chamou de ‘ocidentais’: as que desenvolveram, principalmente no último terço do século XIX, os processos de participação política da sociedade. Diferente dos Estados marcados pela pouca participação e atuação de sindicatos na clandestinidade, essas sociedades experimentaram a criação de grandes sindicatos, partidos políticos de massa, conquistaram o sufrágio universal, entre outros elementos quepossibilitaram o surgimento da sociedade civil como esfera social.

O Estado educador: hegemonia como relação pedagógica

Esse Estado ampliado, organizador da consciência, torna-se educador. É o que explica Lucia Neves, pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) e organizadora do livro ‘A nova pedagogia da hegemonia – estratégias do capital para educar o consenso’: “A partir da consolidação da cultura urbano-industrial, o Estado torna-se educador. Ele educa o consentimento da população a uma certa concepção de mundo, e a busca do consentimento é uma dominação por hegemonia”, destaca. E completa: “Gramsci formula o conceito do Estado educador, como a direção intelectual e moral de uma classe social sobre o conjunto da sociedade. A partir daí, temos toda relação de hegemonia como uma relação pedagógica. Por isso, nossos estudos classificam esse movimento como ‘pedagogia da hegemonia’, que foi e é dominante da classe burguesa”.

Nesse sentido, a postura do Estado frente à educação ‘formal’, à escola, está orientada, como nos demais aparelhos privados de hegemonia, para o convencimento e o consenso. A pesquisadora destaca que, diante de movimentos recentes de transformação do capitalismo, as estratégias do Estado burguês para a educação também se modificaram: “Há uma ‘antiga’ pedagogia da hegemonia, desenvolvida a partir do pós-guerra e que se estendeu até os anos 1980. Nela, a tendência era o estabelecimento de políticas sociais universais, com uma ação direta do Estado muito forte. Com a crise do capitalismo dos anos 1970, ocorreram mudanças na forma de acumulação do capital, na organização da sociedade, na constituição do Estado e, também, na estrutura e na dinâmica das relações de poder. A nova pedagogia da hegemonia aparece nesse contexto, ressignificando a noção de Estado ampliado e entendendo a sociedade civil não como um espaço de enfrentamento de concepções, mas sim como um espaço de harmonização de interesses conflitantes e prestação de serviços sociais, efetuados, em boa parte, a partir do chamado ‘terceiro setor’, composto por Organizações Não Governamentais”, diz.

Um outro elemento articulado ao conceito de hegemonia é a noção gramsciana de ‘intelectual orgânico’. Segundo Eduardo Coutinho, a categoria também deve ser entendida no contexto da teoria ampliada do Estado: “É na sociedade civil que atuam os intelectuais orgânicos, buscando construir a hegemonia das classes que representam. Eles têm a função de criar, junto à sociedade, a consciência correspondente ao desenvolvimento de um outro modo de produção”, aponta. É a partir desse entendimento da possibilidade de construção da hegemonia pelas classes subalternas, apontada por Gramsci, que se desenvolve a noção de contra-hegemonia, não explicitada, com esse nome, na obra do italiano. “Os grupos dominados construirão a sua contraposição à visão de mundo hegemônica, buscando a construção de uma nova forma de organização da produção e da ordem social. Essa hegemonia alternativa, que constrói uma nova cultura, é o que corresponde ao conceito de contra-hegemonia”, sintetiza Eduardo.