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Politecnia

Ao ver o nome do verbete que dá origem a esta matéria, você deve estar pensando que se trata de mais uma receita para a formação de trabalhadores multifacetados, com diversas habilidades, que dominem diferentes técnicas e respondam a vários estímulos ao mesmo tempo. Em resumo, aquele sujeito que o mercado de trabalho atual diz que precisa: flexível, empreendedor e com capacidade de adaptação. Quer um conselho para recomeçar a ler este texto? Esqueça toda essa conversa e volte a se situar no contexto do SUS com seus princípios, diretrizes e projeto de sociedade.
Cátia Guimarães - EPSJV/Fiocruz | 01/09/2008 16h43 - Atualizado em 01/07/2022 09h42

Ao ver o nome do verbete que dá origem a esta matéria, você deve estar pensando que se trata de mais uma receita para a formação de trabalhadores multifacetados, com diversas habilidades, que dominem diferentes técnicas e respondam a vários estímulos ao mesmo tempo. Em resumo, aquele sujeito que o mercado de trabalho atual diz que precisa: flexível, empreendedor e com capacidade de adaptação. Quer um conselho para recomeçar a ler este texto? Esqueça toda essa conversa e volte a se situar no contexto do SUS com seus princípios, diretrizes e projeto de sociedade.

O objetivo do projeto de educação politécnica é superar a fragmentação do conhecimento e, com isso, buscar uma sociedade justa, digna e igualitária

É que a ideia de politecnia complementa, pelo campo da educação, a defesa do direito universal e da perspectiva ampliada de saúde trazida pelo SUS. “O projeto de politecnia na criação da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV) traduzia a articulação entre o conceito ampliado de saúde e o conceito de relação trabalho-educação, para além do capital”, explica Isabel Brasil, professora-pesquisadora da EPSJV, citando uma experiência concreta de educação politécnica na saúde.

O objetivo do projeto de educação politécnica é superar a fragmentação do conhecimento e, com isso, buscar uma sociedade justa, digna e igualitária. A história é mais ou menos assim: numa sociedade como a nossa, a escola também serve de cenário para a reprodução da desigualdade social. E o principal caminho para essa ‘ajuda involuntária’ que a educação presta é a separação entre conhecimento geral (teórico) e conhecimento aplicado (prática). Isso quer dizer que, para as classes populares, o acesso à escola, quando não é negado, fica restrito à formação instrumental para o trabalho. O conhecimento mais amplo e fundamentado, da ciência e da cultura, tornou-se privilégio de pequenos grupos, que precisam dele para continuar como dirigentes. É essa dualidade que a educação politécnica quer superar.

Mas atenção: o esforço não é de substituir o treinamento prático dos trabalhadores por uma formação teórica, e sim de integrar essas duas dimensões do saber. No primeiro número da Revista ‘Trabalho, Educação e Saúde’ , Dermeval Saviani, professor da Faculdade de Educação da Unicamp, explica assim o conceito: “A ideia de politecnia envolve a articulação entre trabalho intelectual e trabalho manual, implicando uma formação que, a partir do próprio trabalho social, desenvolva a compreensão das bases da organização do trabalho na nossa sociedade e que, portanto, nos permita compreender o seu funcionamento”.

No ‘Dicionário de Educação Profissional em Saúde’, editado pela EPSJV, o professor e pesquisador da Universidade Federal Fluminense José Rodrigues define assim as possibilidades de um projeto de politecnia: “A construção de uma concepção de educação politécnica precisaria, necessariamente, estar embasada em práticas pedagógicas concretas que deveriam buscar romper com a profissionalização estreita, por um lado, e com uma educação geral e propedêutica, livresca e descolada do mundo do trabalho, por outro”. Para Isabel Brasil, um exemplo dessa prática pedagógica necessária à formação politécnica é a adoção do currículo integrado . “Mas quando falo em currículo integrado e interdisciplinaridade, não estou me referindo a esse modelo, muito em moda, de extinção das disciplinas. Falo de um currículo que integre conteúdos das Ciências Humanas e das chamadas ciências duras, entre si e com a prática”, explica.

Para entender melhor esse esquema, é preciso ‘desnaturalizar ’ pelo menos duas ideias muito comuns nos dias de hoje. A primeira é aquela segundo a qual o objetivo da educação é facilitar a entrada no mercado de trabalho. Marise Ramos, professora-pesquisadora da EPSJV e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, lembra que a educação politécnica não pode ser pensada de forma descolada do conceito de formação omnilateral . E o que isso quer dizer? “Formação plena, integral do ser humano. Uma formação que desenvolva todas as potencialidades do ser de satisfazer suas necessidades materiais e espirituais e, assim, transitar entre a necessidade e a liberdade. Trata-se, então, da formação de um ser que é, ao mesmo tempo, produtivo e criativo”, explica. O horizonte da educação, diz, tem que ser a emancipação humana, nunca a adaptação.

O outro conceito que é preciso ser repensado para que se entenda a ideia de politecnia é o de trabalho. Isso porque nos acostumamos a definir o trabalho a partir da realidade do sistema capitalista. Com isso, perdemos a dimensão histórica, já que não foi sempre assim. O próprio Saviani, no mesmo artigo, propõe que trabalho seja definido como aquilo que caracteriza a humanidade. Segundo ele, essa é a diferença fundamental entre o homem e os animais. “Os animais têm sua existência garantida pela natureza e, por conseqüência, se adaptam à natureza. O homem tem de fazer o contrário: ele se constitui no momento em que necessita adaptar a natureza a si”, explica, e resume: “Trabalhar não é outra coisa senão agir sobre a natureza e transformá-la”.

Essas são definições importantes porque, pela perspectiva politécnica, a organização da educação — e, portanto, do currículo — se dá, necessariamente, pelo conceito e pela prática do trabalho. É o que os estudiosos desse campo chamam de ‘trabalho como princípio educativo ’.

Politecnia e SUS

As primeiras publicações sobre politecnia são contemporâneas do Movimento da Reforma Sanitária, que deu origem ao SUS. Todas essas iniciativas são, segundo Isabel Brasil, frutos do pensamento crítico e da vontade política de fortalecer a esfera pública voltada para a saúde da população. “Tratava-se de ações voltadas para a universalização e democratização da saúde e a reafirmação de uma educação emancipadora dos trabalhadores de nível médio e fundamental dessa área. Uma formação que considera que eles desenvolvem um trabalho humano e, portanto, reafirma a condição intrínseca de pensar e fazer ”, diz.

Mas as coincidências não são apenas temporais — há semelhanças também no projeto de sociedade que esses conceitos e ações carregam. Marise Ramos acha que os princípios do SUS são convergentes com a concepção de politecnia por várias razões. “Primeiro, porque a atenção à saúde, a assistência e o cuidado, são processos que visam assegurar a produção e a reprodução da vida humana”, diz. Por isso, a área da saúde pode servir de exemplo para aquele conceito de trabalho mais amplo — que vai além da realidade capitalista — porque atua na relação entre homem e natureza, vida e homem. Sem essa concepção trazida pela Reforma Sanitária, segundo Marise, o trabalho em saúde seria entendido como mercadoria, portanto, como apenas mais um exemplo das relações sociais de exploração. “Sob os princípios da integralidade e da universalidade, o trabalho em saúde pode se contrapor à alienação e se traduzir como processo de criação humana”, completa.

O conceito ampliado de saúde, que vai além da doença, também permite, na opinião de Marise, uma aproximação com a ideia de politecnia. Porque, ao entender que a saúde depende da qualidade de vida, faz com que se busque compreender todas as dimensões da realidade social que determinam as condições de vida das pessoas. “Por isso, a educação politécnica em saúde não pode ficar restrita aos serviços: precisa ir ao SUS. Mas não pode se deter ao SUS, e sim compreendê-lo como universo específico no qual se produzem condições objetivas e subjetivas de manutenção da vida humana, que é determinada por relações econômicas, físico-ambientais, históricas, culturais, dentre outras”, explica. E conclui: “Se a plena formação humana e sua realização como espécie é uma utopia em construção, assim também nos parece ser o pleno direito à saúde e a produção social da vida em condições de igualdade e qualidade, questões também presentes no projeto do SUS. Por isso, a educação politécnica pode ser uma mediação importante para a consolidação desse projeto. A educação fragmentada e o processo de trabalho dividido social e tecnicamente é, ao contrário, o impedimento da consolidação desse projeto”.