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Responsabilidade Social

É provável que você já tenha ouvido a expressão ‘responsabilidade social’. Nos últimos anos, ela tornou-se quase um mantra entre as empresas preocupadas em passar para seus públicos a imagem de que estão ‘antenadas’ e de que se preocupam com as mazelas do mundo. Uma busca pelos sites de algumas das maiores transnacionais do mundo permite constatar que são raríssimas as empresas que não possuem uma seção especial voltada para o tema. E nem é preciso ser uma grande empresa para adotar o tal “comportamento socialmente responsável” pregado pelo Instituto Ethos. Não é difícil, por exemplo, encontrar adesivos com os dizeres “Estabelecimento socialmente responsável: não vendemos bebidas para menores de 18 anos” espalhados por bares de grandes cidades brasileiras.
André Antunes - EPSJV/Fiocruz | 01/03/2012 16h38 - Atualizado em 01/07/2022 09h47

“As empresas são importantes agentes de promoção do desenvolvimento econômico e do avanço tecnológico que está transformando rapidamente o planeta numa aldeia global. É fundamental que exista uma consciência global que engaje todos num processo de desenvolvimento que tenha como meta a preservação do meio ambiente e do patrimônio cultural, a promoção dos direitos humanos e a construção de uma sociedade economicamente próspera e socialmente justa”. O trecho acima foi retirado do site do Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social, organização brasileira que afirma ter a missão de “mobilizar, sensibilizar e ajudar as empresas a gerir seus negócios” de acordo com os princípios da responsabilidade social. Mais a frente, o texto ressalta a importância do setor empresarial nesse processo: “As empresas, adotando um comportamento socialmente responsável, são poderosas agentes de mudança para, juntamente com os Estados e a sociedade civil, construir um mundo melhor”.

É provável que você já tenha ouvido a expressão ‘responsabilidade social’. Nos últimos anos, ela tornou-se quase um mantra entre as empresas preocupadas em passar para seus públicos a imagem de que estão ‘antenadas’ e de que se preocupam com as mazelas do mundo.  Uma busca pelos sites de algumas das maiores transnacionais do mundo permite constatar que são raríssimas as empresas que não possuem uma seção especial voltada para o tema. E nem é preciso ser uma grande empresa para adotar o tal “comportamento socialmente responsável” pregado pelo Instituto Ethos. Não é difícil, por exemplo, encontrar adesivos com os dizeres “Estabelecimento socialmente responsável: não vendemos bebidas para menores de 18 anos” espalhados por bares de grandes cidades brasileiras. A seguir, você ficará sabendo mais sobre a origem, o alcance e as implicações da adoção dos discursos e práticas da responsabilidade social.

Crise capitalista e acomodação

No livro “A direita para o social: a educação da sociabilidade no Brasil contemporâneo”, o professor da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), André Martins, explica que o termo se popularizou entre empresários e intelectuais da burguesia dos EUA, onde, na década de 1970, ocorreu “uma forte onda de protestos sociais e políticos, acompanhados de movimentos culturais alternativos que, em geral, reivindicando a paz, abalaram a legitimidade de governos e a imagem de empresas que mais lucravam com a política externa estadunidense, principalmente com a guerra no Vietnã”, escreve. Na tentativa de desarmar o discurso de contestação desses movimentos, o setor empresarial passou a defender que as empresas adotassem práticas visando não só ao lucro, mas também ao desenvolvimento social. Como afirma Martins, em entrevista à Poli, a ideologia da responsabilidade social se constrói pela unidade indissociável do político com o econômico, e é justamente no período de crise capitalista entre as décadas de 1970 e 1980 que ela ganha projeção mundial. Nesse período, aponta o professor, a crise do desenvolvimento econômico gerou aumento do desemprego, queda dos salários, aumento dos movimentos de protesto e questionamento do próprio capitalismo. “Assim a responsabilidade social se converteu em uma tentativa de ‘organizar a casa’, uma forma de restabelecer as relações sociais capitalistas em outro patamar, com a incorporação de demandas sociais subordinadas à visão de mundo capitalista. Os empresários passaram a atuar em projetos ambientais, culturais, educacionais, procurando sinalizar as bases de convivência no mundo contemporâneo”. A classe trabalhadora e os movimentos sociais, por sua vez, ao verem parte de suas demandas atendidas, ainda que de modo fragmentado, acabaram por abandonar projetos societários alternativos e passaram a reforçar a perspectiva burguesa, restabelecendo a coesão social.

Duplo Movimento

No interior da classe empresarial, a responsabilidade social também exerce um papel importante no âmbito da concorrência intercapitalista. “É fácil visualizar com o exemplo do trabalho infantil: as empresas socialmente responsáveis acreditam que o trabalho infantil não deve ser explorado e propõem isso como agenda positiva, de tal maneira que impeça que empresas e empresários inescrupulosos criem diferenciais na concorrência, implicando nos preços”, como explica Martins. Segundo ele, a responsabilidade social, assim, exerce um duplo movimento: no interior da burguesia, sinaliza uma nova postura em relação aos negócios, e para fora da classe empresarial, visa apresentar elementos que permitam construir um novo padrão de sociabilidade referenciado na visão de mundo burguesa.

Papel do Estado

No Brasil, a responsabilidade social ganha força a partir dos anos 1990, quando o país enfrentava altas taxas de inflação e desemprego. O período coincide com a difusão, em nível mundial, do ideário político neoliberal da chamada Terceira Via, que de acordo com André Martins, procura apresentar uma alternativa para o neoliberalismo ortodoxo e a social-democracia. “O programa da Terceira Via visa superar pontos críticos do projeto neoliberal ortodoxo, sinalizando novas possibilidades de retomada do desenvolvimento capitalista. Ele propõe redefinir o papel da aparelhagem do Estado e incentivar a participação de organizações da sociedade civil na execução de políticas sociais. A ideologia da responsabilidade social casa como uma luva nesse projeto”, afirma o professor.

Os governos Fernando Henrique Cardoso e Luis Inácio Lula da Silva contribuíram significativamente com a difusão da responsabilidade social. “Durante o governo Lula, o BNDES [Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social] abriu linhas de crédito para financiar projetos de responsabilidade social a juros baixos, permitindo que empresas buscassem recursos para executar suas ações por meio de empréstimos”, afirma Martins, e completa: “Se os projetos eram voltados para o público externo das empresas, os juros eram menores do que os cobrados nos projetos voltados aos trabalhadores. Com isso, o governo deixou muito claro para os empresários a importância da ação de fundações empresariais junto à sociedade”. No governo Dilma Rousseff, aponta André, vem ocorrendo uma ratificação dessas práticas, principalmente através das chamadas parcerias público-privadas. “De modo geral esse movimento reforça a possibilidade de focalização das políticas sociais, de redução de seu alcance. Ao invés de políticas universais, temos políticas sociais focalizadas e fragmentadas”.

Colaboração

No campo das relações de trabalho, a grande transformação trazida pela adoção da responsabilidade social pelas empresas é a ressignificação das relações entre patrões e empregados, expressas, por exemplo, no emprego de uma nova terminologia para designar os trabalhadores. “Hoje é muito comum a utilização do termo ‘colaborador’. Isso faz parte de uma estratégia de reconhecimento do trabalhador como ser social. Assim, o trabalhador deixa de se ver como um assalariado e de ver o patrão como alguém que o explora”, explica André Martins. Torna-se cada vez mais comum, continua André, a adoção, pelos empresários, de políticas como a participação nos lucros e o pagamento de planos de saúde. “Com isso se afirma também um processo novo de intensificação do trabalho. Essa relação torna, de uma forma mais rica, o trabalhador identificado com a empresa, e quanto mais identificado com a empresa mais produtivo ele se torna”, afirma Martins.

De acordo com o professor da UFJF, a naturalização de um quadro em que os trabalhadores trabalham cada vez mais se consolida também com outra prática muito difundida pelos ideólogos da responsabilidade social: o incentivo ao voluntariado. Muitas empresas, diz ele, formam comitês de voluntários para atuar em ações sociais, como campanhas de distribuição de alimentos e reformas de escolas, por exemplo. A participação nesses comitês acaba se tornando um diferencial de empregabilidade para os trabalhadores.  “Então, mesmo quando o trabalhador tem visão crítica sobre programas empresariais de voluntariado, ele adere ao programa por reconhecer que, na hora da demissão, aquele que participou tem mais chances de ficar na empresa, ou saindo da empresa tem mais chances de se recolocar no mercado, uma vez que o voluntariado é diferencial no currículo”, explica. Para Martins, os programas de voluntariado dentro das empresas acabam caracterizando um processo de sobretrabalho. “Acontece de o trabalhador ser convocado a atuar em uma ação da empresa no final de semana, sem receber remuneração nenhuma por isso. Se isso gera tensão e preocupação para alguns, muitos assimilam facilmente isso, porque acreditam que estão de fato fazendo a diferença e mudando o mundo”, aponta. 

Pedagogia da hegemonia

Para André Martins, a disseminação da ideologia de responsabilidade social e da penetração cada vez maior do setor privado na educação tem como efeito o aumento do gerencialismo nas instituições de ensino. “A escola passa a funcionar como empresa: ela deixa de ser uma instituição social para ser organização social, que precisa cumprir metas, gerar ‘produtos’ quantificados e qualificados, reduzindo a formação humana dos alunos. O lugar da crítica e do questionamento deixa de existir”, alerta. Esse gerencialismo, para Martins, impõe às futuras gerações de trabalhadores uma formação restrita, baseada na pedagogia das competências e na teoria do capital humano. “A responsabilidade social é uma expressão da nova pedagogia da hegemonia, que são estratégias educativas para formar esse grande consenso necessário à coesão cívica e à manutenção do capitalismo”, ressalta o professor, e em seguida conclui, alertando para a abrangência e disseminação dessa ideologia: “Acredito que estamos vivendo um contexto novo, uma dinâmica social nova em que a hegemonia burguesa se consolida em um patamar nunca antes verificado nas nossas relações sociais”.