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Entrevista: 
Paulo Artaxo

‘A extrema-direita tem uma pauta de desenvolvimento a qualquer custo, não importam os danos ambientais, climáticos, sociais ou econômicos’

Foi grande a mobilização de entidades científicas e organizações da sociedade civil quando, ainda em 2021, o Projeto de Lei 2.159 foi aprovado na Câmara dos Deputados. As denúncias, de que a proposta desmontaria a legislação ambiental brasileira, com efeitos diversos sobre o meio ambiente e a saúde da população, certamente contribuíram para que a tramitação do texto não fosse tão rápida quanto se temia naquele momento. Uma mobilização talvez até mais ampla, que envolveu manifestações artísticas e muito barulho nas redes sociais, voltou a acontecer este ano, mas não surtiu o mesmo efeito: no dia 17 de julho, foi aprovado aquele que já entrou para a história como o ‘PL da Devastação’. Transformado na Lei 15.190/2025, o texto foi sancionado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva na semana passada com 63 vetos, que vieram acompanhados de uma Medida Provisória (MP) e outro Projeto de Lei sobre o tema, ambos iniciativas do governo federal. A resposta que o Executivo promoveu sobre o desmonte da legislação ambiental tem causado debates calorosos. Nas páginas e telas dos principais jornais, entidades empresariais de diferentes segmentos criticam o governo pelo “retrocesso”, enquanto organizações científicas e movimentos sociais comemoram os vetos e, em alguns casos, consideram que era preciso ter ido além. Nesta entrevista, o professor Paulo Artaxo, do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (USP), que integra o Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC), classifica como imprescindíveis os vetos feitos pelo governo que, na sua avaliação, está buscando firmar com o Congresso um compromisso de garantir o desenvolvimento econômico sem pôr em risco o meio ambiente e a saúde da população brasileira. Mas ele também aponta zonas de sombra – como os critérios para se definir se um empreendimento tem pequeno, médio ou alto potencial de impacto ambiental – e faz críticas à manutenção de um mecanismo chamado Licença Ambiental Especial (LAE), que permite que critérios políticos e econômicos se sobreponham à análise técnica no caso de alguns empreendimentos.
Cátia Guimarães - EPSJV/Fiocruz | 15/08/2025 10h13 - Atualizado em 15/08/2025 10h52

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva vetou 63 pontos do Projeto de Lei 2.159/2021, aprovado no Congresso Nacional, que flexibiliza o licenciamento ambiental no Brasil. Adicionalmente, editou uma Medida Provisória e formulou outro PL para suprir os vácuos legais na nova legislação. Qual a sua avaliação geral sobre a resposta e as alternativas que o governo deu ao projeto que foi apelidado de ‘PL da Devastação’?

Não há menor dúvida de que os vetos do governo ao projeto aprovado no Congresso são extremamente positivos. E, de uma certa maneira, tendem a fazer um compromisso entre a maioria do Congresso –  que, na verdade, não quer qualquer controle governamental sobre os danos aos ecossistemas, sobre os prejuízos que a sociedade pode ter pela superexploração de recursos naturais – e o posicionamento do Ministério do Meio Ambiente (principalmente, mas obviamente outros ministérios estão envolvidos), de garantir que as atividades econômicas do Brasil possam seguir um mínimo de padrão que respeite a proteção ambiental, que é absolutamente necessária para o futuro do nosso país. Basicamente, eu vejo que houve um compromisso do governo no sentido de realmente vetar os pontos que são mais destrutivos dos recursos naturais brasileiros, continuando a preservar as atividades socioeconômicas que são essenciais para o nosso país.

De fato, o principal argumento de defesa do PL 2.159/2021 é de que é preciso dar celeridade aos processos de licenciamento ambiental de modo a não atrasar o desenvolvimento do país e dar segurança jurídica aos empreendimentos. Isso é verdade?

Dentro do setor empresarial, há duas visões. Uma primeira visão é a seguinte: ‘Nós queremos ganhar o máximo possível de dinheiro no prazo mais curto possível, não importam os danos sociais, econômicos, ambientais ou climáticos para a sociedade brasileira’. Essa é a visão que mais reflete o PL aprovado pelo Congresso Nacional. Mas existe também uma outra visão de parte do empresariado que coloca que nós temos que ter um certo equilíbrio entre as atividades de todos os setores socioeconômicos e a garantia de minimização dos danos ambientais que trazem prejuízo para a sociedade brasileira. São duas visões antagônicas, na verdade.

A sociedade brasileira realmente precisa da proteção do licenciamento ambiental

Felizmente, a segunda visão está flagrantemente aumentando do ponto de vista de intensidade no Brasil. E o que eu acho é que a sociedade brasileira realmente precisa da proteção do licenciamento ambiental. Isso existe em todos os países do nosso planeta e é essencial nesse equilíbrio entre a voracidade de quem quer ganhar o máximo possível de dinheiro no menor espaço de tempo possível e a necessidade de preservação dos ecossistemas brasileiros para as gerações futuras.

Uma das principais mudanças aprovadas pelo PL 2.159, e criticada por ambientalistas, é a criação da Licença por Adesão e Compromisso (LAC), que dispensa empreendimentos de pequeno e médio porte de passarem por análise dos órgãos responsáveis para autorização, praticamente criando um autolicenciamento. O governo federal vetou essa mudança, mas manteve a LAC apenas para empreendimentos de pequeno potencial poluente. Qual a sua avaliação sobre isso?

Quando se permite que o empreendedor se autodeclare não poluente, abre-se um risco gigantesco para empreendimentos de médio e de grande porte. Evidentemente, se você vai fazer uma minúscula intervenção... Por exemplo, se você vai fazer uma pequena estrada de acesso à sua fazenda, isso é um empreendimento de pequeno porte ambiental. Certamente, isso pode inclusive não requerer uma licença do Ibama, uma análise que pode demorar muitos anos e ocupar o trabalho de dezenas de técnicos ambientais. Isso se justifica. Agora, quando você já chega a projetos de médio impacto ambiental, em que o risco para a sociedade aumenta significativamente, obviamente uma análise técnico-científica é imprescindível. Isso é o que esteve em discussão nesse tópico que você mencionou.

É importante perceber que, mesmo no PL do governo, na análise de projetos de grande impacto ambiental fica preservada uma análise técnico-científica. Mas a grande novidade é que isso pode ser feito através de uma intervenção direta do governo federal, montando uma comissão especial para fazer essa análise. E nessa análise pode predominar a questão política e econômica em relação à questão técnico-científica. Então, esse risco ainda existe, já que o governo resolveu editar uma Medida Provisória que coloca em execução imediata esta parte do PL da devastação.

Nesse caso, você está se referindo à Licença Ambiental Especial (LAE), que entrou em vigor com a Medida Provisória editada pelo governo, certo? Se entendi bem, você não acha um problema a Licença de Adesão e Compromisso valer só para pequenos empreendimentos com baixo impacto ambiental, como o seu exemplo da estrada, mas acha um problema que nessa Licença Ambiental Especial prevaleçam as questões política e econômica sobre a análise técnica. É isso?

Sim, isso pode prevalecer, muito provavelmente. Todo o PL, nesse sentido, é feito para que prevaleçam os interesses políticos e econômicos.

Especificamente em relação a essa Licença Ambiental Especial, o que muito se tem comentado é que há também interesse do governo em colocá-la em vigor imediatamente para facilitar a exploração de petróleo na Foz do Amazonas. Eu queria perguntar se é isso que justifica essa medida e se esse é o perigo mais iminente relacionado à aprovação dessa licença mais simplificada.

Não é exclusivo para a questão de exploração de petróleo na Foz do Amazonas. Você tem asfaltamento da BR-319, tem muitos outros projetos em todo o Brasil que podem vir a ter uma análise muito mais rápida e menos técnico-científica com a implementação dessa Licença Ambiental Especial. Então, pode estar focado, no curto prazo, na questão da Foz do Amazonas, mas certamente é muito mais amplo do que isso.

Outro ponto muito criticado e que foi vetado pelo governo Lula agora era a ampliação da autonomia dos estados e municípios no licenciamento ambiental. Eu queria entender como funciona essa divisão de responsabilidade e autonomia entre os entes federados no licenciamento ambiental hoje e o que mudará com a aprovação do texto do congresso (se houver derrubada dos vetos) ou se vingar a proposta do governo.

As secretarias de meio ambiente de cada estado fazem análise de empreendimentos que tenham impacto ambiental médio. Então, por exemplo, uma particular indústria no estado de São Paulo quer aumentar sua produção. Ela coloca uma licença junto à Cetesb (Companhia Ambiental do Estado de São Paulo) para que ela faça análise do impacto ambiental e dê a licença ambiental para isso. Isso, hoje, é feito em nível estadual. Outros empreendimentos de menor porte podem ser feitos em nível municipal, se o impacto se resume, por exemplo, aos limites geográficos de um particular município, com pouco impacto ambiental como um todo.

Mas a sua pergunta envolve o seguinte: o que caracteriza um empreendimento de baixo, médio ou grande impacto ambiental? Você percebe que no PL isso não está especificado. Eu dei o exemplo de uma estrada que um fazendeiro quer fazer na sua propriedade, porque tenho certeza de que isso é um empreendimento de baixo impacto ambiental. Agora, se essa estrada vai destruir um manancial de águas que impacta outras fazendas, por exemplo, vai destruir o rio abaixo dela, isso deixa de ter um impacto pequeno. Eu não sei onde estão estruturadas essas divisões. Mas isso não está explicitado nem no PL original nem nos vetos.

O texto aprovado no Congresso limitava a imposição de condicionantes ambientais a impactos diretos causados pelos empreendimentos. Isso foi vetado pelo presidente Lula: o texto do governo mantém condicionantes relacionadas também a efeitos indiretos mas propõe que eles tenham relação direta com o impacto causado. Eu queria que você me desse exemplos de impacto ambiental direto e indireto de um empreendimento e avaliasse as propostas que estão na mesa.

Se, por exemplo, uma siderúrgica, quer implementar uma indústria numa determinada região, o impacto direto é se ela vai emitir poluentes atmosféricos, monóxido de carbono, ozônio etc, que vão impactar diretamente a população no entorno dessa indústria. O impacto indireto é se essa indústria vai emitir gases de efeito de estufa que vão aumentar o aquecimento global.

E, na sua avaliação, os órgãos ambientais devem poder impor condicionantes tanto para impactos diretos quanto para indiretos?

Sem dúvida. Se não, acaba virando uma situação em que não se tem limite do potencial impacto na população, por exemplo, em relação a mudanças climáticas, em relação a se respirar um ar saudável.

Me dá um exemplo de uma condicionante ambiental possível para um impacto indireto de um empreendimento? Nesse caso de um empreendimento que tenha como efeito indireto a emissão de gases de efeito estufa, o que poderia ser uma condicionante?

Por exemplo, a exigência de mudança de processos que possam reduzir as emissões de gases de efeito de estufa. A Cetesb, por exemplo, aprova um  monte de projetos com condicionantes: você pode implementar o seu projeto desde que instale uma usina de limpeza de águas, desde que você instale filtros nas chaminés para reduzir as emissões de poluentes atmosféricos. Isso são os condicionantes normalmente utilizados.

A quem interessa o projeto aprovado no Congresso? A bancada do agronegócio é diretamente interessada e defensora dessa flexibilização do licenciamento ambiental. Mas empresários da indústria, organizados, por exemplo, na Federação das Indústrias de Minas Gerais (Fiemig), têm protagonizado também a defesa do PL 2.159. Qual o interesse específico desses setores econômicos na flexibilização do licenciamento ambiental?

O que eles ganham é a possibilidade de implementar projetos que tenham impacto no meio ambiente e que deixem de ter uma análise criteriosa do ponto de vista técnico-científico. O que eles querem é basicamente implementar qualquer projeto que seja do interesse econômico deles, mesmo que tenham impacto sobre a população. Mas eles querem implantar de qualquer maneira, independentemente do potencial impacto negativo na saúde, social, econômico, ambiental ou climático, sobre a população como um todo. Alguns [pontos do projeto] são específicos de interesse do agronegócio, por exemplo, para a abertura de estradas na Amazônia. Para a escoação direta da produção agrícola, o agronegócio tem interesse que não haja qualquer análise técnico-científica [desses empreendimentos]. Eles simplesmente querem abrir qualquer estrada em qualquer lugar independentemente dos potenciais impactos que isso possa trazer para a sociedade brasileira como um todo. Esse é o ponto central.

Não há hoje nenhum projeto de alteração dos biomas ou do meio ambiente que não tenha associado a ele a questão de alterações no clima

Qual a relação desse debate com as mudanças climáticas?

A ligação é direta. Não há hoje nenhum projeto de alteração dos biomas ou do meio ambiente que não tenha associado a ele a questão de alterações no clima. Seja alterando, por exemplo, o albedo da superfície, que altera o balanço de radiação, seja desmatamento que causa emissão de gás de efeito estufa, seja implementação de indústrias poluentes que vão agravar a questão das mudanças climáticas. Então, as mudanças climáticas certamente estão no cerne dessa discussão.

Esse Projeto de Lei foi aprovado na Câmara dos Deputados em 2021 mas a mobilização de pesquisadores, movimentos ambientalistas e outros segmentos da sociedade civil conseguiu travar a sua votação. Por que essa proposta de desmonte da legislação ambiental acabou sendo aprovada logo agora?

A população brasileira não é favorável à destruição da Amazônia, não é favorável a comprometer o futuro dos nossos ecossistemas

É muito simples. Nós temos um Congresso dominado pela extrema-direita e a extrema-direita tem uma pauta de desenvolvimento a qualquer custo, não importam os danos ambientais, climáticos, sociais ou econômicos. Veja o que está acontecendo nos Estados Unidos. O Congresso brasileiro simplesmente está copiando todo o modelo da extrema-direita americana, que está sendo implementado nos Estados Unidos: eliminação de todas as regulações ambientais, facilitação para a implementação de qualquer projeto, não importam os danos para os ecossistemas, para o clima ou os danos sociais ou econômicos. Então, isso se deve à mudança do perfil do Congresso brasileiro. Hoje nós temos um Congresso que não representa mais os anseios da população brasileira. Porque a população brasileira não é favorável à destruição da Amazônia, não é favorável a comprometer o futuro dos nossos ecossistemas. Foi a mudança no perfil político do Congresso brasileiro, que hoje é um Congresso totalmente dominado pela extrema-direita.

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Será a “extinção” do licenciamento ambiental no Brasil. Assim a nota da Associação Brasileira de Saúde Coletiva, Abrasco, define o que vai acontecer se o projeto nº 2.159, de 2021, que já foi aprovado na Câmara dos Deputados e está sendo agora discutido no Senado, se tornar lei. Depois de tramitar por mais de 20 anos, o texto que institui uma lei geral do licenciamento ambiental finalmente avançou, mas não sem antes ser completamente descaracterizado, tornando-se o oposto do que defendiam pesquisadores, entidades e movimentos sociais ambientalistas. Engenheiro sanitarista e professor-pesquisador da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV), da Fiocruz, Alexandre Pessoa ajudou a construir o posicionamento público da Abrasco e tem travado esse debate em todos os espaços possíveis. Nesta entrevista, ele mostra como o PL praticamente elimina o papel do Estado na regulação de obras de infraestrutura, energia elétrica, saneamento e instalações agropecuárias, entre vários outros empreendimentos que possam gerar impactos socioambientais e à saúde das populações. Além de detalhar as muitas ‘armadilhas’ embutidas no texto e exemplificar com tragédias e riscos reais, Pessoa alerta para o que considera um dos principais retrocessos do projeto: a separação, proposital, entre ambiente e saúde, ignorando-se os impactos mais ou menos diretos que as questões ambientais têm sobre a qualidade de vida das pessoas e as condições sanitárias do país.