Após 11 anos da edição anterior, e com o tema ‘Emergência Climática: o Desafio da Transformação Ecológica’, aconteceu de 6 a 9 de maio a 5ª Conferência Nacional do Meio Ambiente (CNMA). Entre atividades autogestionadas, conferências livres, municipais e intermunicipais, foram realizadas mais de 900 reuniões em seu escopo – que, de acordo com o Ministério do Meio Ambiente (MMA), mobilizaram mais de 65 mil participantes em 2.570 municípios.
A etapa nacional, ocorrida em Brasília, contou com 3.143 pessoas, sendo 1.184 delegadas e delegados – dos quais 58% foram pessoas negras, 56% mulheres e 7% pessoas com deficiência, e 20% pertencentes a povos e comunidades tradicionais, como indígenas e quilombolas. Ao longo da etapa nacional, esse público diverso da sociedade civil brasileira comemorou a retomada dessa conferência e a possibilidade de dialogar com o poder público, após período “de trevas” e “terra arrasada”, os termos mais citados por delegados à reportagem. Não poucas vezes, a ministra Marina Silva, do Meio Ambiente, foi efusivamente aplaudida pelo plenário. Em agenda internacional, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva não participou do evento. Foi representado pelo vice-presidente, Geraldo Alckmin, que esteve na cerimônia de abertura, mas saiu logo após discursar.
Os delegados se debruçaram sobre 568 proposições sistematizadas após as conferências municipais, estaduais e livres, que antecederam a etapa nacional. De forma eletrônica, portanto sem defesa em plenário, cada delegado pode eleger dez propostas de sua preferência. As 100 mais votadas compuseram o relatório da 5º CNMA, além de 87 moções aprovadas ao final.
O encontro que reuniu a sociedade civil em torno da pauta ambiental aconteceu poucos meses antes da COP30, a Conferência da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre Mudanças Climáticas, que será realizada pela primeira vez no Brasil, em novembro, no Pará. Apesar da ‘coincidência’ das datas e do tema, nenhuma das mais de 500 propostas que chegaram à etapa nacional sequer cita a Conferência do Clima. Além disso, a Secretaria Extraordinária para a COP30, instituída pelo decreto presidencial 11.955/2024, não esteve presente nas cerimônias e palestras magnas da 5º CNMA. Em nota enviada à reportagem, a assessoria do órgão explicou que “o presidente e a CEO da COP30 estão na Ministerial do Clima de Copenhague, uma das reuniões preparatórias para a conferência, mas representantes da equipe COP30 acompanham a Conferência em Brasília”, embora não soubesse precisar quem acompanhava o quê.
Apesar de tudo isso, duas moções aprovadas no encontro deixaram claro que a sociedade civil representada na 5ª CNMA pretende que as discussões e propostas elaboradas durante o evento ajudem a influenciar a COP30. Ambas reivindicavam que os delegados da Conferência do Meio Ambiente participem também da COP – a diferença é que uma delas se refere apenas à “delegação jovem”. As duas moções foram encaminhadas para o Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama). Perguntada pela reportagem da Poli sobre se essa demanda seria atendida, a ministra Marina Silva lembrou, durante entrevista coletiva, que a COP 30 é responsabilidade da ONU e não do governo brasileiro. E argumentou que “a participação social no Brasil já está garantida de muitas formas”, citando iniciativas como “campeões da COP”, “enviados da COP”, a “Cúpula dos Povos” e o “Ciclo dos Povos”. “Nós teremos a conferência [COP30] em um país democrático. As pessoas que participaram da conferência [5º CNMA] poderão sim participar, mas dentro dos espaços criados pela organização da COP30”, afirmou.
Os desafios do Brasil
Em sua fala na cerimônia de abertura da 5º CNMA, a ministra Marina Silva declarou que “o Brasil “vai realizar a COP30 liderando pelo exemplo”. “Para liderar pelo exemplo”, disse, “vamos enfrentar muitos dos nossos problemas e contradições”. E, entre comemorações e promessas apresentadas durante a conferência, contradição foi o que não faltou. O vice-presidente Geraldo Alckmin destacou o fato de o Brasil ter recuperado a governança ambiental e comemorou o mérito de o país ter sido o segundo, no mundo, a apresentar suas Contribuições Nacionalmente Determinadas (NDCs, na sigla em inglês), documentos pelos quais cada nação signatária do Acordo de Paris estabelece suas próprias metas de redução de emissões – apenas dez países cumpriram o prazo mais recente do ciclo de revisões do Acordo, em 10 de fevereiro de 2025. “Tendo 2005 como referência, e até 2035, [o compromisso é] redução entre 59% e 67% nas emissões de gases de efeito estufa”, disse. O vice-presidente também comemorou indicadores de redução do desmatamento, a aprovação da lei do mercado regulado de carbono [Lei nº 15.042/2024, que estabelece o Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões (SBCE)], a recomposição de florestas através dos fundos Clima e da Amazônia e a aprovação da “lei do combustível do futuro” (Lei nº 14.993/2024). “Nós tínhamos 13% de bio[combustível] no diesel, com óleos vegetais, mamona, dendê, soja e girassol. O governo anterior reduziu de 135 para 105. O presidente Lula aumentou para 12%, depois 13% e estamos em 14% de bio no diesel. Ninguém no mundo tem bio no diesel. Nós temos 27% de etanol, e poderemos chegar a 30% de etanol na gasolina”, afirmou. O problema, como você leu na edição especial da Poli sobre agroecologia (nº 99), é que monoculturas como a da soja e da cana de açúcar estão entre as grandes vilãs na emissão de Gases do Efeito Estufa (GEE) no Brasil.
Numa palestra magna, o secretário-executivo do Ministério da Fazenda, Dario Durigan, anunciou que a pasta trabalha para oferecer, na COP30, um fundo chamado Florestas Tropicais para Sempre (TFFF, na sigla em inglês), instrumento de financiamento para remunerar todos os países tropicais do mundo por manterem suas florestas em pé. “Nós queremos fazer com que a mobilização de capital não vá para a guerra [e sim para a] proteção das florestas brasileiras e de outros países tropicais, e essa é uma bandeira fundamental que nós vamos levar para a COP”, frisou Durigan. O secretário-executivo mencionou ainda a criação de imposto seletivo, o desenvolvimento de um mercado regulado de carbono e comemorou os números decorrentes da emissão dos chamados “títulos soberanos verdes” do Brasil. Esses títulos de dívida emitidos pelo governo federal, que buscam financiar projetos que promovam a sustentabilidade e a transição para energias renováveis, captaram até o momento US$ 2 bilhões (cerca de R$ 10 bilhões) no mercado internacional. Durigan declarou que “não é possível hoje, na nossa visão, formular política econômica, debater internacionalmente os desafios do mundo do ponto de vista do Ministério da Fazenda, do ponto de vista econômico, se a gente não trouxer para dentro do debate o desafio socioambiental”.
Na mesma semana em que ocorria a 5º CNMA, entretanto, o chefe de Durigan, o ministro da fazenda Fernando Haddad, anunciava a investidores das big techs na Califórnia (EUA), dentre eles executivos da Nvidia, Google e Microsoft, o estabelecimento de uma Política Nacional de Data Centers, prometendo incentivos fiscais e outros benefícios para as empresas de tecnologia instalarem estas infraestruturas no Brasil. A oferta de Haddad ocorre após a Agência Internacional de Energia (AIE) ter divulgado em abril de 2025 um relatório sobre ‘Energia e Inteligência Artificial (IA)’, alertando que até 2030 os data centers vão consumir a mesma quantidade de energia anual do Japão – mais que indústrias tipicamente intensivas em eletricidade, como a de alumínio, cimento e insumos químicos. Ao mesmo tempo, um data center consome em média entre 11 milhões e 20 milhões de litros de água por dia, comparável ao uso diário de uma cidade com 30 a 50 mil habitantes, conforme descrito no artigo Data centers drenam recursos em comunidades com escassez de água, liderado pelo pesquisador Eric Olson, do Centro de Estudos de Energia da Universidade de Tulsa (EUA). Não por acaso, das 100 propostas aprovadas no evento, nove eram dedicadas à gestão da água, que foi tema também de uma moção.
Tida pelos ambientalistas presentes no 5º CNMA como uma conquista, que servirá inclusive de exemplo a outros países na COP30, a legislação ambiental mereceu desagravo e manifestações a seu favor durante a Conferência. Isso porque naquela mesma semana, a poucos quilômetros dali, o Senado Federal deu andamento ao Projeto de Lei (PL) 2159/2021, que cria um novo marco para o licenciamento ambiental. O destravamento do projeto, que tem sido interpretado como um forte ataque à legislação ambiental brasileira (ver edição 92 da Poli) foi apontado pela Folha de S. Paulo como pressão do presidente do Senado, Davi Alcolumbre, para que o Ibama conceda a liberação necessária para a perfuração de poços na Bacia Foz do Amazonas, localizada a 160 quilômetros de Oiapoque, no norte do Amapá.
Alvo de uma moção de repúdio ao final da conferência, o PL contraria a proposta, aprovada no encontro, de “garantir, nos licenciamentos ambientais, a consulta prévia, livre e informada e deliberativa, de povos e comunidades tradicionais e demais populações afetadas, em seus territórios, vinculando a aprovação de todas as etapas, com geração de trabalho e renda e formação profissional inclusiva e permanente, para reduzir impactos sociais, ambientais, culturais e violações de direitos humanos”. Lembrando que, “historicamente, o Brasil sempre foi um país de contradições”, o presidente do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), Rodrigo Agostinho, que participou da 5ª CNMA, considerou como “um pouco desesperador” observar as movimentações atuais no parlamento no mesmo momento em que a sociedade civil se reunia para deliberar sobre propostas ambientais e climáticas. “O Brasil é o único país do mundo com nome de árvore mas não porque a tenha preservado; pelo contrário, é por um histórico de exploração do pau-brasil. Foram 500 anos destruindo nossas florestas. Em muitas regiões do país, o sinônimo de desenvolvimento é o desmatamento, o sinônimo de progresso é a ocupação da floresta, dos biomas. A conferência é um processo de construção participativa e um termômetro importante da sociedade. A gente vive esse dilema, de uma parte do país que hoje valoriza a questão ambiental, entende o tamanho da crise climática; e um outro setor que entende que o meio ambiente ainda ‘atrapalha’“, lamentou. Diante da aprovação do PL 2159/2021 no Senado - o texto será discutido agora na Câmara dos Deputados -, poucos dias depois da Conferência a Fiocruz emitiu uma nota técnica que afirma que o projeto “fragiliza os instrumentos de proteção ambiental e da saúde pública, além de comprometer a construção de um modelo de desenvolvimento sustentável e justo para o país”.
Acordo de Paris: cumprir ou refundar?
Talvez a mais importante contribuição que a 5ª Conferência do Meio Ambiente para a COP30 tenha sido o debate que se deu na palestra magna ‘Emergência Climática – desafios a enfrentar’, em que o meteorologista Carlos Nobre apresentou dois estudos publicados este ano na revista científica Nature, segundo os quais as metas colocadas pelo Acordo de Paris, firmado dez anos atrás, já não são suficientes. “[O físico italiano Emanuelle] Bevacqua fez previsões para o futuro considerando o ano de 2024. De acordo com ele, quando uma certa marca dos termômetros é ultrapassada, isso também se mantém na média de longo prazo. Não conseguimos mais voltar abaixo desse nível. Os resultados das simulações mostram que isso também se aplica ao limite de 1,5ºC [estabelecido pelo Acordo de Paris]. Já [o canadense Alex] Cannon avaliou que junho de 2024 foi o 12º mês consecutivo de temperaturas acima de 1,5°C, e que esses 12 meses consecutivos acima de um limite climático indicam que esse limite (1,5°C) foi ultrapassado”, explicou. E concluiu: “Os dois estudos mostram que, mesmo que a redução rigorosa das emissões comece agora, é provável que a Terra ainda esteja ultrapassando o limite de 1,5°C”. Nobre detalhou o risco de já termos ultrapassado a meta de um Acordo que ainda se luta para implementar. “77% dos cientistas do clima esperam um aumento de pelo menos 2,5°C acima dos níveis pré-industriais neste século, ultrapassando as metas do Acordo de Paris e causando consequências catastróficas para a humanidade e o planeta. Se passar de 2 graus, nós vamos liberar mais de 200 bilhões de toneladas de metano e gás carbônico. O metano é um gás muito poderoso do efeito estufa, 30 vezes mais forte que o gás carbônico”, explicou, defendendo que “o combate à emergência climática está só começando e deve continuar, não importa o quão alta seja a temperatura global, porque cada fração de grau evitada reduziria o sofrimento humano”.
Em entrevista à Poli, o físico Paulo Artaxo, integrante do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês), foi direto. “Nós já ultrapassamos 1,5ºC. A questão não é mais limitar o aumento da temperatura, é acabar com o uso e exploração de combustíveis fósseis e com o desmatamento das florestas tropicais. Se a gente não centrar nas principais fontes causadoras do efeito estufa, esquece. Nenhuma meta funcionará se você não acabar com o uso de combustíveis fósseis o mais rápido possível, em todos os países. Esse deve ser o foco. Enquanto não mudarmos o padrão do uso de energia, e de consumo da sociedade, qualquer meta deixa de ter sentido”.
Perguntada pela reportagem da Poli se, diante desses dados, o mundo corre o risco de debater na COP30 parâmetros do Acordo de Paris que não se sustentam mais, Marina Silva também reforçou que, independentemente do grau de aquecimento, os países precisam adotar a descarbonização. “A Ciência tem um papel crucial nesse debate. A ideia de não chegar ao ponto de não retorno, dentro do IPCC, foi algo que se firmou independentemente da pressão de governos, do setor financeiro ou de empresas. A Ciência bancou que esse limite é 1,5º C. Agora a Ciência está dizendo que a oportunidade de não atravessarmos o 1,5º C já se estreitou de forma assustadora. Nós estamos aqui para fazer o dever de casa: quanto mais grave é o diagnóstico, maior é a necessidade de tomarmos as medidas no tempo certo e na intensidade adequada”, afirmou.
Na pauta da diplomacia que negocia os acordos da COP30 em Belém, entretanto, os parâmetros do debate não mudaram. “A sociedade precisa entender que a COP não é uma COP do Brasil, ela é uma COP no Brasil. Ela é um espaço de negociação, e agora o que está se negociando não é um novo acordo de Paris, é a implementação do acordo de Paris”, afirma o presidente do Ibama, Rodrigo Agostinho.
Petróleo: o vilão ausente
Embora no Brasil a maior parcela das emissões de GEEs venha da atividade agropecuária (ver edição 99 da Poli), mundialmente o setor de energia – através da queima de combustíveis fósseis como petróleo, gás e carvão – é responsável por cerca de 73% das emissões. Reduzir seu uso, portanto, colaboraria para o que Marina Silva chamou de “medidas no tempo certo e na intensidade adequada”. Apesar dessa evidência, a palavra ‘petróleo’ foi uma grande ausência nas 568 proposições que foram encaminhadas para deliberação dos delegados da etapa nacional da 5º CNMA – quando se analisam as 100 propostas aprovadas no encontro, não aparece sequer a expressão “combustíveis fósseis”, diretamente relacionada à emissão de gases de efeito estufa. Também entre as 87 moções aprovadas, o termo aparece uma única vez, num texto que se coloca “Contra a abertura de nova fronteira exploratória na Costa Amazônica e Amazônia Livre de Petróleo”. “Fazer a Conferência sem abordar essas questões concretas é negacionismo”, opina o engenheiro ambiental e gerente do Instituto Internacional Arayara – que durante o 5º CNMA organizou manifestações no plenário contra a temas projetos em andamento, como a exploração de petróleo na Amazônia e em Fernando de Noronha, além da construção de uma termelétrica, a UTE Brasília.
Na mesma semana em que acontecia a 5ª CNMA, o presidente da COP30, embaixador André Corrêa do Lago, enviou uma carta aos quase 200 países que participarão da conferência do clima no Brasil sem mencionar nenhuma vez os combustíveis fósseis. E a ausência não parece trivial. As COPs 28 e 29 foram realizadas respectivamente nos Emirados Árabes Unidos e no Azerbaijão – países cujas economias dependem do petróleo –, nas quais foram vetadas referências diretas ao produto. A 28 chegou a ser apelidada de “COP do Petróleo” pela imprensa internacional que cobriu o evento. Diante deste cenário recente, em março de 2025 um grupo de 260 organizações não-governamentais (ONGs) de todo o mundo endereçou carta ao governo brasileiro, à presidência da COP30 e à Convenção do Clima da ONU (UNFCCC, na sigla em inglês) pedindo o fim da influência de lobistas do setor de combustíveis fósseis nas conferências do clima das Nações Unidas