Em relação ao tipo de formação que promove, e não exatamente ao que está na legislação, como podemos definir a “educação profissional”? Uma primeira tendência seria definir como aquela que promove a formação para o trabalho, que ensina os ofícios. Mas se poderia ponderar que os cursos de graduação, no Brasil, também fazem isso. Qual a diferença?
Sim, cursos de graduação, sejam eles bacharelados, licenciaturas ou superiores de tecnologia, e também os de pós-graduação stricto e lato sensu, promovem educação profissional. Ou seja, propõem-se a qualificar e habilitar pessoas ao exercício de ocupações e profissões. A educação básica também tem esse sentido de preparação para o trabalho, embora de forma geral, preliminar e de sustentação aos estudos específicos. Você me pergunta sobre a diferença. Bem, atualmente o que se diz é que educação profissional abrange apenas aqueles cursos inscritos nessa categoria pela legislação: os de formação inicial e continuada (FIC), a educação técnica profissional de nível médio, os cursos superiores de tecnologia, os mestrados e doutorados profissionais. Penso que essa visão segmentada e diferenciadora, de certa forma, tem a ver com o preconceito contra o trabalho e trabalhadores e a necessidade de manter a dualidade estrutural do sistema de ensino. E isso não somente no Brasil.
Em relação à história de constituição desse campo, qual a diferença entre formar para o trabalho e formar para o mercado de trabalho?
A ideia de formar para o mercado de trabalho traz implícito o pressuposto falso de que esse mercado seja um espaço de trocas entre iguais. Nunca foi isso, muito menos na atualidade caracterizada por profunda desregulamentação das relações de trabalho e perda de mecanismos de proteção ao trabalhador. Formar para o mercado de trabalho, na verdade, é um conceito guiado pela lógica da instrumentalização da força de trabalho. Converge fundamentalmente para o propósito de atender necessidades da acumulação do capital.
Formar para o trabalho ou, melhor, para o mundo do trabalho tem o sentido de assegurar, primordialmente, o desenvolvimento do trabalhador e suas possibilidades de intervir de forma autônoma, criativa e com discernimento crítico nas diferentes configurações sociais e culturais dos processos produtivos.
Na prática e conceitualmente, existe diferença relevante entre educação e formação profissional?
Na França, o termo corrente é formação profissional. Na literatura anglofônica, se utiliza vocational education. Minha hipótese é de que, sob a influência desta última, passa-se a adotar, no Brasil, o termo educação profissional. O fato é que essa substituição veio dentro de um contexto de mudança discursiva, nos anos 1990, em favor da tese de que mudanças tecnológicas demandariam um novo perfil de trabalhador caracterizado por maior educabilidade. No meu entendimento, porém, a substituição de um termo pelo outro não implica, necessariamente, diferenças relevantes em matéria de políticas, programas e projetos.
Nem sempre a função de ensinar um ofício esteve vinculada à instituição escola. Existe um marco internacional para essa mudança? E no Brasil, quando e por que esse segmento passou a ser considerado uma etapa da educação formal atribuída à escola?
Antes da constituição dos modernos sistemas nacionais de ensino, eram as corporações de ofício que promoviam a regulamentação das atividades profissionais e se encarregavam da aprendizagem dos jovens trabalhadores, que entravam nelas como aprendizes e, com o tempo, passavam a oficiais e, depois, a mestres. Como elas detinham os segredos das fabricações e tinham muito poder sobre a regulação das trocas das mercadorias, elas passaram a ser um entrave ao desenvolvimento do capitalismo. Porém, a desativação delas transcorreu de forma gradativa e diferenciada por territórios e ramos de atividade. O golpe de misericórdia veio com a internacionalização dos mercados. Talvez seja esse o marco internacional para a transição do ensino profissional para as instituições escolares.
"No Brasil, o que fincou tradição não foi a educação profissional como parte do sistema formal de ensino, mas sim a informal transcorrida na espontaneidade dos processos de trabalho das empresas e a não-formal desenvolvida intencionalmente com o fim de adaptar os trabalhadores às demandas da produção
No Brasil, a criação por D. João VI, em 1808, no Rio de Janeiro, do Colégio das Fábricas, tem sido considerada um marco de referência. Essa medida derivou do fim da proibição às colônias portuguesas do estabelecimento de manufaturas. Essas não foram, contudo, capazes de enfrentar a concorrência com os produtos ingleses. Por outro lado, convencionou-se ser a agricultura a vocação do país. Com isso, o Colégio das Fábricas se desfez.
Nota-se que, na sequência, as instituições escolares de educação profissional que foram criadas pelo poder imperial ou por entidades da sociedade civil tinham caráter assistencialista e destinavam-se a atender órfãos, abandonados ou pessoas com deficiências. É o caso, por exemplo, do Imperial Instituto dos Surdos-Mudos e do Asilo dos Meninos Desvalidos do Rio de Janeiro, que depois passou a se chamar Escola Estadual João Alfredo. Mas, é a passagem do Brasil à condição de República que, de fato, se constitui um marco da entrada da educação profissional para a educação escolar.
Antes, como se dava a formação para o trabalho no Brasil? Qual o papel da indústria ou do setor produtivo de um modo geral nesse processo?
Essa formação ocorria e ainda ocorre, na grande maioria das vezes, no próprio fazer do trabalhador, no ambiente laboral. Com isso, no Brasil, o que fincou tradição não foi a educação profissional como parte do sistema formal de ensino, mas sim a informal transcorrida na espontaneidade dos processos de trabalho das empresas e a não-formal desenvolvida intencionalmente com o fim de adaptar os trabalhadores às demandas da produção e aos seus aparatos e técnicas.
Com respeito, portanto, ao papel da indústria ou do setor produtivo nesse processo, pode-se dizer, sem dúvida, que foi e tem sido de disciplinamento para adaptar os trabalhadores às suas demandas, um condicionamento prático-instrumental destituído de conhecimento científico e subordinado às regras de maximização do uso da força de trabalho.
Polêmicas sobre a relação da escola com o setor produtivo atravessam toda a história da educação profissional no Brasil. Na origem, existem marcos que mereçam destaque?
Parece-me que uma primeira controvérsia esteve relacionada com o que vinha sendo feito, historicamente, em matéria de formação profissional, já que essa tinha como principais finalidades o assistencialismo e a contenção social da marginalidade. Esse projeto entrou em disputa com outro, o de fazer da educação escolar uma estratégia de formação do novo trabalhador. Havia uma massa humana liberada com a abolição da escravatura, mas destituída dos requisitos exigidos pela indústria nascente. Por outro lado, havia-se que evitar a importação de novos contingentes de força de trabalho estrangeira, pois com ela se ingressavam militantes anarquistas, representando um custo político que a burguesia queria evitar.
A criação do Sistema S pelo governo federal abriu outras polêmicas. A primeira, com a reação dos empresários à proposta de lhes transferir a responsabilidade pela qualificação da força de trabalho necessária à expansão da industrialização. A segunda derivou do modelo de financiamento adotado para esse sistema, a gestão privada de recursos públicos. A terceira polêmica decorre do questionamento da decisão de colocar a formação dos trabalhadores submetida à lógica dos interesses empresariais. Tais questões vêm atravessando, até hoje, a história da educação profissional no Brasil.
É possível mapear os principais modelos de educação profissional ou formação para o trabalho que disputaram espaço ao longo da história, principalmente nos primórdios desse segmento?
Alguns paradigmas estão na raiz da formação para o trabalho no Brasil e têm participado da disputa por espaço até o presente momento. São modelos de docência, fundamentalmente. O primeiro se refere à figura do mestre da oficina-escola, tomado como espelho para o aluno aprendiz, nascido com a artesania, mas também praticado no período manufatureiro e que se faz presente até hoje mesmo em nichos mais avançados dos processos produtivos. O segundo modelo diz respeito ao emprego de séries metódicas de aprendizagem, introduzido pela manufatura e pelo modelo taylorista-fordista, caracterizado pelo aprendizado de conteúdos fragmentados. O terceiro modelo é o do recrutamento de instrutores diretamente dos processos produtivos com a crença de que para ensinar, basta saber fazer. O quarto modelo é o da endogenia, o recrutamento para a docência de ex-alunos, o que leva à reprodução de esquemas e valores já praticados. Na chamada Era Vargas, de 1930 a 1945, brasileiros enfrentaram a disputa com estrangeiros, importados inicialmente da Europa e depois dos Estados Unidos, para atuar na educação profissional. Essa prática também se observou na experiência dos Ginásios Orientados para o Trabalho e no Programa de Expansão e Melhoria do Ensino, Premem, criado em 1972. A década de 1970 também testemunhou a entrada do modelo da pedagogia por objetivos, de viés tecnicista, que foi atualizado, nos anos 1990, pelo paradigma das competências.
Hoje, a educação profissional é considerada parte da educação básica. Foi sempre assim?
Não, não foi sempre assim. A aproximação com a educação básica teve seus primeiros intentos com o substituto ao projeto de reforma da instrução apresentado por Rui Barbosa, em 1882, prevendo aulas de desenho industrial nas escolas. Em 1890, houve, também, a inclusão de trabalhos manuais nos currículos do ensino primário e secundário do então Distrito Federal. Entretanto, a tendência que se consagrou, nesses primórdios, foi de criação de escolas de formação para o trabalho à parte das escolas de formação geral, processo do qual é bem representativa a instituição pelo governo federal, em 1909, em quase todos os estados, das Escolas de Aprendizes Artífices.
É interessante registrar que, entre 1922 e 1927, durante cinco anos, o projeto de Fidélis Reis, que previa a obrigatoriedade do ensino profissional no país, foi intensamente debatido e essa norma não logrou ser aprovada. Entretanto, Fernando de Azevedo, em 1928, buscou introduzir nos currículos das escolas municipais do Rio de Janeiro aulas práticas em oficinas com o intuito de reduzir a distinção entre cursos profissionais e os preparatórios para o ensino superior. Ele integrava o grupo que, em 1932, assinou o Manifesto dos Pioneiros, de cuja plataforma fazia parte a proposta de organização de cursos acadêmicos e profissionais num mesmo estabelecimento como forma de combater o dualismo estrutural da educação, considerado por eles como antidemocrático.
Mas a Constituição do Estado Novo, promulgada em 1937, definiu claramente que o ensino profissional era destinado às chamadas classes menos favorecidas. Logo a seguir, vieram dispositivos que reforçaram a separação da educação profissional da educação geral: a Reforma Capanema com suas leis orgânicas de ensino e a criação do Sistema S. A lei do ensino secundário, de 1942, definiu ser esse destinado à “preparação das individualidades condutoras”. Nesse ano, também foram promulgados os decretos-lei que instituíram a lei orgânica do ensino industrial e o Senai. Três anos depois, a Constituição de 1946 estabeleceu o regime da aprendizagem em empresas contratantes de trabalhadores menores de idade. Também nesse ano foram baixados os decretos-lei de criação do Senac e sobre a organização do ensino normal e do ensino agrícola. Tais diretrizes, inspiradas pelo corporativismo fascista italiano, tiveram com as chamadas leis de equivalência, de 1950 e 1953, uma promessa formal de flexibilização: elas passaram a permitir aos concluintes dos cursos de formação para o trabalho, sob certas condições e limitações, a continuidade de estudos em áreas do conhecimento diferentes daquelas de onde provinham.
Porém, a LDB [Lei de Diretrizes e Bases da Educação, nº 4.024] de 1961 não introduziu nenhuma mudança favorável ao rompimento da forma estratificada de organização da educação nacional. Na verdade, a tendência foi de reforçá-la com a reafirmação do caráter propedêutico do ensino médio. Por sua vez, a criação do chamado Ginásio Moderno, em 1962, e dos Ginásios Orientados para o Trabalho, em 1963, não representou senão uma acomodação a essa diretriz.
Um desvio em relação a essa tendência veio com a determinação, em 1971, pela Lei nº 5.692, de suprimir o sistema de ensino baseado em ramos e de obrigar a profissionalização a todas as escolas de segundo grau. Como se sabe, a reação a essa sentença foi muito grande e, em 1975, o Conselho Federal de Educação concede às escolas a possibilidade de organização de cursos por habilitações básicas e sem a exigência de formar técnicos.
Sim, hoje a educação técnica profissional de nível médio faz parte da educação básica, seja ela ministrada na forma integrada, concomitante ou subsequente. Isso foi estabelecido pelo Decreto nº 5.154/2004, que revogou o Decreto nº 2.208/1997. Esse último buscou regulamentar os artigos da LDB (Lei nº 9.394/1996) referentes à educação profissional dando continuidade à tradição de separá-la da educação básica.
Faz sentido essa relação entre educação profissional e educação básica?
Sim, faz sentido. Tal como afirmavam os Pioneiros, em seu Manifesto de 1932, a estratégia de separá-las é antidemocrática. Todos têm direito a uma educação unitária comum, alicerçada no trabalho como princípio educativo, na politecnia e na indissociabilidade entre teoria e prática, que favoreça uma sólida preparação para a vida produtiva e social e a continuidade nos estudos.
A Rede de Educação Profissional Científica e Tecnológica comemorou, em 2019, seus 110 anos. O marco desse aniversário seria o decreto do presidente Nilo Peçanha que criou as escolas de aprendizes e artífices. Por que se pode considerar que essas escolas sejam a origem da Rede?
As 19 Escolas de Aprendizes e Artífices, criadas em 1909, representam o início da atuação direta do governo federal no campo da formação para o trabalho. A responsabilidade de manutenção dessas escolas era do Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio. Em 1930, a jurisdição passou a ser do Ministério da Educação e Saúde Pública.
Elas tinham um regulamento comum, estabelecido, em 1918, mediante um decreto presidencial. Em 1919, foi criado o Serviço de Remodelação do Ensino Profissional Técnico com o objetivo de acompanhar o funcionamento dessas escolas e apontar medidas de aperfeiçoamento. Esse órgão passou a ser chamado, em 1926, de Serviço de Inspeção do Ensino Profissional Técnico; em 1931, Inspetoria do Ensino Profissional Técnico; em 1934, Superintendência do Ensino Profissional; em 1937, Divisão do Ensino Industrial. Em todas essas situações, elas funcionavam sob a orientação ministerial direta. Em 1942, mediante o Decreto nº 4.127, e com base nesse histórico de gestão, foram estabelecidas as bases de organização da rede federal.
Essas escolas, portanto, podem ser consideradas como originárias dessa rede, pois desde seu início se fizeram interconectadas, dispondo de uma identidade comum, inclusive curricular, e de normas de organização compartilhadas.
Existem experiências estaduais relevantes que remetam a esse mesmo período, do início do século 20?
Se as experiências eram ou não relevantes, há dúvidas. Sobretudo porque o que nelas prevaleciam eram as finalidades assistencialista, disciplinadora e moralizadora dos trabalhadores. Em matéria de preparação técnica, elas se voltavam, sobretudo, para o ensino de ofícios tradicionais.
Em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, existia o Instituto Técnico Profissional da Escola de Engenharia de Porto Alegre, mais tarde denominado Instituto Parobé, em homenagem ao ex-diretor dessa Escola de Engenharia, professor João José Pereira Parobé, criador do ensino profissional técnico no estado gaúcho. Por conta da existência prévia desse Instituto, o estado ficou de fora da iniciativa federal, de 1909, de criação das Escolas de Aprendizes Artífices. Dois anos depois, um decreto presidencial determinou que esse Instituto passasse a ser considerado como Escola de Aprendizes Artífices do Rio Grande do Sul enquanto não fosse estabelecida uma escola da União com essa identidade. Porém, essa escola nunca chegou a ser criada.
No então Distrito Federal, existia em funcionamento, à época, o Instituto Profissional João Alfredo, destinado aos adolescentes pobres com idade entre 12 e 15 anos. Essa instituição chamava-se antes Asilo dos Meninos Desvalidos, criada pelo Imperador Pedro II, em 1875. Entre 1933 e 1934, passou a denominar-se Escola Secundária Técnica João Alfredo, depois Escola Técnica Secundária João Alfredo (1934-1956). No local, funciona, atualmente, o Colégio Estadual João Alfredo. No Rio de Janeiro, também existia, desde 1906, a Escola Prática de Aprendizes das Oficinas do Engenho de Dentro criada pela Estrada de Ferro Central do Brasil.
Além do decreto de Nilo Peçanha – ou mesmo antes dele – houve iniciativas parlamentares ou jurídicas relevantes que apontassem para a criação ou o fortalecimento da educação profissional naquele início de século?
Podem ser mencionados o Decreto de 19 de abril de 1879, que previa a introdução da prática manual de ofícios nas escolas primárias do Município da Corte; o substitutivo do Conselheiro Rui Barbosa ao projeto de reforma da instrução (1882); um projeto do Deputado Antônio de Almeida e Oliveira propondo a fundação de institutos de preparação técnica (1883); a aprovação pela Câmara dos Deputados, agora no contexto da República, de destinação de recursos para a criação de escolas profissionais federais (1906); a Lei Álvaro Batista, de 1911, que integrava a aprendizagem técnica ao plano da instrução pública municipal do Rio de Janeiro; a criação da Escola Normal de Artes e Ofícios Venceslau Brás, em 1917, e a criação do Serviço de Remodelação do Ensino Profissional Técnico, em 1920.
Existia um contexto socioeconômico mais amplo que justificasse a criação ou fortalecimento desse segmento educacional naquele início de século 20 no Brasil?
Destaco os seguintes elementos do contexto da época, que podem ter exercido influência nesse sentido: a liberação de uma massa de trabalhadores, com a extinção da escravatura, desamparados no que se refere às suas condições de garantir a sobrevivência própria e a de suas famílias; a necessidade de disciplinar e moralizar os trabalhadores como forma de conter manifestações e levantes populares contra as precárias condições de vida e os problemas sociais advindos com urbanização; as inconveniências, para os empresários e governos, de dar continuidade à importação de trabalhadores europeus, questionadores da forma praticada no Brasil de utilizar a força de trabalho; o aumento da diversificação das atividades urbanas, especialmente com a expansão do comércio, dos bancos, da construção civil, dos transportes, das comunicações e das manufaturas; e a necessidade de uma força de trabalho mais preparada para o processo de industrialização que se iniciava.
Matéria publicada em 06 de agosto de 2020.