Serviços 
O conteúdo desse portal pode ser acessível em Libras usando o VLibras

Como tudo começou

Embora tenham existido experiências anteriores, o marco de uma política nacional para o que hoje se chama ‘Educação Profissional’ se dá no início do século 20
Cátia Guimarães - EPSJV/Fiocruz | 07/08/2020 10h05 - Atualizado em 01/07/2022 09h42
Escolas de Aprendizes e Artífices na década de 1910. em sentido horário: Rio de Janeiro, Amazonas e Rio Grande fo Norte Foto: Acervo da Rede EPCT

"Considerando: que o aumento constante da população das cidades exige que se facilite às classes proletárias os meios de vencer as dificuldades sempre crescentes da luta pela existência; que para isso se torna necessário não só habilitar os filhos dos desfavorecidos da fortuna com o indispensável preparo técnico e intelectual, como fazê-los adquirir hábitos de trabalho profícuo, que os afastará da ociosidade, escola do vício e do crime; que é dos primeiros deveres do Governo da República formar cidadãos úteis à nação, decreta [que] em cada uma das capitais dos Estados da República o Governo Federal manterá, por intermédio do Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio uma Escola de Aprendizes Artífices, destinada ao ensino profissional primário e gratuito”.

Esse é o texto que abre o decreto 7.566, assinado pelo presidente Nilo Peçanha em 1909. Trata-se da justificativa para a criação daquela que é considerada a primeira política pública de âmbito nacional voltada para a Educação Profissional – que ainda não tinha esse nome nem o desenho de hoje. A partir dele, foram criadas 19 escolas em todos os estados, menos o Rio Grande do Sul e o Distrito Federal, que já tinham instituições semelhantes. E a motivação para isso não poderia ser mais clara: o foco eram aqueles que, aos olhos do governo, precisavam de caridade e disciplina.

Mal tinham se passado duas décadas desde a abolição da escravatura e a população negra no Brasil – a esmagadora maioria ex-escravos ou descendentes deles –, depois de liberta, encontrava-se sem emprego, renda e acesso aos serviços essenciais. O censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 1900 não coletou informações sobre cor ou raça, mas o anterior, de 1890 apontava um contingente de mais de 8 milhões de pretos e pardos. “O decreto do governo Nilo Peçanha tem que ser entendido como uma tentativa de resposta à situação social que o Brasil vivia pelos grupos dominantes que ocupavam o Estado naquela ocasião”, diz Domingos Leite Filho, professor da Universidade Tecnológica do Paraná, referindo-se às lutas que, junto com acordos também feitos pelo alto, levaram ao fim da escravidão. E completa: “Se você observa o texto do decreto, a educação profissional ali está na íntegra voltada a impedir que as pessoas às quais ele se destinava enveredassem pela vida do ócio, da vagabundagem e do crime. A lei traz, por um lado, o ensino elementar básico, mas ao mesmo tempo, traz um aspecto de correção social e de domínio, que reitera uma educação mínima para esses trabalhadores junto com um aspecto moral”.

Não era propriamente uma novidade. Ainda no século 19, internatos filantrópicos e estatais que se dedicavam a abrigar os ‘desvalidos’ muitas vezes incluíam o ensino de um ofício. E, como conta Luiz Antonio Cunha no livro ‘O ensino de ofícios nos primórdios da industrialização’, três anos antes do decreto de Nilo Peçanha, já havia sido apresentado ao parlamento um anteprojeto de lei que criava campos e oficinas escolares e institutos profissionais para promover o “ensino prático industrial, agrícola e comercial” em todo o país. O texto detalha: “Os internatos de ensino profissional constariam de duas seções: na primeira, seriam admitidos os ‘menores desamparados, que não forem viciosos ou insubordinados’. Na segunda seção, seriam recolhidos os menores expulsos das escolas ou quaisquer outros estabelecimentos de instrução pública; os que por insubordinação ou maus costumes, fossem trazidos ao internato pelos pais ou tutores; e os que andassem pelas ruas mendigando ou praticando vícios”.

Esse “caráter assistencialista” das instituições de educação profissional foi, de fato, a marca da política que se instalou no Brasil, tanto nas iniciativas do governo quanto nas da sociedade civil, mas Lucília Machado, professora aposentada da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) lembra uma experiência anterior que teve um caráter diferente. “No Brasil, a criação, por D. João VI, em 1808, no Rio de Janeiro, do Colégio das Fábricas, tem sido considerada um marco de referência”, conta, explicando que a decisão se deu quando a Família Real Portuguesa chegou ao Brasil e, com isso, foi suspensa a proibição de que o país produzisse mercadorias, chamadas de manufaturas. “As colônias portuguesas não foram, contudo, capazes de enfrentar a concorrência com os produtos ingleses. Por outro lado, convencionou-se ser a agricultura a vocação do país. Com isso, o Colégio das Fábricas se desfez”.

Um século depois, quando surgiram as Escolas de Aprendizes e Artífices, a pesquisadora analisa que começava a despontar também a necessidade de se formar mão de obra. E isso se justificava, principalmente, segundo ela, devido às “inconveniências, para os empresários e governos, de dar continuar à importação de trabalhadores europeus, questionadores da forma praticada no Brasil de utilizar a força de trabalho”. Na diferença entre uma educação profissional focada na caridade e na disciplina para uma formação voltada para o trabalho, se deu o que ela considera uma primeira “controvérsia” entre o lugar da escola e os interesses do setor produtivo na Educação Profissional. Isso porque, segundo Lucília, a formação focada no “assistencialismo e na contenção social da marginalidade” entrou em disputa com outro projeto: “o de fazer da educação escolar uma estratégia de formação do novo trabalhador”. “Havia uma massa humana liberada com a abolição da escravatura, mas destituída dos requisitos exigidos pela indústria nascente. Por outro lado, havia-se que evitar a importação de novos contingentes de força de trabalho estrangeira, pois com ela ingressavam militantes anarquistas, representando um custo político que a burguesia queria evitar”, explica.

O desenho da rede

É fato que a história da Educação Profissional no Brasil começa antes, mas o decreto que abre esta matéria representa, nas palavras de Lucília Machado, “o início da atuação direta do governo federal no campo da formação para o trabalho”. “[As Escolas de Aprendizes e Artífices] tinham um regulamento comum, estabelecido, em 1918, mediante um decreto presidencial. Em 1919, foi criado o Serviço de Remodelação do Ensino Profissional Técnico com o objetivo de acompanhar o funcionamento dessas escolas e apontar medidas de aperfeiçoamento”, explica, destacando que as escolas criadas, “desde seu início se fizeram interconectadas, dispondo de uma identidade comum inclusive curricular e de normas de organização compartilhadas”.  

O decreto estabelecia como aptos a se matricular nessas escolas “indivíduos” de 10 a 13 anos de idade, com prioridade para os “desfavorecidos da fortuna”. Não podiam sofrer de “moléstia infectocontagiosa” e – como uma lembrança incômoda para uma Rede que hoje se orgulha do trabalho de inclusão de deficientes (ver reportagem na edição 67 da Poli) – não podiam “ter defeitos que os impossibilitem para o aprendizado de ofício”. Esses dois pré-requisitos, inclusive, continuariam válidos por muitos anos, em vários outros modelos de escola do país. “O aspecto social corretivo e segregacional se tornava muito mais forte do que o próprio domínio de alguma letra ou habilidade para o exercício do trabalho”, diz Domingos.

Embora definisse que as escolas seriam custeadas pelo governo federal, o decreto também garantia que os produtos produzidos pelos estudantes nas oficinas poderiam ser comercializados e o dinheiro usado pela direção para a compra de novos materiais. Os principais ofícios ensinados nessas primeiras escolas mostram um certo retrato do Brasil pouco industrializado do início do século 20: alfaiataria, sapataria e marcenaria lideravam o ranking, de acordo com o estudo de Cunha – exceção era São Paulo, onde a industrialização caminhava mais rapidamente, o que se refletia também nas escolas, que já ofertavam cursos como mecânica e eletricidade.

O pano de fundo é a naturalização da ideia de que os mais abastados podem receber uma formação básica, que lhes permita inclusive chegar ao ensino superior, enquanto aos mais pobres basta uma formação que acelere a sua entrada no mercado de trabalho. A esse processo, os pesquisadores costumam chamar de “dualidade estrutural” na educação

O mesmo autor, no segundo livro da coleção, que trata do período escravocrata, conta que várias dessas atividades mais recorrentes, entre outras que envolviam o artesanato e a manufatura, eram desenvolvidas por escravos e, por isso, para se diferenciar, os “homens livres” se afastavam delas. “O trabalho manual passava, então, a ser ‘coisa de escravos’ ou da ‘repartição de negros’ e, por uma inversão ideológica, os ofícios mecânicos passavam a ser desprezados, como se houvesse algo de essencialmente aviltante no trabalho manual”, conclui o texto.

Formação Geral e Trabalho na Educação Básica

Isso mostra como aquilo que virá a ser chamado de Educação Profissional já nasce, no Brasil, como um caminho para diferenciar a educação de acordo com a origem social. O pano de fundo é a naturalização da ideia de que os mais abastados podem receber uma formação básica, que lhes permita inclusive chegar ao ensino superior, enquanto aos mais pobres basta uma formação que acelere a sua entrada no mercado de trabalho. A esse processo, os pesquisadores costumam chamar de “dualidade estrutural” na educação.

Esse dilema está longe de ser uma particularidade brasileira, mas a origem do que se desenrolou por aqui guarda detalhes importantes. “O colonialismo tinha como condição que todo conhecimento era produzido na metrópole, Portugal”, explica Domingos. Soma-se a isso, de acordo com o professor, o “desvalor social” associado ao trabalho, em grande medida pelo “estigma” da escravidão.

Cento e dez anos se passaram. E as escolas criadas naquela época sofreram muitas mudanças – que você acompanhará ao longo da série que esta reportagem inaugura. Hoje é exatamente na Rede de Educação Profissional, Científica e Tecnológica que atua boa parte dos pesquisadores que usam a categoria de ‘dualidade estrutural’ para criticar esse modelo e propor um novo lugar para o trabalho na relação com a educação. “Na nossa perspectiva, o trabalho é a base da produção da existência e, portanto, é também a base da produção dos conhecimentos”, explica Domingos Leite, defendendo que, por isso, essa compreensão do trabalho deve estar presente na educação básica, mesmo quando não se está formando para profissões específicas.

Acontece que, embora a legislação brasileira considere a Educação Profissional como parte da educação básica, na prática, os cursos desse segmento precisam fornecer conhecimentos e habilitação para o trabalho. Domingos explica: “No caso da sociedade brasileira, uma grande parcela da juventude, por necessidade absoluta de sobrevivência, ingressa na prática do trabalho. Por isso, uma educação com base em alguma especialidade profissional faz sentido ético e político no momento histórico que nós vivemos”. A disputa, diz, é por uma educação que não ignore essa necessidade nem se reduza a ela. “A esses jovens se daria além da educação de cultura geral uma educação para as profissões ainda na etapa do ensino médio”, resume, destacando que esse é o caminho que vem sendo seguido por instituições como as que compõem a Rede EPCT e a Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, da Fiocruz.

Publicada em: 04 de fevereiro de 2020.

* Atualizada em 6 de agosto de 2020.

Leia mais

Nesta entrevista, que ajudou a compor a série de reportagens da Revista Poli sobre a história da educação profissional no Brasil, o professor da Universidade Tecnológica do Paraná Domingos Leite Filho caracteriza esse segmento educacional e explica as origens da instituição escola como responsável pelo aprendizado dos ofícios. Fala ainda sobre a concepção de trabalho que deve se articular com a educação e justifica por que faz sentido defender a formação técnica ainda na educação básica, no contexto brasileiro
Em tempos de pandemia do novo coronavírus, EPSJV promove evento virtual para celebrar sua trajetória
Nesta entrevista, realizada para a produção de uma série de reportagens em homenagem aos 35 anos da EPSJV/Fiocruz, a professora titular aposentada da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Lucília Machado explica o que é educação profissional, conta como as escolas substituíram as corporações de ofício como espaço de aprendizado e fala sobre a trajetória desse segmento em diferentes momentos da história do Brasil
Entenda como a Educação Profissional, objeto da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, da Fiocruz, que está completando 35 anos, está presente na vida cotidiana dos brasileiros, inclusive agora, na pandemia