Os magistrados da Justiça do Trabalho divulgaram uma carta contra a reforma trabalhista. Os argumentos das entidades empresariais para essas mudanças muitas vezes se pautam pela antiguidade da CLT, dizem que a lei não atende mais as novas formas de produzir e trabalhar, argumentam que há uma rigidez, que não há espaço para a negociação coletiva. Eu queria que o senhor comentasse um pouco isso. A nossa legislação ela dá conta de proteger o trabalhador hoje, há espaço para a negociação coletiva?
Primeiro é importante destacar que uma lei antiga não é necessariamente uma lei ruim. Aliás, quanto mais tempo uma lei dura no ordenamento jurídico, é sinal de uma lei que amadureceu. E a CLT é hoje um patrimônio do povo. Quando se fala que a CLT está aí há muito tempo, alguns querem trazer a ideia de que ela nunca foi modificada, e isso não é verdade. A CLT já passou, ao longo desses pouco mais de 70 anos, por várias modificações. Mas ela ainda não foi atingida no seu coração, não foi modificada a ponto de perder o seu real sentido. Então, a CLT continua com o seu espírito inicial, que foi de equilibrar a relação entre o capital e o trabalho. Outro registro é que quando se fala em negociação coletiva, com o nosso modelo sindical atual, há problemas. Se nós tivéssemos um modelo de pluralidade sindical, seria melhor. Mas de todos os sindicatos que temos, apenas a metade deles, talvez, negocie coletivamente. E dentro dessa metade as negociações que nós temos visto, nem sempre são favoráveis aos trabalhadores. Incrivelmente, há negociações que afrontam garantias mínimas do trabalhador. E o que nós trabalhamos no Direito do Trabalho é o que chamamos de proteção aos diretos mínimos e o direito à norma favorável. A Constituição e a CLT são apenas o piso e não o máximo e o trabalhador tem assegurado o direito a esse mínimo, portanto uma convenção coletiva não pode reduzir garantias.
O grande empresariado, reunido, por exemplo, na Confederação Nacional da Indústria (CNI), argumenta também que hoje existe uma grande insegurança jurídica em relação à negociação coletiva, que gera uma quantidade muito expressiva de processos. Por que há tantos processos na Justiça do Trabalho?
Há um grande número de processos na Justiça do Trabalho basicamente porque há um grande número de descumprimento do ordenamento jurídico, não é por conta de acordos coletivos. Tudo o que chega à Justiça do Trabalho é por conta de um conflito, e esses conflitos se dão, basicamente, por conta de horas extras e de rescisões de contratos que não foram pagas parcialmente ou integralmente. Na verdade, essa questão própria do acordo coletivo é um tema de discussão marginal no campo dessa quantidade grande de processos.
A Justiça do Trabalho não pode inverter a lógica constitucional como imaginam as confederações patronais. O acordo coletivo de trabalho (ACT) não foi criado para proteger a estrutura empresarial. O instrumento do acordo pode criar cláusulas que ora favoreçam a estrutura empresarial, quando a Constituição prevê, como a redução da jornada proporcional à redução dos salários, mas isso tem que ser visto em cada oportunidade, em cada circunstância, e quando for o caso, não de forma perene. Agora, o que tem se imaginado é que o ACT possa, por exemplo, prever o provisionamento do pagamento do 13º durante o ano inteiro, ou então um fracionamento de férias e outros direitos de forma muito alargada e indiscriminada. Isso não pode ocorrer. A lei é um campo de proteção daquele que na relação de trabalho é mais enfraquecido, historicamente e concretamente. É aí que se subestima a lei. Se nós combinarmos o artigo 7º da Constituição com o 114, parágrafo 2º, fica muito claro que o acordo coletivo deve vir a cada ano para olhar o que já foi construído e tentar construir alguma coisa a mais. Pode até ser que diante de um panorama econômico específico se diga: olha, não vamos poder avançar este ano mais do que já está posto. Mas regredir direitos só no limite do que a Constituição já estabelece textualmente. Por exemplo, reduzir a jornada e, proporcionalmente, o salário. Ou reduzir apenas a jornada, porque a empresa já tem uma economia de custo de energia com as suas máquinas. Mas ir além disso, tentar dar uma criatividade máxima ao que a Constituição já diz, é impróprio.
O trabalhador é o lado mais vulnerável dessa relação?
É. Muito se fala da crítica ao Direito do Trabalho, pelo caráter protetivo, porque é um direito próprio dos trabalhadores. Mas não se fala de um direito protetivo da classe média, que é o direito do consumidor. O direito do consumidor, que é basicamente um direito de classe média, que investe tutelas protetivas da mesma forma ou até em grau mais intenso, não sofre essa crítica como se tem visto no Direito do Trabalho. O direito do consumidor diz claramente que quem tem que provar que um produto não é defeituoso é o empresário. Esse é um exemplo, tem outros tantos. E não há uma campanha tão forte para rever o direito do consumidor. É muito curioso isso. Então esses gerentes de cidadania, que falam do campo do direito do trabalho, não falam que a indústria vai fechar por conta do direito do consumidor. Claro que não irá fechar por conta disso, como não irá a bancarrota por conta do direito do trabalho. A questão, na verdade, é de caráter econômico. A CLT está aí há um pouco mais de 70 anos, e já passou por momentos de pico na economia, de crise econômica, e era a mesma lei. Na verdade, são os momentos de boa ou má gestão da economia, fatores externos e internos, que determinam se as empresas se darão bem ou mal. Não é a legislação do trabalho, ela não é determinante para que uma empresa tenha uma boa saúde financeira ou não.
Em entrevista, uma representante da CNI citou como exemplo de rigidez da CLT em relação ao acordo coletivo o fato de uma empresa não poder reduzir 15 minutos do almoço e permitir que o trabalhador saia 15 minutos mais cedo. Segundo ela, isso seria positivo para o trabalhador, por exemplo, porque ele não pegaria trânsito para voltar para casa, e também seria positivo para a empresa. Por que esse tipo de situação não é possível?
Olha, isso é um aviltamento à saúde do trabalhador. Quando se definiu o regime do intervalo, isso não foi tirado da cartola, não foi inventado, não foi meramente arbitrado. Quando se fala de intervalo mínimo de uma hora, isso foi devidamente estudado. Quem trabalha durante oito horas continuamente, tem que ter um intervalo mínimo. Menos do que isso, representa uma agressão à saúde do trabalhador, que é uma questão de interesse público. Trabalhar continuamente oito horas sem intervalo aumentaria a possibilidade de acidentes de trabalho. Lamento que os segmentos empresariais não estejam atentos a isso. Acredito até que muitos estão, mas quem argumenta dessa forma parece não estar preocupado com esse tipo de circunstância.
Outro ponto que tem sido anunciado como provável numa reforma trabalhista é a regulamentação da terceirização. Que características a gente vê hoje associadas ao trabalho terceirizado?
Olha, nós temos aproximadamente 12 milhões de trabalhadores terceirizados, e cerca de 35 milhões contratados diretamente. Como regra, o trabalhador terceirizado tem 30% a 40% do salário inferior ao contratado diretamente. A regulamentação da terceirização nos moldes como se desenha no Congresso Nacional (PLC nº 30/20015, em tramitação no Senado Federal), significará um aumento desse patamar. Em um futuro próximo, poderemos passar a ter 30 ou 40 milhões de terceirizados, e dez milhões de contratados diretamente. Coletivamente, para a economia, isso seria absolutamente desastroso, porque uma redução global e sistêmica dos salários impactaria no poder de compra de toda a população, reduzindo o poder de consumo na ordem de 40% em todo o país. Isso vai impactar principalmente no varejo, em microssistemas de consumo, nos pequenos comércios, no bairro, na comunidade, nas microempresas, que levam a economia adiante e empregam muita gente. Do ponto de vista industrial, nós teremos uma grande quantidade de pessoas que perderiam essa massa salarial reduzida. Os trabalhadores terceirizados são também os que mais sofrem acidentes de trabalho, então a possibilidade de nós dobrarmos ou triplicarmos a quantidade de ocorrências no Brasil é enorme.
Por que esses trabalhadores sofrem mais acidente de trabalho?
Pela não observância [das regras de segurança pela empresa], mas também pelo fato de natureza econômica. Por conta de uma redução de custo no trabalho terceirizado, não há treinamento algum. Eu próprio já julguei casos no setor elétrico, terceirizado, em que os trabalhadores foram fazer operações de risco, em rede de alta tensão, sem nenhum equipamento de proteção individual, sem bota, luva, vara, nada. O trabalhador foi queimado vivo, o corpo queimado em 80%.
Então, dizer que o trabalhador terceirizado terá um incremento dos direitos, não é verdade. Lamento, mas não é verdade. Aumenta fortemente o grau de risco, reduz direitos e reduz a massa salarial em grande escala, de forma global. Então isso é um projeto lamentável.
Mas o senhor acha que a terceirização precisa de algum tipo de regulamentação, mesmo que seja diferente dessa que tramita no Senado?
A Súmula 331, do Tribunal Superior do Trabalho, disciplina a matéria de maneira equilibrada há bastante tempo. O que nós não concordamos, de forma alguma, é prever na lei a terceirização em atividade-fim das empresas. Além disso, a própria responsabilidade do tomador de serviço tem que evoluir, e não ser apenas subsidiária, mas sim solidária.
No contexto atual, o governo interino tem anunciando uma provável reforma trabalhista, sem que pontos estejam definidos. Mas o programa do PMDB apontava propostas como a prevalência do negociado sobre o legislado e regulamentação da terceirização. O quadro é preocupante?
Muito preocupante. Levantamento do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (DIAP), feito em parceria com diversas entidades a exemplo da Anamatra, aponta que existem na atualidade mais de 50 propostas legislativas em tramitação na Câmara e no Senado que representam redução de direitos trabalhistas. É um momento para os trabalhadores ficarem muito atentos.
A Anamatra se mobilizou também contra cortes orçamentários na Justiça do Trabalho. Isso tem a ver com esse quadro?
Sim. O próprio relator da matéria afirma, há muito tempo, que tem alergia à Justiça do Trabalho.
Quem é o relator?
Foi o deputado Ricardo Barros [atual ministro interino da saúde]. Ele fez um corte que praticamente tira o fôlego da Justiça do Trabalho, ramo do Poder Judiciário que, nos últimos dez anos, já pagou aos trabalhadores, de uma forma geral, em torno de R$ 80 bilhões relativos ao descumprimento de direitos. O corte orçamentário, portanto, foi seletivo e eliminatório.
Esse corte foi só na Justiça do Trabalho?
Diversos ramos do Poder Judiciário sofreram cortes, porém não no montante sofrido pela Justiça do Trabalho: cerca de 90% das verbas de investimento e 30% de custeio. O corte já compromete o funcionamento de muitos tribunais em diversas regiões do país, prejudicando a prestação jurisdicional e, consequentemente, aqueles que procuram a Justiça do Trabalho, sejam eles empregados ou empregadores.