As COPs são, há várias décadas, uma expressão dos esforços de acordos e convenções internacionais que reforçam a concepção de que o problema das mudanças climáticas requer uma governança global. Estamos na edição nº 30. Houve avanços?
As pessoas falam que teria seria pior se não houvesse os três tratados – a Convenção Quadro do Clima, sobre as mudanças climáticas, a Convenção da Biodiversidade e a Convenção do Combate à Desertificação – que foram firmados na Rio 1992, na Cúpula da Terra. Cada uma delas gerou as suas ‘COPs’, e a COP da Convenção do Clima, que é a atual, está chegando à 30ª [edição], como você disse. Evidentemente, tudo pode ser pior. Então, dizer que as COPs representaram um fracasso não significa dizer que sem elas seria a mesma coisa, talvez não fosse. Não há nada que seja tão ruim que não possa piorar, mas, tirando esse lugar comum, é evidente que as COPs são um fracasso retumbante, por uma razão muito simples: a gente tem que levar em consideração qual era o seu objetivo. O artigo 2 da Convenção Quadro dizia que seu objetivo último era alcançar uma estabilização das concentrações atmosféricas de gases de efeito estufa, de modo a evitar uma interferência antrópica perigosa no sistema climático. Se quiser fizer um balanço dessa convenção, você tem que pensar em função desse resultado. E quais são os dados?
As 29 COPs até agora realizadas não tiveram nenhuma incidência sobre o CO2 atmosférico
Ela começou em 1992 e entrou em vigor em 1994. Em 1991, segundo os dados do Scripps Institution of Oceanography, que mede as concentrações atmosféricas de CO2 naquela montanha no Havaí, o aumento das concentrações atmosféricas de CO2 evoluía a uma taxa de 1,5 partes por milhão ao ano. Ou seja, a cada um milhão de moléculas de atmosfera, 1,5 eram de CO2. Em 2020, esse aumento chegou a uma taxa de 2,43 partes por milhão ao ano. Se você pegar desde 1961 até 2020, cinco décadas, a velocidade [de emissão de CO2] se duplicou por 2,7. Isso é um choque gigantesco para a atmosfera, porque esse é um período de tempo muito curto do ponto de vista geológico. Qual é a conclusão que a gente não pode evitar? Que as 29 COPs da Convenção Quadro até agora realizadas não tiveram nenhuma incidência sobre o CO2 atmosférico, que era um objetivo claramente expresso no [seu] artigo nº 2. Em 2024, [a emissão de CO2] subiu 3,7, foi um salto ainda maior. E se você pegar as outras convenções, a da Biodiversidade e da Desertificação, os dados talvez sejam até piores que os da mudança do clima. É uma constatação de total falência da governança global.
Mas esses esforços resultaram em algumas medidas concretas, como o Acordo de Paris, que, no entanto, têm se mostrado insuficientes. No momento em que foi firmado, o Acordo de Paris não foi um avanço da COP?
Vamos falar do lado positivo. O Acordo de Paris [foi um avanço] em relação ao Protocolo de Kyoto, estabelecido em 1997. Pela primeira vez, na COP 3, em Kyoto, foi estabelecido que haveria uma meta para se diminuir as emissões de gás de efeito estufa. Mas o que era característico do Protocolo, que foi um fracasso absolutamente retumbante porque ninguém o cumpriu, era que os países chamados subdesenvolvidos não eram obrigados a estabelecer metas de redução dessas emissões. O que a COP 21, com o Acordo de Paris, trouxe [de novo] era que todo mundo estava no mesmo barco. Desde 1972, na famosa 1ª Conferência do Meio Ambiente Humano, como se chamava, em Estocolmo, o grande embate era a ideia de que os países subdesenvolvidos não estavam nem um pouco dispostos a endossar certas medidas de diminuição de consumo, poluição etc. [É como se eles dissessem]: ‘Nós temos que nos desenvolver, vocês, que fizeram tudo, já estão desenvolvidos, nós temos que ter o direito de fazer também’. Finalmente, em 2015, com a ideia de que está todo mundo no mesmo barco, o esforço passa a ser comum e a envolver todos os países.
Em 2009, na COP 15, de Copenhague, já tinham se estabelecido oficialmente como meta a não ser ultrapassada os 2 graus Celsius na temperatura média global de aquecimento em relação ao período pré-industrial. Ainda em 2015, há um esforço muito grande por parte das ilhas do Pacífico em dizer que 2 graus Celsius era demais. Aliás, esse era um consenso científico que vinha se estabelecendo desde há muito: 2 graus Celsius era calor demais, era uma meta essencialmente perigosa, uma prescrição para desastre a longo prazo, na expressão que era muito usada pelo [cientista norte-americano James] Hansen na época. [Prevaleceu] essa ideia de que o limite seriam 2 graus Celsius, mas que se envidariam esforços para um aquecimento que não ultrapassasse 1,1 graus Celsius. Esses eram os grandes marcos da COP 21 [que firmou o Acordo de Paris]: primeiro, todo mundo estava no mesmo barco; segundo, a ideia era que a meta do aquecimento não ultrapassasse 2 graus, fosse bem abaixo dela, mirando em 1,5. Mas o Protocolo de Kyoto tinha uma característica que a COP 21 e o Acordo de Paris não tinham: ele era legalmente vinculante. É uma piada, mas era. E qual era a vinculação legal? Se o país não tivesse cumprido as suas metas, ele teria que duplicá-las na próxima rodada. Era uma espécie de castigo. A COP 21 não tem nenhuma cláusula de vinculação legal, ou seja, o país prometeu, fez uma declaração nacionalmente determinada, como eles chamam, e, se não cumpriu, não cumpriu. Não tem nenhuma cláusula que imponha qualquer sanção, qualquer restrição, nada. Portanto, é como se eu pedisse a você R$ 1.000 emprestados e dissesse: ‘se eu puder pagar, eu pago, tá? Agora, se eu não puder pagar, não pago’. Essa é a estrutura da tomada de decisão do Acordo de Paris. Portanto, ninguém cumpriu. Ninguém cumpriu porque você só cumpre quando existe uma lei que obrigue. Se não houvesse leis, cada um faria o que bem entendesse. Então, basicamente, o que estava inscrito no Acordo de Paris é o seu fracasso.
As florestas não são apenas um repositório de carbono, mas um mecanismo fundamental de regulação do clima
Acho que tem um segundo ponto que é bem importante que a gente leve em consideração. O Acordo de Paris tem 29 artigos, cada um deles bem longo. O menor é o artigo 5º, o único que fala em conter o desmatamento, inclusive [propondo] criar mecanismos para mercado de carbono nas florestas. E o artigo 6 faz exatamente toda uma explanação muito complexa, um pouco labiríntica, de quais seriam os mecanismos desse mercado de carbono até então. A concepção que o Acordo de Paris tinha era de que, do ponto de vista do clima, as florestas não são mais do que um repositório de carbono ou são pouco mais do que isso. Portanto, há uma lacuna gigantesca, que é o fato de que o Acordo de Paris e toda a Convenção Quadro das Nações Unidas sobre as mudanças climáticas estão muito fortemente baseados na ideia de emissões provenientes da queima de combustíveis fósseis, o que evidentemente é extremamente importante, mas não leva em consideração uma outra dimensão que se tornou cada vez mais importante desde então, que é a destruição das florestas. As florestas não são apenas um repositório de carbono, mas um mecanismo fundamental de regulação do clima. Nós não estamos entendendo qual é o elemento coadjuvante fundamental na questão da regulação do clima, ou da desestabilização do clima, que é o fato de estarmos destruindo florestas em um nível sem precedência na história da humanidade. Para o clima, elas são fundamentais também, como toda a questão da regulação da água, do ciclo hidrológico e não apenas do ciclo do carbono. Agora, quando chegamos à COP de Belém, na Amazônia, é que essa questão do papel fundamental das florestas na regulação do clima ganha uma relevância maior do que teve até agora.
Parece que o que faz a agenda climática global não avançar é principalmente a resistência dos países a reduzir, na prática, o uso de combustíveis fósseis. Mas você acabou de falar sobre a importância também de parar o desmatamento para frear as mudanças climáticas. Tal como o uso de combustíveis fósseis, isso também afeta diretamente o centro do capital e do modelo de desenvolvimento hegemônico? Acabar com o desmatamento e preservar florestas requer uma mudança econômica de forma tão evidente quanto a questão do uso de combustíveis fósseis?A
Algumas instituições mais lúcidas estão falando exatamente que não apenas o desmatamento, mas toda a estrutura e engrenagem do sistema agroexportador seria responsável por um terço das emissões globais
Com certeza absoluta. O que os cientistas estão mostrando já faz tempo é que o sistema alimentar globalizado, do qual o Brasil é uma peça-chave, essa circulação gigantesca de soft commodities – soja, milho, café, carne etc. –, representa um terço das emissões globais [de CO2]. Quando você vê os inventários globais de emissões feitas por diversas agências internacionais, isso não aparece. Aparece apenas o desmatamento e a degradação florestal como responsáveis por alguma coisa como 5%, 6%, 7% [das emissões de CO2], o que já seria gigantesco. Mas algumas instituições mais lúcidas estão falando exatamente que não apenas o desmatamento, mas toda a estrutura e engrenagem do sistema agroexportador seria responsável por um terço das emissões globais. Dois terços adviriam, portanto, dos combustíveis fósseis e um terço adviria desse sistema agroexportador. Isso é um dado, por exemplo, da FAO [Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura].
Você tem, de um lado, um grande oligopólio das petroleiras, estatais e privadas – na verdade, das dez maiores do mundo, oito são estatais, inclusive a Petrobras. E aí tem as big majors, que são privadas: a ExxonMobil, Chevron, Shell etc. Essa é uma estrutura oligopólica e hoje há dados dizendo que 57 dessas petroleiras são responsáveis por mais de 80% das emissões provenientes da queima de combustíveis fósseis. Agora, se você pegar o outro lado, que é o da agroquímica, esse é um oligopólio muito mais restrito ainda. A Bayer comprou a Monsanto, a ChemChina comprou a Singenta, a Dow Chemical comprou a DuPont e a Basf comprou um monte de empresas menores. Essas cinco megacorporações da agroquímica hoje controlam tudo, desde as sementes até os fertilizantes e os agrotóxicos. E você deve somar isso às quatro maiores traders, que antigamente se chamava de ABCD [Archer Daniels Midland, Bunge, Cargill e Louis Dreyfus Company] e agora se chama ABCCD, incluindo um segundo C, que é da chinesa Cofco. Essas nove megacorporações controlam todo o sistema de produção e distribuição dos commodities e são extremamente poderosas, possivelmente tão poderosas quanto as grandes majors, as big oil [petrolíferas], como se chama. E são esses dois [setores], big oil [petrolíferas] e big egg [de agricultura] que dominam o planeta. Tem outro elemento que é o sistema financeiro, os grandes bancos controlados pelas grandes administradoras de fundos financeiros. Esses três [setores] mobilizam recursos da ordem de trilhões de dólares.
Nas últimas quatro COPs, 5.350 lobistas da indústria de combustíveis fósseis, devidamente credenciados pelos Estados nacionais, tiveram acesso às negociações climáticas da ONU
Esses sistemas – as majors do petróleo, as majors da agroquímica, os bancos e os sistemas de management de fundos imobiliários – controlam tudo, inclusive, as COPs. Saiu um artigo muito interessante no The Guardian mostrando como nas últimas quatro COPs 5.350 lobistas da indústria de combustíveis fósseis, devidamente credenciados pelos Estados nacionais, tiveram acesso às negociações climáticas da ONU. No Brasil também, agora, dia 12 de novembro de 2025, o ministro da Agricultura está despachando em Belém a partir da sede da Bayer. Não precisa nem fazer uma comunicação, ele já está lá. Saiu um enorme dossiê sobre isso, chamado ‘A COP dos lobbies’, que mostra que existe uma coisa chamada AgriZone, que é praticamente uma COP paralela, que está ocorrendo ao lado da COP. Na prática, a COP virou, claramente, uma vitrine, um balcão de negócios, porque basicamente a grande questão é como ganhar dinheiro: com os mercados de carbono e o TFFF, Tropical Forest Forever Facility, que é um mecanismo de mercado de carbono para as florestas, e que remunera 4 dólares por hectare de floresta de pé. Se você fosse uma fazendeira, preferiria ganhar 4 dólares por hectare ou derrubar aquele hectare de floresta e plantar soja? É grotesco, descarado, transparente. E o mais inquietante é que não escandaliza mais.
Em textos de críticas a edições anteriores da COP, inclusive a 29, você chegou a se perguntar se faria sentido haver uma COP 30. Ela chegou e está sendo realizada no Brasil. Olhando agora, enquanto o evento acontece, embora não tenha terminado, fez sentido existir uma 30ª edição da Convenção?
A COP é o momento de denúncia e de mobilização social
A COP é tudo aquilo que acontece em volta da COP, porque é o momento de denúncia e de mobilização social, é o momento em que a imprensa fala sobre a questão, e, portanto, a questão vem à baila. E há vários relatórios científicos que, em geral, são publicados exatamente às vésperas da COP. Então, há um adensamento muito grande de informações e de mobilização, de preocupação antes e durante as COPs. Nesse sentido, as COPs têm uma função muito importante. O que acontece no espaço azul [onde se dão as negociações oficiais entre os países] não tem a mais remota relevância. Das 29 COPs, apenas uma, a 28ª, em Dubai, mencionou na declaração final a palavra ‘combustíveis fósseis’. Essa expressão não foi usada nas 27 anteriores e saiu da pauta na 29ª. É como ir a um congresso de oncologia e não se falar a palavra ‘câncer’. Falam em diminuir as emissões, como se as emissões nascessem de geração espontânea. O protocolo para diminuição dos desmatamentos foi o grande ponto forte da COP de Glasgow, em 2021, mas não teve absolutamente nenhuma incidência, pelo contrário, a curva apenas aumentou. Aliás, aumentou terrivelmente em 2023 e 2024, por causa inclusive dos incêndios. E tem outro elemento muito importante que eu tinha esquecido de dizer: o inventário das emissões de gás de efeito estufa, que os países signatários da Convenção Quadro são obrigados a transmitir para o secretariado, não leva em consideração os incêndios florestais, porque eles são considerados perturbações naturais. O Canadá, por exemplo, tem uma parte das florestas em que eles fazem manejo – essas, quando pegam fogo, eles introduzem no inventário que enviam ao secretariado da Convenção, mas se outras florestas que não estão sendo ‘manejadas’ pegam fogo, eles não põem porque são perturbações naturais. A mesma coisa acontece no Brasil.
Mas, para ficarmos no exemplo do Brasil, há forte suspeita de que os incêndios que atingiram regiões da Amazônia, cerrado e pantanal em 2024 eram provocados intencionalmente...
99% dos incêndios que se dão em florestas tropicais são criminosos. Mas não entram no inventário. Outro elemento que não entra no inventário é o seguinte: pela regra, os países são obrigados a comunicar as suas emissões líquidas [de CO2], que representam exatamente a diferença entre as emissões brutas e o quanto os sistemas de sumidouro de carbono, florestas, etc. são capazes de absorver essas emissões brutas. O fato é que as florestas estão perdendo essa capacidade de absorção e, portanto, esses cálculos das emissões líquidas não refletem mais a realidade.
Como você mesmo comentou, há uma percepção clara de que os países, sobretudo os mais ricos, têm assumido metas (por exemplo, de redução da emissão de CO2) que reiteradamente não são cumpridas, o que é um problema. Mas eu queria saber quais são as consequências do fato de um ator importante como os EUA, agora, no governo Donald Trump, mudar essa estratégia e passar simplesmente a negar a existência das mudanças climáticas e os acordos internacionais sobre o tema.
O Trump já tinha saído [do Acordo de Paris] em 2017, mas como a cláusula de compromisso [estabelece] que um país tem que avisar com antecedência de três anos que vai sair, quando completou o prazo, ele não foi reeleito e o [Joe] Biden voltou ao Acordo. Mas durante todo esse período entre 2017 e 2020, embora não estivesse formalmente desligado [do Acordo], ele já estava desligado na prática. Agora, ele simplesmente faz ameaça no sentido de que não quer mais saber disso, fez aquele discurso famoso em setembro, na ONU, dizendo que aquilo era uma farsa, e tem feito um trabalho muito forte de solapar qualquer trabalho de governança em relação a isso. Tem feito grande pressão, por exemplo, sobre o Acordo Marítimo Internacional, para diminuir as emissões de enxofre. Ele tem feito pressões muito fortes para sabotar qualquer avanço em qualquer governança global ambiental de forma geral, não precisa ser necessariamente climática. Esse é o aspecto mais negativo, claro, além do fato de que ele [os EUA] são o segundo maior emissor de gás de efeito estufa do planeta e estão acelerando muito rapidamente na direção de maiores emissões. Então, claro que é uma coisa extremamente negativa. Qual é o aspecto, talvez, menos negativo disso? A ausência dos Estados Unidos nas negociações agora da COP-30 tem um caráter relativamente positivo, no sentido que não há ali uma pressão direta e imediata para sabotar as negociações. Essa foi sempre a posição dos Estados Unidos. Você talvez lembre de ter lido, na época da Rio-92, uma declaração do George Bush pai, que estava no Rio de Janeiro, dizendo que “The American way of life is not up to negotiation period” [“O estilo de vida americano não está aberto a negociação”]. Estava todo mundo cheio de amor para dar naquele momento e o Bush jogou um balde de água fria em todo mundo. Então, os Estados Unidos, basicamente, são um país extremamente unilateral. Se você pegar o conjunto das mais importantes convenções globais, os Estados Unidos não são signatários, e quando são, o Congresso não ratificou. É um país extremamente unilateralista que, quando age, é no sentido de diminuir qualquer acordo global que possa, de perto ou de longe, prejudicar seus interesses econômicos. Então, o fato de os Estados Unidos estarem ausentes [na COP 30] tem esse lado de não ter, pelo menos, um urubu sentado na mesa, e tem também o fato de que dá à China uma oportunidade maior de fazer a sua passeata ali dentro. Embora o Xi Jinping não tenha vindo, tenha vindo apenas o vice, a China, claramente, tem agora uma liderança muito grande nessa questão e tem alguma coisa a mostrar. Nos últimos 18 meses, pela primeira vez na história da China, as emissões [de CO2] não aumentaram e, pelo contrário, diminuíram. Eu acho, pessoalmente, ainda muito prematuro achar que as emissões da China chegaram a um ponto de inflexão, mas os últimos 18 meses encorajam essa percepção.
Você tem defendido, como estratégia, um conceito de ‘decrescimento’. Eu queria entender o que isso significa na prática, por que é importante e se é possível.
A palavra decrescimento é muito pouco fotogênica, no sentido de que ninguém quer decrescer. Ninguém fala: o que você quer ser quando decrescer? Você só fala sobre o você quer ser quando crescer. A gente vem de uma matriz civilizacional que, com toda razão, entende que o crescimento é melhor, porque, por exemplo, é melhor ter dois reservatórios de milho do que um, isso te dá mais segurança. Então, é normal que as sociedades, as civilizações, por mais diferentes que sejam, tenham, pelo menos na sua grande maioria, um certo apego à ideia de crescimento. Reverter isso é muito complicado.
A palavra decrescimento é, a meu ver, muito ambígua. O que os teóricos do decrescimento entendem [por essa ideia] não é o simétrico do crescimento. Não é simplesmente diminuir o PIB [Produto Interno Bruto]. Provavelmente implicará diminuir o PIB, mas basicamente decrescer significa decrescer a interferência antrópica no sistema Terra. Se você, por exemplo, substituir a rede de transporte individual rodoviário por uma rede ferroviária coletiva de boa qualidade, vai aumentar a economia, mas vai diminuir a interferência antrópica no sistema Terra. Se você, no caso do Brasil, estender ao conjunto da população uma infraestrutura sanitária de qualidade, com esgotos, reciclagem da água etc., tudo bem tratadinho, vai aumentar a economia, porque terá que criar uma infraestrutura que não existe. Se fizer uma engenharia reversa na sua estrutura industrial, de tal maneira que possa comprar um computador e depois reciclá-lo, você está aumentando a estrutura industrial, mas diminuindo o fluxo de lixo, por exemplo, o descarte. Tudo isso é decrescimento, mas não significa simplesmente que você diminuiu a atividade econômica. É isso que as pessoas têm uma certa dificuldade de entender.
Esse nível muito primário de mensuração do sucesso de uma sociedade pelo tamanho do seu PIB é claramente estúpido, é o grau zero da inteligência
Quando a imprensa, de forma geral, fala que há um “pibinho”, uma diminuição do crescimento do PIB, [parece que] o mundo vai cair, sobretudo se for um governo mais ou menos de esquerda como é o atual. Tudo é motivo para escândalo, para pânico, porque acham que não está aumentando a economia etc. Esse nível muito primário de mensuração do sucesso de uma sociedade pelo tamanho do seu PIB é claramente estúpido, é o grau zero da inteligência.
Falando do Brasil, eu queria lhe pedir uma avaliação sobre os governos ditos progressistas, do Partido dos Trabalhadores, nas ações de combate às mudanças climáticas. Em 2010, no governo Dilma Rousseff, houve a polêmica sobre a usina de Belo Monte. Agora, mais recentemente, embora o governo se disponha a enfrentar o Congresso Nacional, por exemplo, em relação ao Projeto de Lei nº 2.159, conhecido como PL da devastação, e faça discurso contra os combustíveis fósseis, fez pressão e conseguiu autorização da exploração de petróleo na foz do Amazonas, medida que tem grande recusa dos movimentos ambientalistas. Como você lê as posições e as contradições do governo atual e das outras gestões do PT em relação à pauta das mudanças climáticas?
Você tem no Brasil um vetor muito claro, fortemente encampado pela esquerda e pelos setores progressistas, que é a questão da justiça social, assim de forma mais ampla, dado que o Brasil é um dos países mais desiguais do mundo. A justiça social é uma pauta candente, com toda razão, e hoje mais do que nunca. Essa vertente programática da esquerda brasileira é extremamente positiva, importante, imprescindível, tudo que a gente sabe. O problema é que nós não estamos mais no século 20. Se a gente estivesse no século 20, seria mais fácil. Infelizmente, a gente está com 25 anos, um quarto, de outro século, que trouxe uma emergência muito grande em relação ao conjunto das questões ambientais. Não apenas em relação ao clima, mas também à questão da biodiversidade, da poluição, da intoxicação dos organismos etc. E essa outra dimensão a esquerda tem muita dificuldade de assimilar no sentido de conferir a ela uma centralidade. É uma questão que parece sempre secundária.
A esquerda passou paulatinamente a se perceber numa posição de defesa da democracia e das instituições, o que é bastante paradoxal
E existe um outro elemento muito importante também, que é o fato de que, desde os anos 1990, nós estamos claramente percebendo uma grande ofensiva da direita no mundo, de forma geral. Portanto, a esquerda passou paulatinamente a se perceber numa posição de defesa da democracia e das instituições, o que é bastante paradoxal, porque a esquerda antigamente era exatamente revolucionária, subversiva, queria uma mudança social radical. Hoje ela é o contrário: está numa posição muito fortemente defensiva, não apenas no Brasil, mas na América Latina, na Europa. Nos Estados Unidos nunca houve esquerda mas, mesmo assim, os setores que aceitam minimamente a intervenção do Estado na economia também estão na defensiva. A esquerda hoje consegue, quando muito, barrar a ofensiva do fascismo e da extrema direita, que têm a seu favor as redes sociais digitais, que são um enorme instrumento de avanço do negacionismo climático. A situação da esquerda é essa. De um lado, o governo brasileiro tem uma tradição, uma aspiração tradicional, por maior justiça social e faz algumas coisas que são muito meritórias, aquilo que o Lula tem no centro das suas preocupações: a diminuição da fome e da desigualdade, o aumento da renda etc. São as pautas básicas do século 20 que permanecem mais atuais do que nunca. O problema é que ele não é capaz de compatibilizar, porque é muito difícil mesmo, essa pauta com a pauta [ambiental]. E, portanto, acaba relegando isso a uma pura retórica. Cria o Ministério dos Povos Originários, coloca a Marina Silva no Ministério do Ambiente, mas são ministérios completamente subsidiários. Quem manda são os ministérios das Minas e Energia e o da Agricultura. Ou seja, é mineração e agronegócio. Um ministro como o Alexandre Silveira [das Minas e Energia], por exemplo, afirma categoricamente, num documento oficial, consignado no Ministério, que o Brasil produz hoje 3 milhões de barris de petróleo por dia e que o plano do governo brasileiro é aumentar isso para 5 milhões até 2029. E você vê o Carlos Fávaro, que é o ministro da Agricultura, falando que zerar o desmatamento ilegal é irrealista. Ele se permite dizer isso. Por quê? Quem é o Carlos Fávaro? É o ex-presidente da ProSoja. São produtores da Soja. E para eles não interessa o desmatamento ilegal zero, interessa aumentar a área agrícola. Ponto final.
A gente pode dizer que o Lula tem uma correlação de forças muito desigual. É verdade. Mas na Colômbia, por exemplo, onde a correlação de forças também é muito desigual, o presidente Gustavo Pedro assinou o tratado de não proliferação de combustíveis fósseis. E ele tem petróleo, porque se não tivesse petróleo era fácil. Ele propôs isso ao Lula em 2023, naquela primeira reunião que houve dos países amazônicos. O Lula não aceitou. E por que ele não aceitou? Porque o Lula gosta de petróleo. Ele é um homem do século 20. Ele acha que aquilo vai se traduzir em melhoria do bem-estar da sociedade brasileira. Não vai. Essa é a grande barreira cognitiva da esquerda. Não é só do Lula, é da esquerda de forma geral. Eles ainda estão pensando que o aumento do petróleo pode ser uma alavanca para o progresso do país. E isso é um erro crasso. Isso é uma forma de negacionismo. A Eliane Brum batizou isso de negacionismo progressista. Porque acham que, se não formos nós, vão ser os americanos que vão explorar. É [o discurso do] ‘o petróleo é nosso’, lá do Monteiro Lobato, lembra? Do poço da Visconde. Como se houvesse um CO2 do bem. Como se o nosso CO2 fosse trazer felicidade para a nação. E se você reclamar, dizem que está querendo o Bolsonaro, que está jogando lama no Lula e fortalecendo a extrema direita. É uma situação, de fato, muito delicada.
Muita gente tem alertado que conter as mudanças climáticas é uma necessidade para a própria sobrevivência da humanidade. Isso tem significados diversos, mas eu queria que você falasse sobre a relação entre esse problema e a saúde. Há evidências concretas sobre o impacto, o efeito das mudanças climáticas sobre a saúde das populações?
Existem dados muito relevantes, que recentemente foram publicados naquela revista New Scientist, que falam bem claramente sobre isso. O artigo se chama ‘Ondas de calor e envelhecimento prematuro’. Hoje há ondas de calor que estão matando ou adoecendo as pessoas. Na Europa, que é um continente com muito dado estatístico, a gente sabe que houve 61 mil mortes em 2022 e 47 mil mortes em 2023 diretamente causadas por picos de calor. É muito difícil detectar uma causa mortis por calor, porque a pessoa morre, por exemplo, por um infarto do miocárdio, há outros elementos de vulnerabilidade [que fazem com que] esse estresse do calor cause a morte, mas ele não aparece como sendo a causa direta. Mas, no caso [desses números que acabei de citar], são mortes que foram formalmente consideradas como causadas por calor. Isso eu estou falando na Europa. Em países como a Índia, o Paquistão ou o Irã, que estão submetidos a temperaturas muito mais elevadas do que a Europa – estou falando de 51, 52, 53, até 54 graus –, as pessoas não estão aguentando esses picos de calor.
Estamos numa trajetória de Terra inabitável
Em um artigo muito importante de [um pesquisador] chinês foi dito que grande parte da humanidade evoluiu em um nicho climático muito preciso, com uma temperatura média anual territorial – portanto, não leva em consideração o mar –, de 11 a 15 graus. Isso é uma temperatura média anual, em que está concentrada a grandíssima maioria da população. O que esse artigo mostra é que, hoje, temperaturas médias anuais de 29 graus só acontecem em alguns pontos do Saara, em 0,8% da superfície terrestre do planeta, sem contar os oceanos. E eles dizem que, em 2070, alguma coisa na ordem de 29% da superfície da Terra vai ter uma temperatura média anual de 29 graus, portanto, igual a alguns pontos mais quentes do Saara hoje. Isso mostra claramente que nós estamos numa trajetória de Terra inabitável, em muitas das suas latitudes. E o Norte do Brasil é um grande candidato a se transformar em território inabitável, ou seja, [estar entre aqueles] que vão ter um número muito grande de dias do ano com temperaturas difíceis de suportar, sobretudo para quem não tiver ar-condicionado e coisas do gênero. Mesmo hoje, Phoenix [no Arizona, EUA] é uma cidade que funciona inteiramente à base de ar-condicionado. É uma cidade dentro do deserto. E você pode imaginar o que pode acontecer em agosto de um ano em que haja um blackout elétrico? Não sobra ninguém ou sobra pouca gente. A gente tem um nível de vulnerabilidade muito grande em relação a isso.
Voltando ao artigo sobre envelhecimento prematuro por causa de ondas de calor... Tem sido colocada muito fortemente como uma evidência científica a ideia de que estamos envelhecendo mais rapidamente, por várias razões. As pessoas têm dificuldade de dormir à noite, por exemplo. O grande problema das ondas de calor são quando não há resfriamento da temperatura à noite. Há pessoas que têm a pressão um pouco alterada. E tem todo um outro conjunto de questões que são, por exemplo, os impactos da alteração do ciclo hidrológico: as grandes tempestades que mataram milhares de pessoas ao ano não contam como mortes causadas pelo calor, mas são causadas pelas alterações climáticas. Outras pessoas morreram no Paquistão, na Índia, mesmo no Rio Grande do Sul, por causa de grandes dilúvios. Aconteceu no norte de São Paulo, em Teresópolis [RJ], em Santa Catarina, em Pernambuco... Tudo isso diz respeito à questão das mudanças climáticas. O risco de vida é cada vez maior.
Seu último livro se dedica à denúncia do agronegócio e à defesa de uma agricultura agroecológica como parte do problema ambiental mais amplo. Por quê? Essa é uma dimensão da relação desse problema com a saúde? Por que eleger a questão da agricultura, desse modelo de produção de alimentos, como relevante no debate ambiental e sobre o clima?
O Brasil é o país biologicamente mais rico do mundo, portanto, é aquele que tem mais a perder
Não é só apenas relevante, é, com certeza, a mais relevante no caso do Brasil, por várias razões. O Brasil é o país biologicamente mais rico do mundo, portanto, é aquele que tem mais a perder. Nos 17 países megadiversos, o Brasil está lá em cima. É o primeiro em termos de espécies endêmicas. Então, se pegar a questão propriamente das mudanças climáticas, 75% aproximadamente das emissões brasileiras provêm das atividades do agronegócio, seja por desmatamento, degradação, incêndios, seja porque o Brasil tem o maior rebanho bovino do mundo. E o gado bovino, como é ruminante, emite metano.
O agronegócio é a grande causa do aquecimento no Brasil
Por volta de 75% das nossas emissões provêm da atividade do agronegócio. O agronegócio é a grande causa do aquecimento no Brasil. Porque ele desmata, degrada. E porque é o maior exportador de carne bovina do mundo, 20% das exportações de carne bovina do mundo vêm do Brasil. [O país] virou um grande fazendão, que tem uma atividade brutalmente destrutiva. Além disso, o Brasil é um dos países com a maior concentração de terra do planeta. O Brasil teve um nível de concentração de capital muito forte durante os últimos 25 anos, no âmbito do agronegócio. Não é mais agricultura, é um agronegócio, produtor de commodities, não é produtor de alimentos. E é também o setor mais socialmente atrasado, em que você encontra o maior número de pessoas sujeitas a trabalhos análogos à escravidão, as maiores violências contra os indígenas, contra os ribeirinhos, contra os povos da floresta, contra os pequenos agricultores. Quem é que se apoderou completamente do aparelho de Estado? É o agronegócio. Se você pegar o Congresso Nacional, dos 513 deputados federais, 324, bem mais que a metade, são da Frente Parlamentar da Agropecuária.
O [ministro da Economia Fernando] Haddad fez uma declaração pouco tempo atrás de que só em termos de renúncia fiscal, o governo brasileiro beneficiava o agronegócio em R$ 184 bilhões por ano. Dinheiro para ninguém pôr defeito. Eles não pagam imposto de exportação de agrotóxicos, não pagam imposto de exportação, não pagam imposto nenhum. E são um grupo ideologicamente muito coeso e fortemente vinculado ao capital internacional – estou falando das megacorporações agroquímicas, das quais o agronegócio brasileiro é uma pequena costela. Essa é a maneira através da qual o Brasil se inseriu na economia globalizada. E é profundamente destrutiva.
Então, se você olhar em qualquer direção, vai encontrar o agronegócio como o grande problema do Brasil: o problema social, o problema econômico, o problema dos solos, o problema da temperatura, o problema dos ciclos hidrológicos, o problema das florestas, o problema das sociedades não urbanas, etc. Fora a questão do adoecimento pelo agrotóxico, que é brutal. A [pesquisadora] Larissa Bombardi tem dois livros e vários artigos sobre isso, mostrando que os níveis de tolerância de concentração de princípio ativo em vários agrotóxicos estabelecidos pela Anvisa é, em alguns casos, 5 mil vezes maior do que os níveis permitidos na Europa. A Europa proíbe os agrotóxicos na própria Europa, mas os exporta para o Brasil e para a América do Sul de forma geral. É uma atividade completamente deletéria, destrutiva. Nós nem sabemos ainda qual é o nível de nocividade desses agrotóxicos. A gente sabe que é muito grande, mas não sabe ainda mensurar o tamanho da encrenca. Inclusive, uma das hipóteses que tem sido muito fortemente veiculada é a [de que a] diminuição da quantidade e da morfologia dos espermatozoides [tem relação com] a exposição a agrotóxicos. Isso tem acontecido não só no Brasil, em todos os lugares há uma diminuição muito grande do número e da morfologia, da qualidade, dos espermatozoides. Um em cada seis homens na França não tem condições de ter um filho, porque os espermatozoides estão abaixo do nível de reprodução. E o primeiro suspeito é o agrotóxico, como é também na questão do câncer. Você está vendo hoje acontecer a incidência de câncer em pessoas mais jovens, o que refuta aquela ideia que se tinha antigamente de que as pessoas têm mais câncer porque estão vivendo mais ou de que é o diagnóstico que está sendo mais fino. Mas não: pessoas com 40 anos estão tendo câncer. E o primeiro suspeito, mais uma vez, são os agrotóxicos. Não são apenas eles: tem também a questão dos plásticos, mas os agrotóxicos são um ingrediente fundamental.