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'É uma precarização da formação dos trabalhadores vinculada a educação à distância, via parcerias público-privadas'

O Ministério da Educação (MEC) divulgou recentemente dois documentos relacionados à oferta do itinerário de educação profissional previstos pela lei 13.415/17, da chamada Reforma do Ensino Médio. Um deles é a ‘Cartilha de Orientação às Redes Ofertantes de Educação Profissional e Tecnológica’. Segundo o MEC, o documento, em sua segunda edição, traz uma série de ferramentas e base de dados que de acordo com o ministério podem ser utilizadas por gestores para a definição da oferta de educação profissional alinhadas “a demanda dos diferentes setores econômicos”. O segundo documento é o ‘Itinerário da formação técnica: guia de implementação’, que como o próprio nome diz, procura orientar gestores de forma didática quanto às possibilidades de organização dos arranjos curriculares para oferta de cursos técnicos e de qualificação profissional no bojo da reforma. Segundo Lucas Pelissari, vice-coordenador do GT Trabalho e Educação da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (Anped) e professor do Instituto Federal do Paraná (IFPR), onde coordena o grupo de pesquisa ‘Estado, Políticas Públicas e Educação Profissional’, os dois documentos explicitam o “discurso tecnicista” que orienta as políticas voltadas para a educação profissional a partir da lei 13.415/17, que subordina, de forma acrítica, a formação profissional somente às demandas do chamado setor produtivo. Além disso, expõem a extrema fragmentação curricular possibilitada pela reforma para a educação profissional.
André Antunes - EPSJV/Fiocruz | 18/02/2022 12h33 - Atualizado em 01/07/2022 09h40

A ‘Cartilha de Orientação às Redes Ofertantes de Educação Profissional e Tecnológica’ divulgada pelo MEC faz uma vinculação bem clara entre a oferta de educação profissional e as necessidades do mercado de trabalho. Que avaliação faz dessa concepção e do documento, de forma geral?

A gente tem analisado a partir do grupo de pesquisa que eu coordeno e em contato com outros pesquisadores, que a reforma do ensino médio, ou o que a gente tem chamado de contrarreforma do ensino médio, ela produz implicações em uma série de outros campos das políticas públicas. Entre elas a entre elas a política de EPT. Há uma reforma específica da EPT brasileira. A contrarreforma geral de ensino médio e uma reforma da Educação Profissional e Tecnológica, elas têm especificidades cada uma delas, e uma implica na outra. Acho importante dizer. Isso que a gente está observando agora, essas movimentações, mudanças, esse conjunto de normativas novas e esses documentos sendo produzidos, elaborados pelo MEC, tudo isso tem especificidades na EPT, de forma a compor uma reforma específica, com mudanças bastante significativas na Educação Profissional e Tecnológica especificamente.

Tratando especificamente da cartilha que você perguntou, o que eu posso observar é que, primeiro, eu acho que é importante dizer que esse campo que vem fazendo esse conjunto de análises e produzindo críticas a esse processo, do qual eu faço parte, nós não somos absolutamente opostos aos estudos de demanda, a diagnóstico da economia local, à articulação desse conjunto de dados socioeconômicos com os desenhos adotados pelas instituições de EPT na sua oferta. O que ocorre, porém, é que essa cartilha acaba subordinando a oferta de EPT, os desenhos curriculares, as concepções pedagógicas, as propostas pedagógicas, às demandas do mercado de trabalho. Então você acaba fazendo um movimento de determinação econômica dos arranjos curriculares.

Fica bem explícito ali em alguns parágrafos, no discurso construído, que é absolutamente tecnicista, ele retoma lá elementos do velho tecnicismo da década de 1970 e de um novo tecnicismo, dessa era neoliberal. Então os arranjos curriculares devem estar subordinados, respondendo de maneira imediata às mudanças mais recentes, aos contornos, às características do mercado de trabalho. E isso tudo, para finalizar, é uma característica bastante evidente do Programa Novos Caminhos. Ele é uma política de governo, mais específica, diferente da contrarreforma do ensino médio, que é uma política de Estado, mais estrutural. O Programa Novos Caminhos tem essa característica de vincular organicamente a EPT à contrarreforma do ensino médio, ele veio em 2019 para isso. É a sinalização do governo Federal no sentido de que: ‘Bom, temos o quinto itinerário formativo da reforma do novo ensino médio, que é o itinerário técnico profissional, precisamos ofertar esse itinerário de alguma forma e incentivar que os estados ofertem. Faremos isso via Programa Novos Caminhos’. O Programa Novos Caminhos vai ser implementado, ele tem que ter um início, tem que ter um meio e tem que ter um fim e o início é esse, essa identificação das demandas. É um programa absolutamente sem financiamento, sem uma concepção mais robusta, mais consolidada. Essa é uma primeira característica do Programa Novos Caminhos, que acaba ficando evidente na cartilha. E uma segunda é esse tecnicismo, esse economicismo de vincular diretamente, subordinar a EPT às demandas econômicas do mercado.


Você pode dar exemplo desse discurso tecnicista? Algo te chamou atenção nesse sentido?

Uma primeira característica que achei bem interessante assim, é que no meio dessas informações a respeito do cenário econômico, socioeconômico, do mercado de trabalho e tal, nessa primeira parte do documento que são essas informações que em tese deveriam orientar a oferta, você não tem ali um quadro, por exemplo, tratando do desemprego, dos índices de desemprego no país ou de empregabilidade em determinadas áreas do conhecimento. Por exemplo, eu atuo em um campus do Instituto Federal que é em uma região litorânea e ela tem uma forte atividade portuária na economia. E a gente tem visto que o processo de terceirização, inclusive como resultado da Reforma Trabalhista, tem se intensificado de uns anos para cá na atividade portuária. Então, por exemplo, esse dado não existe no documento. Há um processo vertiginoso de terceirização, há empregos, mas talvez sejam mais precários que anteriormente. Esses dados estão ausentes no documento. O que o documento apresenta são ferramentas muito superficiais até, são portais na internet, são bancos de dados que a cartilha sinaliza para os gestores da EPT que acessem e a partir disso construam os seus desenhos curriculares ou seus arranjos. De uma forma muito pragmática, utilitarista, não se tem ali um detalhamento mesmo de como o gestor vai utilizar, vai acessar esses portais primeiro e vai utilizar esses dados para produzir um vínculo com seus arranjos curriculares, ou com a sua oferta de EPT. Não fica explícito como esse vínculo, essa relação é produzida. Então a essência do documento é econômica, do mercado de trabalho, quase que uma propaganda de portais e ferramentas que existem disponíveis na internet a respeito do mercado de trabalho. Mas não há um detalhamento, uma análise crítica desses dados. Então o exemplo que eu dei aqui na região em que eu atuo. Para nós interessa saber como que se dão essas mudanças mais recentes no mercado de trabalho portuário para que a gente possa optar por dar continuidade a oferta, por exemplo, do curso de mecânica, que a gente oferta aqui no campus, tanto integrado quanto tecnólogo, ou não. Porque há um debate, e isso não é só no nosso campus, a respeito do que fazer com fenômenos mais recentes que a EPT tem experimentado nos últimos anos, como efeito da pandemia também, mas não só. Esses efeitos vêm também das próprias mudanças da economia, do mercado de trabalho, que é um aumento no número de evasão, que é de um aumento no número de retenções, principalmente no ensino médio, uma dificuldade de os estudantes acompanharem esses cursos. E a cartilha absolutamente não nos ajuda com isso.

Quando você busca, por exemplo, ‘politecnia’, ‘educação politécnica’, ou ‘formação humana integral’ muito presentes em toda a política de EPT construída a partir do início dos anos 2000, no ensino médio integrado, etc., esses termos estão ausentes


E quanto ao segundo documento, o ‘Itinerário da formação técnica: guia de implementação’? Que papel cumpre nesse processo e qual a sua leitura sobre o ele?

No guia fica mais explícita a subordinação da oferta da EPT aos princípios da contrarreforma do ensino médio. Por exemplo, eu me dei ao trabalho aqui de buscar termos na cartilha como ‘empreendedorismo’, ‘habilidades e competências’, ‘inovação’, ‘projeto de vida’, que são termos que estão muito presentes nesse discurso, nessa narrativa do chamado Novo Ensino Médio, da contrarreforma. E eu encontrei, por exemplo, para o termo ‘empreendedorismo’ ou correlatos, como ‘empreender’ e etc., eu encontrei 23 menções, e para os termos ‘habilidades e competências’ encontrei 11 menções. Quando você busca, por exemplo, ‘politecnia’, ‘educação politécnica’, ou ‘formação humana integral’ muito presentes em toda a política de EPT construída a partir do início dos anos 2000, no ensino médio integrado, etc., esses termos estão ausentes. ‘Trabalho como princípio educativo’ também, não existe, não há nenhuma menção a eles. Não é nem que eles são mobilizados ali de maneira híbrida, como a própria reforma faz em alguns instrumentos normativos. Eles não são sequer mencionados.

Agora, há de se reconhecer que ele é bastante didático. Os reformadores estão sendo bastante eficientes naquilo a que eles estão se propondo. Até porque o volume de recursos sendo colocado na implementação da reforma do ensino médio é gigantesco, a propaganda oficial do governo é realmente bem elaborada. Fica bastante evidente que o objetivo desse guia, lançado junto com a cartilha, é o de orientar gestores nas redes estaduais de educação sobretudo. E principalmente aqueles gestores que não têm uma tradição de trabalho com EPT nas suas escolas, porque há muitos casos Brasil afora de escolas de ensino médio, escolas estaduais, que passam do dia para a noite a ter que ofertar alguma coisa de EPT, algum curso rso de qualificação profissional para responder a uma demanda colocada pelas secretarias estaduais de educação. Então esses gestores que não têm uma tradição de trabalho com EPT acabam tendo nesse guia um suporte bastante didático do que fazer. Então se na escola X te falta infraestrutura, oferte um curso de administração com tanto de carga horária, tem um conjunto X de professores que podem atuar, oferte esse curso dessa forma com uma carga horária tal, que seja adequada a esse, por exemplo, número reduzido de professores em uma determinada área. E existem as parcerias, convênios, que agora isso está na moda, com a contrarreforma isso ficou muito evidente, os acordos que são permitidos pela contrarreforma. Aqui no estado do Paraná tristemente a gente vê esse acordo da secretaria estadual com a Unicesumar que é um grande grupo privado de educação que vai ofertar o itinerário informativo. Então o guia ele é bem objetivo. Então nesse caso em que há parcerias com o setor privado, é possível construir o arranjo dessa forma. E aí ele apresenta o currículo, inclusive, com peças de Lego. Achei bem interessante essa questão das pecinhas de Lego ali porque é uma questão estética, mas acaba revelando uma lógica bastante esquemática, utilitarista assim do que é um currículo.


Fica bem explícita a questão da fragmentação do currículo na educação profissional trazida pela reforma do ensino médio, que é uma das principais críticas a esse processo...

Exatamente. Nessa parceria da Secretaria de Educação aqui do Paraná com a Unicesumar você vai ter a possibilidade de um mesmo tutor ofertar componentes curriculares, que não são disciplinas de um curso técnico, são componentes ou cursos de curta duração, que poderão receber até 2 mil alunos simultaneamente, por ser à distância. E não são professores, são tutores indicados pela Unicesumar, que são bolsistas, na verdade, uma bolsa aí de R$ 600 mensais. Então veja, você está alinhando a incorporação da qualificação profissional ao ensino médio, como composição de carga horária do ensino médio. O que é também, um retrocesso, isso não era permitido por lei. Porque tudo bem a articulação entre a Base Nacional Comum Curricular e os conhecimentos técnicos acontecer, mas o que a gente sempre defendeu é que ela deveria acontecer por meio de um curso técnico, de um curso de longa duração, com uma carga horária adequada, para que esse jovem trabalhador, esse estudante trabalhador que é o sujeito desse processo educacional possa se apropriar com mais robustez desses processos, de forma científica, para que isso seja um direito. Não negando a possibilidade de cursos de qualificação profissional para complementar as práticas, as experiências, formação desses trabalhadores, esses cursos cumprem um papel, devem continuar existindo. Aqui se trata de uma incorporação desses cursos de curta duração, de 40, 50 horas, ao currículo do ensino médio. É uma precarização, um aligeiramento da formação desses trabalhadores vinculada a educação à distância, via parcerias público-privadas. Ou seja, a fragmentação, a desigualdade educacional só tende a aumentar.


O Guia lista várias atividades como ‘componentes complementares’ que podem ir se somando para compor a carga horária do itinerário de educação profissional, inclusive práticas de aprendizagem profissional, estágios e até mesmo atividades como participação em eventos e de trabalho voluntário. Essa flexibilização e fragmentação é uma especificidade do itinerário de educação profissional na reforma do ensino médio?

É claro que nos demais itinerários é possível fragmentar também, mas isso é muito mais evidente sem dúvida nenhuma no quinto itinerário, com certeza. Tudo é aprendizagem para essa reforma, qualquer experiência prática, mesmo no mercado de trabalho ou em outras experiências que aquele jovem estudante trabalhador possa ter tido na vida com experiências informais, tudo é aprendizagem. É claro que em última instância o ato de viver é um ato de aprendizagem, sem dúvida nenhuma, mas a maneira como essas aprendizagens vão ser incorporadas ao currículo escolar é algo que precisa ter intencionalidade pedagógica, precisa ter um lugar para essa aprendizagem. Então há um esvaziamento no conteúdo do que significa aprendizagem, há um esvaziamento, tanto em um quanto em outro documento e na reforma como um todo.

Você tem ali no guia, por exemplo, alguns daqueles arranjos que fazem componentes complementares totalizando cem horas, mas essas próprias cem horas elas podem ser cinco horas em uma experiência específica, três horas em uma outra experiência laboral específica. As escolas não têm nem estrutura para fazer esse mapeamento tão detalhado, esmiuçado, não há escola no mundo que faça isso. Obviamente que vai acabar sendo um processo atropelado. E a questão é que não se trata de uma complementação de um curso de qualificação profissional, de 120 horas, 140 horas. São experiências de cinco, de dez horas do trabalhador no seu dia a dia profissional que podem ser incorporadas ao currículo de educação básica. Estamos falando de um direito de todos os jovens até 17 anos de idade.


Uma das formas de oferta de cursos técnicos trazidas pelo Guia é a chamada concomitância intercomplementar, que foi introduzida pelas Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Profissional e Tecnológica, de janeiro de 2021, que em alguma medida parece servir de suporte para a construção desse tipo de parceria com o setor privado na educação profissional. É a sua leitura?

Quando isso apareceu lá nas diretrizes curriculares nacionais, todo mundo ficou meio sem entender, porque até então as formas de oferta dos cursos técnicos, da educação profissional de nível médio, eram a concomitante, a integrada e a subsequente. Nessas diretrizes à revelia da lei, porque as diretrizes não podem estar acima de uma lei, aparece a tal forma de oferta em concomitância intercomplementar. O que seria isso? na forma você constrói concomitância, mas no conteúdo você integra. É algo que é uma aberração para quem estuda minimamente a política de EPT. Não tem como você ofertar concomitância e integração ao mesmo tempo, separar forma de conteúdo. Isso vem no guia. Ele, digamos,  traduz um pouco do que as diretrizes quiseram dizer lá atrás com essa tal concomitância intercomplementar. Então ele aponta, ‘bom, então a escola tem dificuldade de construir currículos, trajetórias integradas, tudo bem, não tem problema, chame isso de integrado, mas construa uma parceria com alguma outra instituição’. Essa é uma característica bem evidente.

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