Qual a sua avaliação sobre a Proposta de Emenda Constitucional 287, do governo Temer, que institui uma nova reforma da previdência?
A proposta do presidente Temer é um pesadelo porque aumenta a idade para 65 anos e transforma isso numa idade única para todos os brasileiros, como se todos vivessem nas mesmas condições. E não é assim. Trabalhador urbano tem uma condição, o trabalhador rural tem uma condição muito mais precária; a posição dos homens no mercado de trabalho é completamente diferente da das mulheres; os servidores públicos e os trabalhadores do setor privado são regidos por regras de contribuição e benefício completamente diferentes. Então, essa uniformização é típica de um governo incompetente para avaliar a sociedade que ele mesmo está governando. A sociedade é completamente heterogênea e ele quer estabelecer uma idade única para o país inteiro. Para você ter uma ideia, um homem que vive no meio rural em Alagoas tem uma expectativa de vida de 66 anos. Se a aposentadoria for possível só aos 65 anos, ele provavelmente não vai ter como acessá-la. Os que conseguirem sobreviver até os 65 anos só usufruirão do benefício por um ano. E, assim mesmo, de apenas 76% do valor dessa aposentadoria, porque a regra proposta é que, para usufruir de 100% do valor da aposentadoria, você tem que contribuir durante 25 anos e depois mais 24, o que dá um total de 49 anos de contribuição. Essa proposta foi feita para não ser aceita.
Esse escalonamento proposto pelo governo, que reduz o valor do benefício para quem se aposenta com a idade mínima de 65 anos, é uma reedição do fator previdenciário instituído no governo Fernando Henrique Cardoso?
É um fator previdenciário piorado. Porque o fator permitia que você se aposentasse em qualquer idade desde que os homens tivessem 35 anos de contribuição e as mulheres, 30. Se a nova regra for aprovada, ninguém pode se aposentar com menos de 65 anos. A questão que se faz é: será que alguém conseguirá ficar no mercado de trabalho até os 65 anos? Quantos conseguirão isso? Quantos conseguirão contribuir continuamente por 25 ou 49 anos? O trabalhador precisará nunca ter ficado desempregado durante 49 anos para poder ter aposentadoria pelo teto. Numa depressão econômica como a que estamos vivendo, essas regras são inexequíveis para o trabalhador. Elas são feitas para o trabalhador não receber a aposentadoria, só contribuir.
Acaba a aposentadoria no Brasil?
É... É o fim da aposentadoria pública. Por outro lado, é um grande estímulo para que as pessoas busquem as previdências privadas nos bancos. Foi a reforma da previdência que o sistema financeiro pediu. Não é à toa que a agenda do secretário de previdência social do governo [Marcelo Caetano] no mês que antecedeu o envio da proposta ao Congresso foi de reuniões com os bancos. Quase todos os dias havia reunião com bancos estrangeiros e nacionais, numa denúncia de que houve um grande acordo com o sistema financeiro para fazer essa reforma. Essa reforma foi feita de costas para o trabalhador, de frente para os interesses do sistema financeiro.
Se mudarem as regras, o que acontece com os valores que os trabalhadores já pagaram, seja no regime próprio do servidor público, seja no regime geral da previdência social? O trabalhador vai perder o que já contribuiu?
Essa reforma é uma quebra de contrato. Porque você começou a contribuir sobre regras anteriores, com uma determinada expectativa de aposentadoria. Aí o governo chega e quebra o contrato. Ninguém sabe o que vai acontecer depois porque nada está explícito. Muitos advogados e várias associações estão entrando com ações de inconstitucionalidade sobre essa PEC. Muito provavelmente vai haver um confronto muito grande na sociedade. Por exemplo, as pensões têm como piso básico o salário mínimo, mas, se aprovada a reforma, elas poderão ser inferiores a esse valor. Segundo a proposta, as pensões vão corresponder a 50% da aposentadoria do falecido acrescido de 1% por dependente. Então, elas podem ser de 60% do valor do salário mínimo, o que significa uma violação da Constituição Federal. Se for aprovada, ela se torna parte da Constituição, mas até lá o governo vai ter que enfrentar as ações de inconstitucionalidade.
Esse governo tem hoje um desgaste político muito importante, que pode fazer com que essa PEC acabe até na destituição do presidente. Eu imagino que vá acontecer algo semelhante ao que aconteceu, por exemplo, na Venezuela: movimentos populares nas ruas para derrubar o presidente, solicitando as eleições diretas. Porque essa PEC vai acirrar, vai esgarçar a luta política contra um governo que tem muita fragilidade, não só por acusações de corrupção como pela própria baixa popularidade.
Lemos nos jornais todos os dias que existe um déficit da previdência. Como outros pesquisadores, você mostrou, na sua tese de doutorado, que isso não é verdade, que existe inclusive um superávit. Como se chega a essa conta que você denuncia que está errada?
O governo faz um cálculo muito simplificado, muito simplório, que não está correto. Ele pega uma das fontes de receita da Previdência, que é a receita de Contribuição Previdenciária recolhida pelos trabalhadores, empregadores, autônomos e trabalhadores domésticos. Essa é, como disse, apenas uma das receitas. Dessa fonte, diminuem o total dos gastos com todos os benefícios: pensões, aposentadorias, auxílio-doença, auxílio-maternidade, auxílio-acidente, salário família e todos os demais benefícios previdenciários. Essa conta dá em déficit. Mas é um cálculo que não respeita os dispositivos da Constituição Federal de 1988, artigos 194 e 195.
Mas, segundo a Associação Nacional dos Auditores da Receita Federal (Anfip), mesmo nessa conta simples, que não considera as contribuições da seguridade social, quando se retiram os gastos assistenciais, que não são previdenciários, o resultado é superávit...
Sim. Se você retirar do cálculo do fluxo de caixa da Previdência os benefícios assistenciais da LOAS [Lei Orgânica da Assistência Social], que são os benefícios assistenciais para idosos pobres e deficientes físicos, realmente não dá déficit. Mas a grande questão é que a gente não deve isolar a Previdência do grande sistema de proteção social que é a Seguridade Social. Não faz o menor sentido, a ideia que está na Constituição Federal não é essa. A ideia é nós termos um sistema de proteção que protege as pessoas na velhice, na adolescência, na infância. O debate não é apenas sobre pobreza, e muito menos sobre pobreza na velhice, entre idosos. Nós estamos discutindo uma forma de proteção social universal, que compense o risco da ausência de renda em qualquer circunstância, principalmente aquela que deriva da exclusão do mercado de trabalho, porque o mercado de trabalho no capitalismo é excludente, não tem jeito. Há um problema estrutural: nunca haverá um número de vagas equivalente ao número de pessoas que reivindicam emprego. E isso cria problemas sociais gravíssimos. O Estado entra para amenizar. O sistema de proteção social foi criado para dar mecanismos compensatórios a tudo isso. Não faz sentido você falar do déficit da Previdência como um fator isolado da conjuntura econômica e social, sem todas as conexões e inter-relações com o sistema produtivo nacional. Começa por aí: Seguridade Social é um princípio filosófico. Não é para ser tratado como uma conta de somar e diminuir dos burocratas de planilhas Excel. Por isso eu não concordo em ficar falando sobre tirar essa ou aquela despesa, colocar lá, não sei o quê, para ter superávit. Pode ser que esse discurso estéril faça muito sentido para a classe dominante, principalmente para o sistema bancário, mas não faz sentido nenhum num contexto social e político de esgarçamento das relações entre governo e trabalhadores espremidos pelo desemprego e pela pobreza, principalmente numa hora de gravíssima recessão. Nós estamos em baixo crescimento neste país desde 2011. A recessão de 2014/2016 é muito profunda, já virou depressão. Não faz sentido o governo querer fazer uma reforma da previdência que só servirá para economizar migalha, porque vão ser migalhas, mas trará um dano enorme para a população de baixa renda.
Mas o argumento é de que essa é a única maneira de compensar um suposto déficit de R$ 180 bilhões em 2016...
Não, claro que não é. Em primeiro lugar, o déficit não existe. O déficit do nosso sistema de proteção social ainda não existe. No ano de 2014, o superávit foi de R$ 35 bilhões. E no ano de 2015 foi de R$ 16 bilhões. Esse superávit está diminuindo porque a recessão fez cair as receitas – as receitas da seguridade social dependem do nível de emprego, da massa de salários, do trabalho formal... Quando o desemprego se eleva, os salários caem e o trabalho informal aumenta, e as receitas da previdência caem, porque a maior parte delas vem da tributação sobre a folha de salários. Em 2015 houve queda de 5% nos rendimentos reais do trabalhador brasileiro e o número de desempregados cresceu 38% entre 2014 e 2015, ou seja, passou para 10 milhões de pessoas desempregadas, segundo o IBGE. Recentemente, pelos números apurados pela PNAD Contínua, no 3º trimestre de 2016 houve um contingente ainda maior de desempregados, de 12 milhões de pessoas. Há um aumento que é constante e significativo. Uma reforma da Previdência que objetive cortar o valor dos benefícios e elevar a idade para aposentadoria visando reduzir gastos não resolve o problema fundamental do suposto déficit, que é estancar a queda da receita da Previdência. O gasto cai um pouco mas a receita cai muito mais.
Você está desmistificando vários discursos comuns sobre a previdência. Primeiro, diz que não há déficit. E agora diz que o superávit está diminuindo mas que isso tem a ver com a recessão econômica e não com a pressão demográfica de uma população que envelheceu, como se tem anunciado nos jornais...
Exatamente, tem muito mais a ver com a recessão e pouco a ver com a idade. Eu tenho uma posição radicalmente oposta a esse alarmismo das projeções demográficas. Isso é um discurso muito apropriado aos interesses do mercado financeiro. Existe um envelhecimento da população? Existe. Mas eu não acho que isso seja um problema. Muito pelo contrário. Para uma corrente importante de economistas não convencionais, a falha sistêmica que existe no capitalismo é exatamente a insuficiência de demanda para absorver o total da produção gerada. Toda a luta é contra a recessão, ou seja, é contra a escassez de consumo por falta de renda. Então, quando se diz que no futuro nossa sociedade terá muitos idosos que precisam receber uma renda de aposentadoria para sobreviver, para mim a demanda está contratada. Eu não preciso mais me preocupar com escassez de demanda. Esse cenário é totalmente válido para quem raciocina dentro de uma estrutura de pensamento econômico em que a demanda agregada – por medicamento, equipamentos hospitalares, alimentos, serviços de acompanhantes— é que comandará o crescimento econômico. O fato é que o Estado, ao gastar no atendimento das necessidades dos idosos, será o grande dinamizador da sociedade capitalista do futuro.
Aí você vai me dizer: mas você está pensando que existe esse Estado solidário, que vai atender a população que é pobre, que é fragilizada; você está supondo que está num Estado democrático em que os dirigentes foram eleitos popularmente, que são sensíveis às necessidades da população. É verdade, esse seria um Estado que viabilizaria a proteção social. Mas, se, ao contrário, estivermos num governo liberal-conservador, que só pensa em ajuste fiscal como uma cortina para a privatização, aí a coisa muda. Há um descompromisso explícito com a grande maioria da população e aí passamos a discutir Reforma da Previdência, reforma do sistema de saúde, reforma da legislação trabalhista, todos os mecanismos que têm claramente objetivos privatizantes e cerceadores dos direitos sociais mais elementares. Porque se o Estado começar a atender as necessidades dos idosos, ele estará excluindo o mercado desse atendimento. Quando o governo proporciona previdência e saúde em patamares dignos, está evitando que as pessoas tenham que fazer um plano de saúde ou um plano de previdência num banco, ou que tenham que pagar escolas privadas para seus filhos. Porque elas serão perfeitamente atendidas por um Estado cujo objetivo é dar dignidade à população. Então, essa é a disputa: ou teremos, no futuro, uma sociedade menos desigual, em que o Estado torna-se responsável pelo atendimento das necessidades básicas de todos os cidadãos, independentemente de suas rendas, ou teremos os mercados e seus preços, e só quem terá dinheiro poderá ser atendido em suas necessidades. Os que não tiverem renda amargarão a exclusão, a pobreza, a morte social.
O que está acontecendo nos últimos cinco anos? Um processo acelerado de privatização. Quando se abre uma avenida de oportunidades para o mercado privado, conseguidas à custa de muito lobby no Congresso como hoje já se sabe, o governo faz uma avalanche de privatizações. Então começa um discurso demolidor, junto com essa política macroeconômica ultraconservadora e mega recessiva, a divulgar que o sistema de saúde (SUS) está quebrado, que a previdência pública está quebrada, que não há emprego por causa da rigidez da legislação trabalhista... Por quê? Porque as pessoas vão se sentir inseguras sobre a capacidade do sistema público e vão correr para o banco para contratar um plano de saúde, junto com um fundo de previdência complementar, vão fazer seguros de tudo quanto é jeito, porque elas acham que a qualquer momento não vão poder mais ser atendidas quando tiverem fragilidade física ou na velhice. O governo empurrou, com esse discurso, a população para o colo dos bancos. Foi uma violenta financeirização dos serviços públicos o que aconteceu no nosso país nos últimos cinco anos. No entanto, como já não havia mais grandes empresas públicas para privatizar, partiu-se para a privatização dos serviços públicos, principalmente na área de saúde, educação e previdência. Começou a concessão de uma série de serviços financeiros, na forma de crédito – crédito consignado, microcrédito, crédito para as pessoas que recebem o Bolsa Família –, que são formas de acessar o crédito atreladas ao recebimento do benefício social ou de uma renda concedida pelo governo. Os benefícios sociais passaram a ser garantia para acessar empréstimos concedidos por bancos públicos ou privados. Então, é um processo amplo de financeirização. Você não pode entender essa proposta de Reforma da Previdência como uma questão de fluxo de caixa da Previdência. Seria ridiculamente ingênuo achar que o problema é contábil e atuarial. É muito mais abrangente do que isso, é um amplo acordo entre Estado e mercado financeiro. E isso é que tem que ser exposto. Nós não estamos discutindo ajuste fiscal, o ajuste fiscal é um pretexto para um amplo processo de financeirização e privatização que está acontecendo nos serviços públicos. Para os bancos não interessam só os juros da dívida pública, que já são uma coisa absurdamente elevada — nós pagamos R$ 501 bilhões em 2015 só em juros e gastamos R$ 380 bilhões com previdência, sendo que R$ 501 bilhões atendem a cerca de 75 mil pessoas enquanto que os R$ 380 bilhões atendem a mais de 27 milhões de beneficiários da previdência. Então, trata-se de uma enorme concentração de renda orquestrada pelo Estado para favorecer o sistema financeiro.
O orçamento da previdência é muito menor do que o montante destinado aos juros da dívida, mas, ainda assim, o orçamento da seguridade social é a maior parcela que sobra. É por isso que a Reforma da Previdência é tratada como tão prioritária?
O gasto com a Previdência social corresponde a 7% do PIB. A receita da seguridade social em 2015 foi de R$ 658 bilhões. É muito dinheiro. Como não pegar uma parte disso para usar em outras despesas do orçamento? No governo Dilma foi feito um amplo processo de desoneração das receitas da previdência. Desoneração tributária é o seguinte: você abre mão das receitas que poderia arrecadar para aumento da margem de lucro das empresas desses setores. Em 2015, o total das desonerações foi R$ 282 bilhões, o que significa 5% do PIB. Desse total, R$ 157 bilhões foram renúncias de receitas da seguridade social para a União – quase 3% do PIB. Então repare: o governo diz que a previdência teve um déficit de R$ 85 bilhões em 2015, mas renunciou a R$ 157,6 bilhões de receitas da Previdência nesse mesmo ano? Como abrir mão de receitas de um sistema que o governo alardeia que tem déficit? E depois quer que a sociedade aceite uma reforma da previdência que eleva a idade para a aposentadoria e diminui o valor dos benefícios? Isso é um suicídio político! As pessoas não vão aceitar, se elas tiverem acesso a essas informações, não podem aceitar isso. Porque o governo está abrindo mão de receitas que estão patrocinando empresas privadas à custa do sacrifício da renda da grande maioria da população. Não faz o menor sentido, ou melhor, só faz sentido se for para atender às necessidades de uma elite já muito favorecida pelas políticas públicas. As pessoas precisam se perguntar a quem serve essa reforma.
Você disse que essa reforma vai incentivar a busca por previdência complementar. A previdência privada oferece as mesmas garantias que a previdência pública?
Não! Nada pode ser comparado à proteção que a previdência pública pode proporcionar. Não há segurança num fundo de previdência privada. Por quê? Porque os recursos que saem da poupança do trabalhador e são depositados nos fundos de aposentadoria complementar dependem de como o gestor do fundo, que são os bancos, vai aplicar esses recursos. E os bancos têm uma atitude muito alavancada no mercado, diversificam bastante suas carteiras, aplicam em ações, em títulos públicos, em vários papeis nacionais e do exterior também. E a gente sabe que há uma alta vulnerabilidade no retorno desses fundos. Depende do dinamismo da economia mundial, do comportamento da economia do nosso país, da inflação, da taxa de cambio, da taxa de juros, da política macroeconômica que o governo está instituindo... E há períodos de crises incontornáveis, em que esses recursos desaparecem facilmente da conta das pessoas por mais competentes e precavidos que os gestores desses fundos sejam. Veja o que ocorreu nos EUA e Europa a partir de 2007, quando começou a crise mundial. Os fundos de previdência foram à lona. O idoso que aposta num fundo de previdência privada não tem certeza nenhuma de o quanto ele vai receber no futuro. O grau de incerteza é elevado.
É investimento financeiro em vez de previdência, então?
É claro. Investimento de um fundo com retorno baixíssimo, e custo de administração muito alto. Eu prefiro dizer, a quem me pergunta, para as pessoas aplicarem em coisas seguras e que elas mesmas possam fiscalizar ou administrar. E nunca deixar de ter a previdência pública como o lastro sólido para a sua sobrevivência. Porque o Estado não quebra. O Estado é emissor de moeda. O Estado só quebra se tiver dívida externa, o que não é o caso do nosso país neste início de século. Nossa dívida pública externa é baixíssima. Então nós temos um Estado que, apesar de toda a crise, tem reservas em dólar no valor de US$ 365 bilhões e recursos na conta única do Tesouro Nacional de R$ 917 bilhões, estacionados no Banco Central. São dados de novembro de 2016, no auge da crise. Nunca houve tanto recurso parado, empossado! Em 2014, antes de a crise se agravar, a receita da seguridade social foi de R$ 658,4 bilhões. Então, nós tínhamos o suficiente para cobrir todo o gasto com o SUS, com todo o sistema de assistência social e toda a previdência. E tivemos de superávit mais R$ 35 bilhões naquele ano, que poderiam ter sido dedicados à saúde. Não foi assim por uma decisão política, não por falta de recursos. Então os brasileiros têm que fazer uma aposta na saúde pública, mais bem gerida, com mais investimentos, com o uso desses recursos excedentes sendo dirigidos para o SUS, ao invés de serem guiados para pagar juros da dívida pública e outras despesas do orçamento fiscal que pouco têm a ver com as necessidades coletivas, e parar de ficar apoiando esse discurso do governo de que nós estamos quebrados por falta de recursos. Não, muito longe disso. O grande ponto é: a despesa mais elevada desse país é com os juros. É isso que tem que ser revisto. A grande disputa se dá dentro do orçamento, entre gasto financeiro e gasto social, entre recursos empossados no Banco Central e escassez para os mais pobres. E essa disputa é dos trabalhadores contra a financeirização.
Um dos pontos principais da proposta de Reforma da Previdência é estabelecer idade mínima. E, como argumento, fala-se da comparação com outros países, citando principalmente os que compõem a OCDE [Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico]. O brasileiro se aposenta cedo demais?
Eu não concordo em fazer comparações do Brasil com a Europa. Metodologicamente, isso não é adequado. Você está comparando realidades muito diferentes. Quando você vai comparar o sistema de proteção social de um país subdesenvolvido com o de um país desenvolvido, as bases comparativas são tão heterogêneas que tirar conclusões sobre isso para mim é um equívoco. Então, pense comigo: na Europa, o mercado de trabalho é completamente diferente do brasileiro. Lá, as assimetrias entre os salários são menores, o patamar de informalidade não tem nem como comparar, o trabalho informal lá – a não ser agora, com os imigrantes -, é pouco expressivo. O trabalhador do meio rural não guarda grande distância em termos de renda e bem-estar com relação a um trabalhador urbano. Da mesma forma, a distância de salários entre mulheres e homens, embora exista, também não é o absurdo que presenciamos aqui. E outra coisa extremamente importante: o Estado está muito presente. Naqueles países há educação pública em todos os níveis, inclusive no superior, tem uma série de benefícios que o Estado proporciona para além da aposentadoria: educação, saúde, creches dignas, que formam o grande sistema de proteção social deles. O que acontece conosco? O nosso mercado de trabalho é extremamente assimétrico, socialmente excludente, nós temos mais de 35% da força de trabalho no setor informal, salários muito baixos, alta rotatividade, nossos benefícios sociais também são baixos porque o piso desses benefícios é o piso do mercado de trabalho. Nós temos uma população gigantesca carente de serviços públicos de saúde, educação e infraestrutura, principalmente na área rural. Nós investimos um volume de recursos infinitamente menor do que o deles [da OCDE] para elevar a qualidade dos equipamentos sociais. Nossa renda per capita, por conta de tudo isso, é extremamente mais reduzida que a da Europa. Então, quando vem o momento de se aposentar, exigem-se de nós padrões semelhantes aos europeus... Como se nossa realidade tivesse alguma semelhança com a deles... No Brasil, o Estado tem que fazer da aposentadoria um mecanismo compensatório à exclusão e às disparidades sociais no mercado de trabalho. Por isso é que nós temos um gasto relativamente elevado quando comparado com a América Latina, e também porque nossa cobertura é significativa – 82% dos idosos brasileiro estão protegidos pela Previdência pública. Não dá para comparar Brasil com Europa. Eu acho inclusive de má fé fazer isso.
Mas a aposentadoria precoce é um problema no Brasil?
Costumam nos acusar de que temos aposentadorias precoces, com baixa idade. Mas por que dizem isso? Em primeiro lugar, a idade para se aposentar no Brasil é semelhante à da Europa: 65 anos para homens e 60 para mulheres. As aposentadorias com idade inferior a esses limites são aposentadorias por tempo de contribuição, isto é, aposentam-se os homens com 35 anos de contribuição e as mulheres com 30 anos. Mas, sobre esse tipo de aposentadoria incide o fator previdenciário, que é redutor do valor do benefício e a redução é significativa. A aposentadoria só será integral se os homens fizerem 95 pontos e as mulheres 85 pontos com a soma de tempo de contribuição mais a idade. O problema é que grande parte dessas pessoas, quando atingem uma idade superior a 50 anos, passam a conviver com a defasagem tecnológica. Muitos deles não se capacitaram para enfrentar o avanço tecnológico e intelectual dos novos tempos. Vai necessariamente haver perda de espaço no mercado de trabalho, sendo substituído por um trabalhador mais jovem e atualizado. Numa situação de insegurança como essa, o trabalhador opta pela aposentadoria para receber uma renda, ainda que menor, e não ficar desempregado. Ele só faz isso por ser empurrado para essa situação, que para ele significa perda total de renda. Se puder ficar no mercado de trabalho, ele vai ficar, não vai desejar ganhar menos. Nos casos em que o trabalhador se aposenta e consegue continuar trabalhando, ele o faz porque a renda de aposentadoria que recebe é absolutamente insuficiente e necessita complementar. Mas continuará a recolher para o INSS. Então, tem mais uma coisa importante aí: quando essas pessoas se aposentam cedo, recebem uma renda baixa, mas conseguem voltar ao mercado de trabalho, elas não dão nenhum prejuízo ao Tesouro Nacional, porque passam novamente a contribuir para o INSS. É o melhor “cliente” do INSS: aquele que se aposenta cedo e volta a trabalhar porque ele volta a contribuir e isso, claro, aumenta as receitas do sistema sem implicar mais despesa.
Outra coisa importante: 57 milhões de pessoas no país têm doenças crônicas, mais da metade dessas pessoas são do sexo feminino. A partir dos 40 anos, as mulheres são acometidas por doenças crônicas que inviabilizam o trabalho quando elas ficam mais velhas. É claro que a tendência é essa pessoa perder o posto de trabalho para alguém mais jovem e saudável. Então, essas histórias todas precisam ser contadas. Nós temos que desmistificar essa história da idade mínima e evitar comparações com países que têm realidades completamente superiores às nossas.
Você está dizendo que garantir o direito à aposentadoria, na verdade, é bom para a economia?
Exatamente. É excelente para a economia porque quanto mais o Estado gasta com aposentadorias, mais a economia se dinamiza. Eu não vejo problema com aumento de gasto público para atender às necessidades dos menos favorecidos e dos fragilizados pela idade, doença ou desemprego. Eu sei que esse gasto vai provocar uma receita, e essa receita circulará na economia resultando numa arrecadação tributária maior do que o desembolso que foi feito pelo governo. Isso está provado para o caso da economia brasileira. Nós somos um laboratório perfeito para essa tese, porque entre 2003 e 2010 foi exatamente isso que aconteceu: o governo ampliou anualmente os gastos com benefícios sociais ao corrigir o salário mínimo acima da inflação e a economia nunca cresceu tanto.
Esse cálculo errado que aponta um déficit na previdência é feito desde quando? Existe conflito legal nessa interpretação?
Sempre fizeram esse tipo de cálculo incorreto, desde que a Constituição foi promulgada. Sempre houve uma pressão por Reforma da Previdência. Esse cálculo é feito inclusive pelo ministério da previdência, hoje extinto. Ele foi o grande divulgador. Se o ministério da previdência não fizesse esse cálculo, o William Bonner não falaria isso no Jornal Nacional e a imprensa não divulgava esse número incorreto. Agora, ele é legal? Não é. A Constituição diz o oposto disso. Ele é um cálculo inconstitucional, mas é viabilizado porque o governo alimenta essa ideia que favorece os bancos, através dos meios de comunicação. Os artigos que tratam disso são 194 e 195 da Constituição federal. Eu não faço esse cálculo porque eu desejo chegar a um superávit. É assim que está posto na Constituição.
Mas não há nenhuma iniciativa de interromper isso no âmbito legal?
Não, não temos. Porque isso é uma briga entre os que defendem a seguridade social de um lado e os que querem a privatização do outro. O discurso demográfico de envelhecimento populacional é um discurso do mercado financeiro. Eles pegaram essas estatísticas e se agarraram nelas para fazer essa visão alarmista do envelhecimento, para dizer que nós vamos ter que fazer essa reforma porque mais tarde o sistema vai entrar numa catástrofe fiscal. Penso que não vai acontecer nada disso. Quanto mais o Estado pagar benefícios, gera-se um circuito virtuoso: mais haverá criação de renda e aumento de arrecadação de tributos para cobrir esses gastos. Agora, tem uma variável que os críticos da previdência pública nunca mencionam, que é a produtividade. Quando se analisam as planilhas que são feitas pelo ministério da previdência, lá tem várias variáveis que são projetadas para o futuro: tem a massa salarial, a massa de benefícios, tanto os previdenciários como os demais, a inflação, a taxa de crescimento do PIB... Tudo projetado para o futuro. Mas, não tem a produtividade. Esse é o centro do meu argumento. Se tivesse o cálculo da produtividade, ficaria claro que cada trabalhador no futuro, embora existindo em menor número, vai produzir muito mais do que os trabalhadores produzem hoje. E que, portanto, essa capacidade produtiva maior vai gerar produto e renda no montante suficiente para pagar os salários dos ativos e os benefícios dos inativos. Imagine um trabalhador do século 21 e compare com um do início do século 20, a capacidade produtiva de cada um. Há uma distância enorme. Imagine isso em 2050! Esse é o destino do capitalismo, o avanço acelerado da produtividade, o avanço tecnológico. Tudo vai ser mecanizado, robotizado, a produção vai aumentar em escala altíssima. Vai ser uma produção tão grande que o problema poderá ser a superprodução, como sempre foi no capitalismo. Nós temos é que criar mecanismos de geração de demanda para absorver a superprodução do futuro. É um cenário oposto a esse que o governo projeta. Então, de fato, haverá menos trabalhadores ativos, mas eles vão estar cercados de uma tecnologia, como hoje já está acontecendo, que vai gerar uma produção gigantesca, e será preciso indivíduos na posição de consumidores para consumir essa produção muito maior. Estarão, lá no futuro, os idosos, como potenciais consumidores, desde que se mantenha uma renda digna para eles. Não vai ser problema, vai ser solução.
O que a Lei de Responsabilidade Fiscal tem a ver com o regime da seguridade social e previdência?
A Lei de Responsabilidade Fiscal criou uma separação entre a previdência e as demais áreas da seguridade social. É como se existisse um fundo específico da previdência coberto pela única receita que a gente comentou anteriormente.
É a Lei de Responsabilidade Fiscal que legitima esse cálculo errado?
Legitima, mas é uma lei infraconstitucional. A Lei de Responsabilidade Fiscal está dizendo uma coisa e a Constituição diz outra diferente. Portanto, eu não preciso me apegar à Lei de Responsabilidade Fiscal. Além do mais, ela contabiliza como gasto com a Previdência Social o regime próprio de previdência dos servidores públicos juntando com o regime geral de previdência social. Porém, na Constituição, são dois regimes separados porque são regidos por regras totalmente diferentes. De novo, não é correto misturar os dois regimes e fazer uma conta só, apenas para demonstrar um déficit previdenciário imenso.
Falando nisso, o regime de previdência dos servidores também é frequentemente atacado a cada nova proposta de reforma, como um privilégio. Além disso, ele é tido como responsável pelo déficit. Qual a sua avaliação?
Eu tenho dois argumentos básicos com relação ao regime próprio de previdência dos servidores. Em primeiro lugar, ele tem, de fato, um déficit, que está em torno de 1,2% do PIB. Esse déficit, em percentuais do PIB, está constante há quatro anos. Primeiro ele veio caindo ao longo de dez anos e agora está estável nos últimos quatro anos. Então, a trajetória dele não é explosiva. Ela está muito dependente da substituição dos aposentados por novos servidores que ingressem por concurso. E isso depende de uma política de Estado. Se o governo está transformando o Estado brasileiro em um Estado mínimo, não vai fazer concurso público e opta-se pela terceirização. Então, obviamente, o governo está incentivando o déficit, porque são os trabalhadores concursados ativos que asseguram a aposentadoria dos inativos. Então, é preciso que o governo esteja sempre renovando o quadro dos funcionários públicos. Saiu por aposentadoria, tem que repor. Se essa reposição começa a cair, o déficit aparece. Se o governo passa a fazer uma política de privatização, com ajustes para encolher o sistema público de saúde, o sistema público de previdência, o sistema público de educação, é claro que esse déficit vai aumentar.
Não acho que haja privilégios. Porque diferentemente do que acontece com os trabalhadores do setor privado, os servidores públicos contribuem com uma alíquota sobre o salário integral. Por isso a aposentadoria tem um valor mais alto, porque a contribuição é muito mais alta do que a do setor privado. O trabalhador do setor privado pode ganhar R$ 15 mil, por exemplo, que ele só contribui com uma alíquota que incide até o limite de R$ 5 mil. Mas, o servidor contribui com 11% sobre o salário integral. Por isso é que as aposentadorias do setor privado são mais baixas.
Foi essa contribuição dos servidores que passou a existir a partir da Reforma da Previdência feita no governo Lula? Até então os servidores não contribuíam?
Não. Os servidores passaram a contribuir para o seu sistema próprio de previdência a partir de 1993. Na reforma feita pelo governo Lula, em 2003, os aposentados passaram a contribuir para a previdência, o que, aliás, é inconstitucional.
O regime de previdência dos servidores de alguma forma retira direitos do regime de previdência geral?
Retira porque o Estado pega recursos do superávit da seguridade social para pagar a aposentadoria dos servidores públicos. Quando, na verdade, o Estado teria que tirar dos impostos a parcela que ele deve como empregador. Não deveria utilizar recursos do superávit do regime geral de previdência social para um gasto que é de outro regime de previdência (dos servidores públicos). Então, grande parte do superávit do regime geral de previdência social vai para pagar a aposentadoria dos servidores públicos. Isso é incorreto, é inconstitucional. Essa receita da seguridade social que é desviada é legalmente vinculada unicamente para gastos com saúde, previdência e assistência social, então, ela deveria ir para a saúde, por exemplo, onde o déficit social é gigantesco.
Acaba de ser aprovada no Senado a PEC 55, que institui um teto de gastos para o governo federal. Existe alguma relação entre essas duas propostas?
Existe uma relação umbilical entre a PEC 55 e a 287. A PEC do teto de gastos não é viável sem a reforma da previdência. Mas repare que isso é o discurso que o governo faz. Porque o efeito da reforma da previdência só vai ser sentido no longo prazo. Os custos com os benefícios previdenciários não vão cair agora nem em 2018, 2019. Essa condicionalidade de se aprovar a PEC do teto e da reforma da previdência não é verdadeira. O que vai acontecer é que essa PEC não é possível de ser colocada em prática porque ela vai provocar um achatamento dos gastos num instante em que há um crescimento do valor gasto com aposentadorias e pensões no Brasil, e que não pode ser contido no curto prazo. Então, o que vai acontecer é que vai haver uma precariedade muito grande na área de educação, saúde, saneamento básico, nas áreas de cultura, defesa, segurança pública, tudo isso vai ser completamente precarizado em função de um teto que os gastos não podem ultrapassar. E o mais grave é que o governo não congelou o gasto com juros.
Comentários
Nosso pais está carente de
Parabéns a esta brilhante