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Entrevista: 
Roberto Leher

‘Estamos caminhando para um apartheid educacional'

Nesta semana comemoramos o Dia do Professor. Diferentemente dos outros anos, os professores não se contentaram com presentinhos dos alunos ou festa comemorativa. Nesta data, os professores de diversos estados do país foram às ruas com um único grito: o reconhecimento do seu papel, grito este que inclui a questão salarial, o plano de carreiras, e, o que o professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Roberto Leher, aponta nesta entrevista como o mais importante: a retomada da autonomia pedagógica. Ao mestre, com carinho:
Viviane Tavares - EPSJV/Fiocruz | 15/10/2013 08h45 - Atualizado em 01/07/2022 09h46

O professor teve o que comemorar no Dia do Professor?

Os professores estão comemorando do jeito que é necessário comemorar o Dia do Professor. Buscando aquilo que é essencial para sua trajetória profissional que é o respeito, a construção de uma carreira que valorize a qualificação, que valorize a dedicação à escola, e, sobretudo, que possibilite aos professores serem intelectuais, serem organizadores do trabalho pedagógico. Essa consciência da natureza do trabalho independente estava muito latente na categoria e temos percebidos que os professores do município do Rio de Janeiro e do estado tem consolidado uma tendência que é perceptível, pelo menos, desde 2011, quando mais de 18 estados da federação fizeram greves importantes e já bastante politizadas. Essas greves já criticavam a meritocracia, a ausência de plano de cargos e salários, estas questões estavam mais ao âmago do problema, iam além da questão salarial. E o que é bonito destacar nesse período de agora é que os professores dos outros estados se veem na luta do professor do Rio de Janeiro. Minas Gerais, São Paulo e outros estados do Nordeste fizeram em maior ou menos proporção um gesto político em apoio aos professores do Rio. Isso também é um momento novo e histórico. Isso também é digno de comemoração.

De forma geral, quais são os principais problemas dos professores municipais em todo o Brasil? Há problemas diferentes dos professores estaduais ou federais de alguma maneira?

O município do Rio de janeiro tem uma rede melhor organizada e estruturada, ainda que com muitos e crescentes problemas, como divulgou o Tribunal de Contas do município. Vínhamos caminhando nos últimos anos acompanhados de medidas que, de alguma forma, valorizaram o professor, mesmo que seja parcialmente, com correções salariais. E isso foi um pouco melhor na prefeitura do Rio do que do estado, por exemplo, até a gestão do prefeito Eduardo Paes e a secretaria de educação Claudia Costin. A partir daí, houve uma deterioração e uma mudança pedagógica muito forte, que é a tentativa de implementar a ferro e fogo a agenda do Movimento Todos Pela Educação, e abrir as escolas com parcerias de organizações empresariais, que estão acopladas ao Movimento. A partir deste fato, temos uma insatisfação muito acentuada. Fazia anos que a rede municipal do Rio de Janeiro não fazia greve.

Já a rede estadual é maior e tem um problema de identidade da rede porque é mais dispersa, por conta da educação de jovens e adultos, além da municipalização de algumas escolas. Isso vai criando uma realidade distinta. É uma máquina pior administrada, mais precarizada em termos organizativos. Exemplo disso são as disciplinas que têm menos carga horária nas escolas que sofrem, sobretudo, uma pressão para que os professores atuem em diversas escolas, que é um dos temas principais da greve do estado. E isso é uma tendência do esvaziamento do trabalho do professor que também está na prefeitura. Na realidade, essa essência de município e estado, tínhamos maiores diferenças ao longo dos anos 90, sobretudo nos primeiros anos da década de 2000. A partir da gestão Paes/Costin e Sérgio Cabral [governador do estado do Rio de Janeiro] nós vamos ter uma aproximação paulatina como a ideia de professor polivalente, que hoje é uma ideia corrente dos dois âmbitos.

O que a opção do professor polivalente pode acarretar no ensino fundamental?

O principal problema do professor polivalente é a sinalização de que o professor não precisa ser um intelectual organizador do trabalho pedagógico, organizador da cultura, de que a escola não precisa ser aquele espaço criador, de vibração da vida, de projetos, de estudos, de leitura, laboratórios. A sinalização é absolutamente outra. A formação de professor polivalente tem pressuposto que o professor pode ser um aplicador de cartilhas. Nós já tínhamos visto isso na educação de jovens e adultos e agora é retomada no município. A crença de que a educação assegurada por cartilhas basta à juventude das classes trabalhadoras é uma crueldade. E isso é um pressuposto gravíssimo porque estamos caminhando para um apartheid educacional. Os filhos dos trabalhadores devem receber uma educação minimalista, muito rudimentar, as cartilhas têm um método pedagógico como, por exemplo, a volta do método silábico, que é comum as crianças saberem montar as palavras, mas não terem a menor noção do que significa e como as palavras fazem parte de uma forma humana de expressão. Invertendo tudo que temos pesquisado em pedagógica no Brasil desde Paulo Freire, no qual as palavras têm um contexto cultural e devem ser buscadas em círculos de cultura. E a partir do sentido que vamos decompondo para aprender as sílabas e as letras. As cartilhas estão inserindo uma realidade completamente distinta. É comum no desastroso exame que é o Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (PNAIC) percebermos claramente que crianças que estão no segundo e terceiro ano do ensino fundamental montam frases que não têm nenhuma lógica, ou seja, aprenderam a montar as palavras, mas não sabem usar as palavras como forma de expressão humana, como maneira de se apropriar. Isso é algo que traz uma deformação na educação que perdura por muitos anos. E diante de uma sociedade desigual como a nossa, essa criança nunca será de fato um jovem ou um adulto que faz o uso criativo da linguagem escrita, um leitor mais sofisticado, capaz de entender a polissemia, o uso da linguagem mais sutil e conflituoso, enfim, é muito preocupante o que está em curso.

O modelo que o prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes, está usando como referência, segundo ele, é o da Finlândia. Podemos transportar essa realidade para os municípios brasileiros?

É um absurdo o que está se falando. Essa relação com a educação brasileira com a da Finlândia não tem nenhum paralelismo entre os dois sistemas educativos. Primeiro porque o professor da Finlândia é organizado em torno de uma carreira atraente, disputadíssima na sociedade, respeitada pela nação, respeitada pelo povo e valoriza muito, mas muito, a qualificação e o desenvolvimento da carreira, ou seja, é uma carreira atraente. Não só do ponto de vista de remuneração, mas respeita o desenvolvimento das atividades como o tempo para preparar aula, condições e dedicação exclusiva de uma escola, o professor tem um trabalho autoral. É um país que recusou o uso de sistema central de avaliação, não trabalham com a lógica de que competências vão ser auferidas por avaliações padronizadas. Mas isso porque confiam nos professores, confiam que os professores estão fazendo o melhor por essa escola e quando fizeram alguns testes viram que as crianças se saíram muito melhor do que aqueles que as crianças faziam os testes rotineiramente. O Rio não tem nenhum paralelo com a experiência finlandesa. O projeto que o Eduardo Paes apresentou na Câmara dos Vereadores ignora 90% da categoria. Se o professor que fez História fizer seu doutorado em História, ao invés de comemorar que a pessoa vai pensar o currículo da disciplina a partir da própria rede, porque afinal de contas é um doutor em História e se apropriou da literatura mais recente, vem o não reconhecimento. Ela não pode. Ele tem que fazer o doutorado em educação para ser reconhecido, e se fez em educação, tem que aguardar a vez dele para receber R$200 adicionais para ser incluído no contracheque, precisa de um ato de benevolência governamental para ele ter seu doutorado reconhecido. É uma carreira que entre o início e o final só tem 11 anos de progressão, dos 30 anos de carreira do professor. Isso faz com que do início ao final da carreira não chegue a 40% de aumento salarial, ou seja, você passa a vida inteira com um piso medíocre e depois de 30 anos de trabalho tem de 30 a 40% acima daquele professor que está iniciando a carreira. Isso é um deboche.

É possível estabelecer um piso nacional sem levar em consideração as variáveis, como o custo de vida de cada município? Qual a importância de se ter um plano de carreiras para os professores, de modo geral?

É fundamental levar em conta as variáveis como custo de vida, infraestrutura que o professor precisa para trabalhar, quanto ele precisa para gastar com transporte, educação, questões objetivas para que ele faça adequadamente o seu trabalho, mas, também, moradia, o cotidiano da vida, que varia muito. A distância da casa e do local de trabalho. O professor que tem que gastar mais tempo obviamente afeta o horário de trabalho. O trabalhador que pegou o ônibus a caminho do trabalho, já iniciou o seu horário de trabalho. E os bons planos de carreira consideram isso.

Qual é a importância de ter um plano de carreira?

Hoje é a questão mais central das lutas magisteriais. A ideia de ser professor público seja da educação infantil, ensino médio ou superior tem a ver com projeto de vida, tem a ver com a projeção de como construir a projeção laboral. Daí desde critérios justos para ingresso como concurso de provas e títulos, algo que dá um caráter republicano, que todos são iguais, valoriza o mérito dos exames, da prova de aula, analisa se é capaz de dar boa aula, de que sua trajetória escolar e de pesquisa são valorizados. E, sobretudo, a possibilidade de sonhar com a carreira. Tudo isso são elementos que permitem uma organização justa da vida laboral. Pelo menos, a metade do trabalho deve ser para fazer o trabalho na escola e o trabalho de correção, de atendimento ao aluno, de planejar aulas, de elaborar atividades com os colegas de trabalho. Isso até hoje nós não conseguimos.

Como avalia o espaço que o professor tem para participar de outras atividades e até da gestão da escola, como é de direito? Qual a importância de ele ser discutido com a categoria e a sociedade?

Hoje não existe mais a gestão escolar participativa. O professor tem que trabalhar na escola A, B, C, D ou tanto faz se ele está em uma ou outra. O projeto da escola é irrelevante, o que vale é o padronizado, é a cartilha básica. O que vai ser cobrado no sistema de avaliação é qual é a nota que a escola vai ter no Ideb [Índice de Desenvolvimento da Educação Básica], se a escola tem um fluxo bom, se não tiver, criar coerções para que este fluxo seja corrigido como, por exemplo, 14º salário, 15º salário para alguns estados. Enfim, se trabalhar bem o fluxo, se não reprovar, tem essa bonificação. Todas as medidas que não são pedagógicas.

Algo que se perdeu é que a escola, a instituição escolar, tem que ser uma unidade básica do sistema público, o que caracterizo como vibração da vida. Que tenha projeto, tenha coletivo de educadores, tenha autoformação, que os estudantes possam ter grupos de estudo, estudar de autores diversos, conhecer a obra de diversos artistas. Que a escola como instituição seja um espaço valorizado pela sociedade, que o que está acontecendo sejam processos formativos de qualidade, que a criança possa conhecer Pixinguinha, Mozart e Sepultura, que ela tenha a vivência com microscópios, fazer reações químicas básicas... Não dá pra elaborar isso sem tempo. A realidade hoje é seguir a cartilha e se não aplicar esta à risca, a criança se afunda no exame, o professor perde o 14º salário e a escola fica mal classificada no Ideb. Desse jeito não tem como fazer trabalho pedagógico. Os professores estão sendo silenciados, estão sendo amordaçados, estão sendo apagados da vida cotidiana da escola. Neste momento das greves, o que vemos é que principalmente os professores mais jovens estão se deparando com um desencontro do seu sonho de trabalhar na educação pública e da impossibilidade de ser professor dentro deste contexto.

O que a equiparação de salário do professor de nível I e II pode acarretar?

O primeiro problema desta equiparação é que tem um pressuposto falso. Um grande quantitativo de professor de nível I entrou no magistério com curso de formação de professores, antigo curso normal. Esses professores não são classificáveis na carreira para o nível superior. Só aqui temos grande parte dos professores afastados do plano de carreira. Só que qualquer carreira deve equiparar a remuneração e a carreira com a titulação. Todos devem ser incentivados e reconhecidos na sua qualificação. Muitos professores que ingressaram com o curso normal, tiveram curso de graduação, foram incentivados pelo poder público, mas agora não vale nada para estes professores. É uma carreira que não reconhece este princípio tão básico e estruturante da instituição educativa, que é a valorização crescente da qualificação.

Seria precioso hoje, para as pessoas que estão trabalhando com alfabetização, se tivessem seus doutorados em linguística, e desejassem permanecer na rede. Qual é a tendência de uma pessoa que não terá o seu doutorado reconhecido? Na primeira oportunidade de concurso ela vai fazer, buscando o reconhecimento. Essa migração para o federal é permanente, tanto nas universidades como nos Ifets, além de outros que abandonaram o magistério.

Como reconhece a importância do trabalho pedagógico pensado pelo professor?

É difícil colocar disciplina nas crianças, já que ela não conquista os corações dela. Hoje mantemos o controle das crianças pela coerção. É impossível um trabalho pedagógico se você abre mão de elementos pedagógicos sistemáticos. Nenhum desses projetos como o do Todos pela Educação permite que a escola seja esse espaço de participação e de desejo. Mas isso não é exclusividade do Brasil. Se acompanharmos algumas reformas em países europeus vemos que estão no mesmo caminho. A escola é o lugar do conhecimento, que os alemães chamavam de Bildung, um espaço para uma cultura geral, uma maneira de conhecer a arte, a ciência, a tecnologia... Cada vez mais teremos uma polarização de uma racionalidade econômica do conhecimento, o que é o conhecimento útil, o que está calibrado com as necessidades econômicas. O conhecimento que estão buscando hoje é uma formação humana capaz de dar conta de um trabalho simples, que dispensa elementos simbólicos mais sofisticados.

E os outros trabalhadores da educação que formam o conjunto escolar, como é possível contemplá-los?

A escola tem que ter uma ancoragem de profissionais organizados e qualificados. É preciso ter um sistema eficiente de compras, de infraestrutura, de compra de produtos pedagógicos. É necessário um setor público que entenda profundamente de licitações para fazê-las de forma adequada. É necessário um setor público de servidores que pense de maneira mais articulada a questão da alimentação escolar. Hoje temos dados gravíssimos de obesidade infantil, crianças que estão sendo deseducadas pela indústria alimentar.Além disso, os alimentos desta indústria são mais baratos, portanto, mais acessíveis à classe trabalhadora. A secretaria de uma escola tem que ser capaz não só de organizar dados e indicadores, avaliação feitos pela escola, onde vai precisar de dinheiro, tem que saber usar a verba pública de maneira mais adequada, saber apresentar projetos para angariar mais fundos. A escola precisa de um corpo funcional que não é o pessoal de apoio, o pessoal que dá uma ajudinha, tem que ser profissionais muitíssimos qualificados que possam dar resposta e ajudar na construção do sistema público. Tal como na universidade que não funciona se não tivermos um corpo técnico de altíssimo gabarito. O setor de compras das universidades é um desastre, o processo de licitação é um desastre, o setor que cuida da engenharia é frágil, porque está tudo desmontado. Não porque as pessoas são ruins, mas faltam pessoas, elas são terceirizadas, entre outros fatores.

Como o sr. analisa a divisão por categorias para ganhos salariais, que vem desde os professores até tantos outros trabalhadores?

Deveríamos cada vez mais convergir para uma estrutura de unificação de plano de cargos e salários que intercruzasse os diversos níveis e formas de organização laboral, organizado em torno da dedicação, qualificação e engajamento no processo pedagógico da escola. A matriz da carreira deve ser a mesma. De alguma maneira, conseguimos isso nas universidades federais. O técnico administrativo que faz doutorado tem, grosso modo, o mesmo tipo de remuneração de um professor-doutor. Esse é um sistema que temos que aperfeiçoar para que compreendamos que a rede pública de ensino como um todo precisa de um corpo de funcionários, de servidores, muitíssimo bem formado, valorizado e reconhecido dentro do seu campo profissional.

Como avalia a dedicação de 40 horas do professor nas redes municipais de ensino?

Se você tiver tempo integral em uma escola, você tem que ter o adicional de dedicação específica. Não será preciso sair dali para se matar dando aula à noite, porque o salário é suficiente para você ter uma vida modesta, mas digna com a remuneração. Mais do que 40 horas, o que devemos discutir é a remuneração exclusiva. Só as 40 horas impedem que o professor tenha uma remuneração minimamente satisfatória, então ele terá que dar aula com matrícula no estado, em escola privada. O que resolve é a dedicação exclusiva com uma remuneração justa e satisfatória.

Os professores do Rio argumentam que o plano incentiva a meritocracia. Como avalia essa questão? Como se estabelecem essas metas?

A meritocracia está muito mal colocada pela prefeitura, pelo estado e pelo Ministério da Educação. Se examinarmos com cuidado vamos ver que trata de uma falsa meritocracia. Não é o mérito que está em questão. O mérito é o servidor fazer uma especialização, mestrado ou doutorado porque ele tem mérito, ou seja, está se qualificando e está sendo reconhecido por sua qualificação. O que chama de meritocracia é a capacidade do servidor de cumprir metas. Isso é uma forma taylorista ou fordista de intensificação simples do trabalho. Na realidade, se pensarmos na história, o reconhecimento de mérito, na passagem para a modernidade teve um elemento progressivo. Não é porque eu pertenço a uma família de oligarquia que eu vou ser professor titular; eu vou ser, se tiver uma carreira dentro da universidade e cumprir certos requisitos republicanos de qualificação. O problema é que hoje não está se discutindo a meritocracia, é o falso mérito. Em nome da meritocracia estamos implementando uma forma brutal de intensificação do trabalho, cuja única razão é bater meta. Eu posso bater meta e não ter mérito. É claro que não podemos comparar as trajetórias educacionais que cada um tem dentro de uma sociedade de classes. Se eu for de classe média que tenho tempo e estrutura para fazer um doutorado, é mais fácil do que uma pessoa que vem de condições sociais distintas onde a casa não tem luz, não tem lugar adequado para estudar... É óbvio que essa pessoa terá mais dificuldade. Não podemos utilizar somente os títulos como os critérios de valorização, é preciso que, para garantir o mérito, que o professor, por exemplo, da rede pública, tenha uma liberação para fazer o mestrado. Isso é reconhecimento de mérito. O professor que trabalha em cinco escolas como meus alunos de mestrado e doutorado fazem estes cursos em condições suicidas quase, é uma situação absurda, dormem pouco, viram noites, enfim, se queremos reconhecer mérito, temos que criar condições materiais para o reconhecimento do mérito.