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Entrevista: 
Marcio Pochmann

‘Haverá um rebaixamento das condições de trabalho’

Quando a equipe de reportagem da EPSJV/Fiocruz terminava a última edição da Poli (n° 46), a Casa Civil da Presidência da República informou que nenhuma iniciativa tinha sido tomada para construir a proposta de reforma trabalhista prometida pelo governo interino. Não passou muito tempo até que, num café da manhã com jornalistas no dia 20 de julho, o ministro provisório do trabalho, Ronaldo Nogueira, anunciasse os termos da proposta que, tal como a reforma da previdência, deve ser apresentada ao Congresso ainda este ano. Sobre os pontos principais da contrarreforma, quase nenhuma surpresa em relação ao que a Poli adiantou e ao que se podia ler no programa do PMDB, ‘Ponte para o futuro’: desmonte da Consolidação das Leis do Trabalho, fazendo o negociado prevalecer sobre o legislado, regulamentação da terceirização e ampliação do Programa de Proteção ao Emprego (PPE), criado no governo Dilma Rousseff. Nesta entrevista, realizada pouco antes desse anúncio do ministro interino, o professor da Faculdade de Economia da Unicamp, Marcio Pochmann, rebate as ideias que agora se apresentam oficialmente como propostas, explicando por que a ideia de que flexibilização das leis trabalhistas permite gerar mais emprego é um mito difundido pelo empresariado
Raquel Júnia - EPSJV/Fiocruz | 27/07/2016 11h09 - Atualizado em 01/07/2022 09h46

Existe uma ideia difundida pelos setores empresarias de que mudanças na legislação trabalhista resultariam em mais competitividade e mais geração de empregos. Em momentos como o que estamos passando agora, de aumento do desemprego, este argumento acaba tendo um apelo forte. Isso é verdade?

Há uma divergência sobre como se determina o emprego na economia capitalista. Há essa interpretação que os empresários vocalizam, de que o emprego é determinado pelo custo de contratação. Nessa lógica, reduzindo o custo de contratação, torna-se mais fácil a empresa contratar alguém, porque com custos maiores torna-se difícil para ela do ponto de vista da competição. Então, ela poderia concorrer melhor com custos menores do trabalho. Mas não somente custos do trabalho, obviamente: como fez a presidente Dilma, tem também a redução de impostos, por exemplo, além da redução de custos de produção como energia elétrica, etc. Então, o trabalho é um dos componentes do custo de produção e, reduzindo o seu custo, a empresa teria melhores condições de ampliar a sua produção. Essa é uma avaliação recorrente, mas não é a correta, na medida em que o que determina o emprego não é necessariamente o custo de produzir, mas a existência de demanda para o produto produzido. Então, na medida em que se reduz o custo de contratação, caem os salários, porque obviamente há uma redução do valor pago, então se reduz a demanda, se reduz o consumo, porque menos salário é igual a menos consumo. Então, as empresas poderão produzir com menor custo, mas dificilmente terão condições de vender, pois não haverá consumidores na mesma quantidade. Então, a redução dos salários reduz a demanda e, portanto, faz com que, ao invés de a empresa contratar, ela demita as pessoas que já tem. Ou seja, uma discussão é dinâmica da economia e a outra é estática. A empresa vai dizer que se for menos custoso contratar alguém ela contrataria mais, mas a empresa não contrata alguém porque o custo é barato, ela contrata alguém porque há demanda para os seus produtos.

Outra proposta defendida pelas organizações empresariais como a Confederação Nacional da Industria (CNI) e que é objeto de projeto de lei no congresso é a prevalência dos acordos entre patrões e empregados sobre a legislação trabalhista. A defesa dessa mudança centra-se nas mesmas questões: necessidade de modernização para garantir mais competitividade. Quais os riscos dessa mudança para os trabalhadores?

Eu acho que é um equivoco de interpretação dos organismos patronais essa defesa porque a negociação coletiva no Brasil permite que o negociado sempre esteja acima do legislado. Sempre valerá o negociado antes do legislado desde que o negociado seja melhor do que a legislação. Por exemplo, a legislação estabelece uma jornada máxima de 44 horas semanais, mas pela livre negociação os trabalhadores e a empresa podem estabelecer 40 horas, 35 horas. A legislação não impede que você melhore as condições de trabalho, o que a CNI parece desejar na verdade é fazer com que as negociações aprovem condições de trabalho abaixo da legislação. A CLT é uma linha mínima de direitos a serem atendidos e tudo o que for acima dessa linha torna-se plenamente negociável. Quando você quer, por hipótese, acertar um contrato de 60 horas semanais ao invés de 44 horas, ou seja, condições de trabalho abaixo da CLT, ela impede. Então, o argumento patronal no fundo é para rebaixar as condições de trabalho usando este artifício de que o negociado tem que valer sobre o legislado, mas ele já vale, desde que seja para terem condições acima do que a lei estabelece. No fundo, o que querem é rebaixar a lei, sem mexer na legislação, impor um ambiente de excedente de mão de obra, de alto desemprego, fazer com que os trabalhadores aceitem os empregos com os salários e com condições de trabalho abaixo da atual legislação. É uma falsidade negociação nessas condições.

A regulamentação da terceirização também está na pauta do patronato por meio da defesa da aprovação no senado do PLC 30. A terceirização já está difundida largamente no país e é juridicamente permitida em atividades meio. Mas, mesmo nestes casos, há muitas denúncias de irregularidades e, por exemplo, mais acidentes de trabalho entre os terceirizados. Seria necessário algum tipo de regulamentação da terceirização?

Há uma pressão especialmente dos trabalhadores e sindicatos para que haja uma regulação da terceirização pois ela se instalou ao final dos anos 1980 e ganhou durante os governos neoliberais uma difusão bastante ampla no país, embora nos anos 2000  tenha havido uma certa contenção. A terceirização é a possibilidade de uma empresa contratar indiretamente uma empresa para exercer atividades e funções que somente a contratação direta permitia. Então, a ideia da regulação é evitar que justamente nós tivéssemos um desnível tão intenso entre trabalhadores de uma mesma empresa apenas pelo fato de um ser terceirizado e outro não, com desigualdade de remuneração, condições de trabalho, até porque um trabalhador terceirizado não apenas recebe menos, mas sofre maior rotatividade, está exposto a maior doença profissional, etc. Então, a reivindicação dos progressistas é que houvesse uma regulação da terceirização para evitar essa diferenciação na contratação, mas o objetivo era evidentemente fazer com que os terceirizados melhorassem os seus contratos e remunerações. Todavia, o projeto de lei que passou na Câmara e está agora no Senado faz o inverso, ele propõe na verdade generalizar a terceirização e não elevar as condições de trabalho dos terceirizados, o que significa dizer que todos os trabalhadores estarão submetidos às mesmas condições de contratação dos terceirizados, nas universidades, nos laboratórios, nas estatais, e também no setor privado. Então, haverá um rebaixamento das condições de trabalho.

O governo Dilma lançou no ano passado o Programa de Proteção ao Emprego (PPE), exatamente com o discurso de evitar demissões com a redução de jornada de trabalho e redução de salários mediante acordo entre as empresas e os trabalhadores. No entanto, os números são tímidos, segundo dados do Ministério do Trabalho: 55 mil empregos foram preservados e, com a adesão de novas empresas ao programa, este número pode chegar a 60 mil. O programa é criticado também porque o governo usa recursos públicos do FAT [Fundo de Amparo ao Trabalhador] para custear parte da perda de salário dos trabalhadores. Foi uma forma de flexibilizar a legislação cujos resultados foram abaixo do esperado?

É difícil analisar especialmente um programa sem considerar o quadro mais geral, porque nós tivemos de um lado esse programa que garantiu a permanência de pessoas trabalhando, mas também tivemos uma política de restrição no acesso ao seguro desemprego, que afetou muito os jovens, por exemplo. Os jovens têm hoje tem uma taxa de desemprego três vezes maior do que a média nacional. No meu modo de ver, não houve uma convergência de ação do governo: se de um lado ele ofereceu esse programa, que é positivo, ele terminou retirando de outros. Os trabalhadores que foram atendidos são de grandes empresas, mas a redução no seguro desemprego atingiu trabalhadores de pequenas empresas, mais jovens, mais vulneráveis. O Brasil precisaria de mudanças no sistema de proteção ao trabalho. Nós temos dois tipos de demissão, individual e coletiva. A coletiva é aquela que ocorre quando a empresa é obrigada a demitir por uma situação econômica, como estamos vivendo hoje, uma recessão. A empresa não tem para quem vender, então não tem condições de manter o nível de emprego como gostaria, ela está sendo empurrada a tomar uma decisão de demissão. A outra coisa é a demissão individual, que é aquela demissão em função da rotatividade, quando a empresa decide demitir com o objetivo de desempregar uma pessoa com salário maior para contratar outra pessoa com salário menor. A demissão por rotatividade tem sido maior do que a demissão coletiva. Eu estou dizendo isso para diferenciar porque as empresas que demitem por rotatividade deveriam contribuir para um fundo que financiasse o seguro desemprego desses trabalhadores e aí manteríamos o seguro desemprego que nós temos hoje, cujo fundo é o PIS-Pasep, para demissões coletivas e não individuais. É uma discussão mais ampla em relação ao reordenamento do sistema de relações de trabalho, que precisaria realmente sofrer modificações não no sentido neoliberal, mas, sobretudo, buscando fundamentação e eficiência melhor do que temos hoje.

Diante desse quadro de anúncio pelo governo interino das reformas trabalhista e previdenciária, que prognósticos podemos fazer sobre o futuro do trabalho e dos direitos trabalhistas?

Nós tivemos uma espécie de interregno nessa conjuntura de políticas neoliberais iniciadas nos anos 1990. Praticamente entre 2003 e 2016 nós tivemos um represamento. Não que não houvesse interesse em flexibilizar a legislação trabalhista, e o Legislativo terminou operando nesse sentido com muitas proposições, mas os governos liderados pelo PT tinham uma certa maioria para evitar que isso avançasse. Com a ascensão de Temer, ainda que provisoriamente, já há uma reorientação e está predestinado, por exemplo, a fazer valer essas proposições que até então vinham sendo represadas no Legislativo. Então, isso é uma indicação, no meu modo de ver, da retomada da trajetória de degradação das condições de trabalho pela mudança na legislação que vinha ocorrendo desde os anos 1990.

Do ponto de vista da economia externa, o quadro de crise propicia esse discurso? Há sinais de recuperação?

Veja, o Brasil está numa situação diferente de outros países. Se fosse o Equador, Chile, Peru, certamente a situação estaria muito mais dramática. Não é o caso: o Brasil é um país de dimensão continental, ele, pode apenas pelo mercado interno, voltar a crescer e se recuperar, não precisa ficar esperando o mercado externo e as exportações porque de fato o quadro internacional não é satisfatório. Quando tivemos uma crise em 2009, o Brasil utilizou medidas externas que viabilizaram a sua resistência à recessão internacional e ao mesmo tempo uma economia que voltou a crescer rapidamente. Então, o Brasil tem condições de enfrentar essa crise. Agora, isso pressupõe uma política econômica diferente dessa que está em curso, que dificilmente vai aceitar a recuperação da economia com investimento, vamos ter no máximo na verdade um quadro de semi-estagnação.