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Entrevista: 
Daphne Rattner

‘Não é só um retrocesso, é um projeto de desmonte’

O Ministério da Saúde lançou no início de maio a sexta edição da Caderneta da Gestante, instrumento que tem como objetivo auxiliar as mulheres no acompanhamento da gestação, no parto e no pós-parto e “qualificar a atenção e o cuidado pré-natal”, segundo o ministério. A nova edição, segundo a Pasta, alinha a caderneta com a reestruturação da atenção materno-infantil no SUS realizada através da Portaria 715/2022, do início de abril, que criou a Rede de Atenção Materno-Infantil (RAMI), em substituição à Rede Cegonha, criada em 2011. A instituição da RAMI foi recebida com críticas de entidades como o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) e o Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems) – que afirmaram que seu conteúdo não foi pactuado na Comissão Intergestores Tripartite (CIT), como preconiza o SUS –, pelo Conselho Federal de Enfermagem (Cofen), que emitiu nota criticando a exclusão das enfermeiras obstétricas na nova portaria – e também pela Rede pela Humanização do Parto e do Nascimento (ReHuNa), que publicou uma nota técnica criticando a visão “medicocêntrica” da portaria. Nesta entrevista, a presidente da ReHuNa e pesquisadora da Universidade de Brasília (UnB), Daphne Rattner, contextualiza a publicação da Portaria 715/2022 e critica o desmonte da Rede Cegonha, que segundo ela vinha contribuindo para “mudar uma cultura de excessos de intervenções mal indicadas” durante o parto no Brasil.
André Antunes - EPSJV/Fiocruz | 17/05/2022 16h12 - Atualizado em 01/07/2022 09h40

Em um parecer, a ReHuNa denunciou que a RAMI é parte de um modelo que “ressuscita uma visão hospitalocêntrica e medicocêntrica” da assistência à saúde. Por quê?

Eles estão substituindo um projeto que avançou por um projeto de retrocesso.  Algumas coisas que a Rede Cegonha incentivava, como por exemplo o trabalho em equipe multiprofissional, deixam de ser estimuladas, e se dá prioridade ao trabalho dos médicos obstetras. Na verdade, a coisa é um pouco anterior. Em 2019 foi lançado um programa chamado Previne [Programa Previne Brasil, que alterou o modelo de financiamento de custeio da atenção primária à saúde]. Ele retira o financiamento ao NASF [Núcleo Ampliado de Saúde da Família, cujas equipes poderiam incluir médicos obstetras], que era a parte multiprofissional das equipes de Saúde da Família. Já no começo deste ano, o Ministério da Saúde propôs colocar médicos ginecologistas-obstetras e pediatras na atenção primária [através do programa Cuida Mais Brasil]. A RAMI vem para fortalecer esse movimento. Basicamente, ela tenta diminuir o papel da enfermagem no acompanhamento do parto, e coloca um obstetra-ginecologista onde não precisa. É uma visão medicocêntrica, hospitalocêntrica. O Conass e o Conasems inclusive disseram ‘espera aí, vamos conversar melhor sobre isso antes de fazer’, o Ministério diz ‘ok, vamos conversar’, mas simplesmente foi adiante e publicou a portaria que instituiu a RAMI.

Uma das coisas que a gente detectou nessa portaria é que a Secretaria se chama de Atenção Primária à Saúde, mas ela acabou sendo gestora também da questão do parto, e o parto é hospitalar. Então, ficou uma coisa meio destrambelhada, porque a coordenação de atenção hospitalar não fica na SAPS. Parece que não há necessidade de ter coerência, não precisa respeitar a estrutura, não precisa respeitar evidências científicas.

Temos evidências científicas de que a Estratégia de Saúde da Família contribui para redução da mortalidade infantil, da mortalidade materna.

Fizemos um parecer longuíssimo sobre a Portaria 715 [que instituiu a RAMI] que alerta para isso. O modelo de assistência que ele está propondo é um modelo que não tem evidência científica nenhuma que funciona, vai utilizar um profissional como um médico obstetra em um local em que ele é menos bem aproveitado do que se ele estivesse, por exemplo, em hospitais. Poderia ser até no Nasf, mas, sem financiamento, sobra para os gestores municipais pagarem se quiserem montar as equipes.


A instituição da RAMI e o fim da Rede Cegonha, pelo que eu estou entendendo, caminham em paralelo com o movimento que temos visto no SUS pelo menos desde a nova Política Nacional de Atenção Básica (PNAB), de 2017, com a reorientação da assistência para um modelo mais biomédico e hospitalocêntrico, em detrimento do cuidado territorializado, com equipes multiprofissionais, preconizado pela Estratégia de Saúde da Família. Faz sentido?

É a mesma lógica. Este modelo é um retrocesso. Temos evidências científicas de que a Estratégia de Saúde da Família contribui para redução da mortalidade infantil, da mortalidade materna. Veja, o problema da mortalidade materna não é falta de ginecologistas e obstetras na atenção primária, é basicamente da qualidade da assistência pré-natal e ao parto. Quando se estuda mortalidade materna, mais de 90% dos óbitos maternos poderiam ser evitados caso houvesse adequada atenção ao pré-natal e adequada atenção ao parto. Uma das coisas que mais chama a atenção é que a principal causa de óbito no Brasil são as síndromes hipertensivas. Isso significa que os profissionais que acompanham o pré-natal, que em geral são generalistas, não estão sabendo fazer um atendimento adequado a hipertensão durante a gravidez nem na hora do parto. O simples fato de que no mundo inteiro a principal causa de mortes maternas é hemorragia e no Brasil são síndromes hipertensivas já mostra que tem alguma coisa errada, que falta fazer o diagnóstico adequadamente, uma conduta adequada na gestação.

Então a RAMI é um projeto equivocado, medicocêntrico. Além de tudo, nessa portaria se define que o governo federal não vai mais financiar centros de parto normal pré-hospitalares ou extra-hospitalares. Não foi feita uma avaliação pelo Ministério se eles são efetivos ou não. Não é só um retrocesso, é um projeto de desmonte. A Rede Cegonha vinha progredindo. A gente estava querendo, com a Rede Cegonha, mudar uma cultura de excessos de intervenções mal indicadas para um acompanhamento adequado de gestação, um acompanhamento adequado de parto, e redução de procedimentos desnecessários. Esse era o projeto da Rede Cegonha, a garantia de acesso a um atendimento de qualidade, e ela ainda teve um desdobramento, que eu considero dos mais importantes, que foi o programa ApiceOn, sigla de Aprimoramento e Inovação no Cuidado e Ensino de Obstetrícia e Neonatologia, que envolveu 96 hospitais de ensino. Esse projeto começou em agosto de 2017 e acabou de junho de 2020, a gente tentou negociar com as pessoas que estavam no Ministério ainda em 2019 para que houvesse continuidade, porque eu acredito que para mudar uma cultura institucional três anos é muito pouco. Nos foi dito que haveria continuidade, mas não houve, aí veio a pandemia.


Durante o lançamento da nova edição da Caderneta da Gestante pelo Ministério da Saúde, causaram polêmica algumas falas do secretário de Atenção Primária à Saúde, que fez uma defesa de procedimentos como a episiotomia, um corte feito na vagina durante o parto para facilitar o trabalho do médico, e a manobra de Kristeller, que é quando o profissional de saúde empurra a barriga da gestante com as mãos e braços para acelerar o trabalho de parto. Por que esses procedimentos não deveriam ser indicados?

Dá desgosto de ouvir isso. Efetivamente, a manobra de Kristeller é uma forma de violência, tem relatos de fraturas de costela da mãe, fraturas de ossos de bebês, e bebê é muito difícil de fraturar osso; ruptura de baço, ruptura de fígado, ruptura de útero da mulher. É muito violento, tem mulheres que ficam meses com dores depois que isso acontece.

A própria ONU estipulou que a proporção de episiotomia deveria ser abaixo de 10%. A professora Maria do Carmo Leal, da ENSP [Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, da Fiocruz], fez uma pesquisa em 2011 e 2012, a ‘Nascer no Brasil’, que mostrou que esse índice no Brasil era de 53%. Não deve haver uso liberal e rotineiro da episiotomia, deve ser restrito, e a mulher deve dar autorização para que seja realizada, os protocolos devem ser tornar públicos. Ela não é recomendada para mulheres que tenham partos vaginais espontâneos. Parece que precisa fazer intervenção mas, na verdade, quanto mais se estuda sobre parto e como funciona melhor, mais se vê que o ideal é deixar o corpo da mulher evoluir, acompanhar, monitorar e só intervir quando se fizer necessário. Assim deveria ser o cuidado. 

A RAMI devolve o protagonismo para o médico que a gente está tentando devolver à mulher


Qual avaliação faz da nova caderneta?

A cartilha anterior era empoderadora da mulher, dava informação para ela se tornar cada vez mais protagonista do seu parto. Esta não. Ela ensina:  qualquer coisa, pergunta para o médico, fala com o médico. Tem várias coisas que foram retiradas e que prejudicam a comunicação. Por exemplo, determinadas posições que a mulher pode adotar para facilitar o parto, isso foi retirado. Foi excluído o mobilograma. O que é o mobilograma? É o seguinte, se a mulher sente que o bebê está parando de se mexer, existiam orientações para ela monitorar e verificar de maneira que ela tem um sinal de alerta para procurar um atendimento, mas antes de ir para o médico. Isso saiu. Não está explícito, mas o estímulo ao parto normal, que era muito prevalente na outra, também saiu. Um outro problema que surgiu nessa caderneta é que a gente tem cerca de 50% ou mais da nossa população que é preta e parda, e um dos itens da caderneta anterior falava de anemia falciforme [doença que afeta principalmente pessoas negras e pardas]. Falava da necessidade de pesquisar na gestação se a mulher tem traço falciforme e já prevenir. A anemia falciforme é muito séria, e quanto antes detectar, melhor você consegue intervir. Isso foi retirado na nova caderneta. Então são várias pequenas coisas. Tem coisas que foram acrescentadas, o acompanhamento da altura uterina de acordo com diferentes índices de massa corporal, isso é um trabalho recente que foi feito aqui no Brasil, inclusive. Isso foi incorporado. Então não é tudo ruim, mas a filosofia por trás é uma que desempodera as mulheres. A RAMI devolve o protagonismo para o médico que a gente está tentando devolver à mulher.

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