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Entrevista: 
Janine Cardoso

‘Não é só uma questão de explicar direitinho, usando as palavras que as pessoas entendam’

Houve um tempo em que as políticas públicas no Brasil apostavam tanto nas campanhas como caminho para resolver os problemas de saúde que pesquisadores da área da comunicação puderam se ‘dar ao luxo’ de criticar esse modelo. A principal ponderação era sobre uma certa ilusão de que esse tipo de iniciativa conseguiria, “quase automaticamente”, provocar uma mudança de comportamento na população – o que, traduzido para o contexto atual, seria como acreditar que, com peças de comunicação bem feitas, a população entenderia a importância da imunização e colocaria a caderneta de vacinação das crianças em dia. Uma das principais críticas nesse sentido foi desenvolvida por Janine Cardoso, professora do Programa de Pós-graduação em Informação e Comunicação em Saúde do Icict/Fiocruz, na dissertação ‘Comunicação, saúde e discurso preventivo: reflexões a partir de uma leitura das campanhas nacionais de Aids veiculadas pela TV (1987-1999)’, defendida em 2001. Nesta entrevista, produzida para subsidiar a matéria de capa da Revista Poli nº 83, sobre as baixas coberturas vacinais no Brasil, ela fundamenta essa crítica, mas alerta que isso nunca significou a defesa de que as campanhas tinham que acabar. Ao contrário: reforça o quanto elas são importantes para colocar na agenda pública temas fundamentais para a saúde da população, como, por exemplo, o risco da volta de doenças em função da queda das taxas de imunização. Cardoso aborda ainda o fenômeno de negacionismo científico e alerta para o quanto a perspectiva individualista que norteia as principais ações de comunicação em saúde compromete, hoje, a compreensão da dimensão coletiva da vacinação.
Cátia Guimarães - EPSJV/Fiocruz | 25/05/2022 15h48 - Atualizado em 01/07/2022 09h40

Seus estudos, principalmente a dissertação de mestrado, fazem uma crítica ao modelo campanhista de comunicação prevalente na saúde. Hoje, a falta de campanhas sanitárias voltadas para a vacinação, por exemplo, tem sido apontada como uma das possíveis razões da baixa cobertura vacinal no país. Qual a sua avaliação sobre isso?

Quando eu fiz minha dissertação de mestrado, era um momento de construção do SUS, com muita esperança. Fazíamos muito a crítica dos modelos de comunicação transferenciais, centralizados e verticais. E, quando criticávamos as campanhas, não eram só as de comunicação, mas as campanhas sanitárias como um todo. Isso era algo que estava sendo problematizado por todos os lados. Em relação à comunicação, o problema não era tanto a presença das campanhas. É preciso reconhecer que as campanhas têm um papel, mas sabendo que esse papel não é o de mudar automaticamente o comportamento das pessoas. As pessoas não deixam de fazer as coisas apenas porque não sabiam e portanto, no momento em que souberem, farão. Nós tentávamos dizer que não era assim, que era preciso levar em conta outras aspectos e relações, mas reconhecendo que as campanhas têm uma importância no sentido de colocar questões na agenda pública. E é claro que quando essa comunicação parte de autoridades sanitárias nacionais ou internacionais isso fortalece o discurso [por exemplo, a favor da vacinação]. Então, na verdade, a crítica era a uma certa hegemonia dessa forma campanha, que, aliás, era sempre da ordem do extraordinário, sem falar em todos os interesses políticos envolvidos. O que se problematizava? Era a ausência de outras estratégias. Porque, ao contrário de hoje, nós tínhamos muitas campanhas, tudo que se fazia em comunicação era campanha disso, campanha daquilo. Não se contextualizava minimamente o que a gente chama de determinação social do processo de saúde e de contenção de alguns agravos e epidemias. A ênfase, muito acentuada, era na responsabilização individual.

Agora, nos tempos em que a gente está, é quase um impropério falar contra campanhas. Regredimos tanto que é óbvio que elas são necessárias, inclusive como missão do Ministério da Saúde no sentido da publicização, do posicionamento institucional e da contenção de uma série de agravos. Mas temos sempre que dizer que estaremos longe de uma relação automática de causa e efeito. Se houvesse campanha os índices [de vacinação] não teriam caído tanto? Mais ou menos. Basta pensar nas próprias investidas contra o SUS, na redução de verbas para toda a estrutura do SUS, que tem se acentuado de uma maneira absurda e também ajuda a explicar [essa baixa cobertura vacinal].

Hoje a cisão é mais aguda porque a própria autoridade de indicar o que é falso e o que é verdade está abalada

No que diz respeito à comunicação, o fenômeno das fake news também ajuda a explicar a queda da cobertura vacinal?

É inegável também a importância de se considerar esse outro componente que envolve o que tem sido chamado “negacionismo” e “fake News”, no contexto de fortalecimento e acirramento da extrema direita. Vou colocar entre aspas porque esses termos estão tão na moda que parecem transparentes, sem história e sem necessidade de definição. Parte da atualidade comunicacional das redes e das plataformas, funcionando como um palco dessas posições, gera condições muito favoráveis para prosperarem discursos antivacina que, no entanto, não são inéditos. Eles não apareceram agora. Restrição, medo e hesitação vacinal, que é o termo atual, vêm junto com o próprio desenvolvimento da vacina. Então, isso tem que ser matizado, nos diferentes contextos históricos, científicos, sanitários e comunicacionais, mas o fato é que hoje isso é muito impulsionado. Eu acho que a gente tem que lidar com isso como fenômeno histórico, social, cultural com cuidado para não colocar tudo no mesmo saco. Tem um livro da [antropóloga norte-americana Heidi] Larson que trata de movimentos antivacina atuais e coloca muitos elementos interessantes que, em geral deixamos de observar quando fazemos a crítica ao “negacionismo”. E isso é necessário até para que a gente consiga desenvolver políticas e estratégias públicas mais efetivas. Negar o negacionismo, obviamente, é uma posição necessária, mas entender por que esse discurso graça, onde ele conquista e seduz, que tipo de dúvidas ele coloca, é algo que a gente não pode deixar de fazer. Porque, se não, ficamos nessa polarização entre a verdade e o bem absoluto, de um lado, e o mal e a negação absoluta, do outro. É muito interessante esse livro porque ela mostra, por exemplo, que as associações da vacina contra a Covid com as tecnologias, 5G, antena, controle da população, Bill Gates e tal, foram observadas antes, com o 3G e a SARS e com a 4G e gripe H1N1. Isso não quer dizer que seja a “mesma coisa”, mas que há alguma conexão entre essa desconfiança na tecnologia, os contextos e os interesses envolvidos, as questões de controle que a gente em geral costuma deixar barato.

Um outro elemento importante que Larson destaca é que Andrew Wakefield, apesar de sua fraude já comprovada, continua a ser uma referência para muitos seguidores em vários países. Embora tenha uma posição crítica, como todos nós, seus estudos apontam que pais e mães se sentem identificados com ele por também se sentirem “excluídos pelo sistema”, desqualificados,  considerados "ignorantes." Há empatia com esse médico que os ouve, valoriza o saber dos pais, os considera como interlocutores – coisas que, em geral, os cientistas ou os médicos não fazem. E também nossas campanhas de comunicação que, em grande parte, têm a premissa da ignorância da população. Várias campanhas que a gente faz até hoje contrapõem mitos/superstições/mentiras com o que é verdade, como se isso fosse suficiente. Hoje a cisão é mais aguda porque a própria autoridade de indicar o que é falso e o que é verdade está abalada, também pelo elogio do individualismo, pela defesa da família como estrutura que vai resolver tudo em oposição ao Estado. 

Eu fico pensando o quanto faz falta promover essa dimensão coletiva da decisão individual, de eu saber que quando vacino meu filho não estou protegendo só o meu filho e que, mesmo que a vacina não seja capaz de protegê-lo, ela tem um efeito ampliado na coletividade. Eu acho que essa é uma dimensão que nunca, ou muito raramente, foi abordada nas campanhas

Tudo isso funciona como combustível para o movimento antivacina?

O chamado “movimento antivacina” não é uma coisa só.  Você tem, por exemplo, um entrecruzamento de perspectivas ‘naturalistas’ – dos que querem uma vida, um corpo saudável sem “interferências tecnológicas” – com o direito de escolha, da liberdade individual ou com o discurso “antissistema”. E há muitas particularidades culturais intra e entre os países. Aliás, eu fico pensando o quanto faz falta promover essa dimensão coletiva da decisão individual, de eu saber que quando vacino meu filho não estou protegendo só o meu filho e que, mesmo que a vacina não seja capaz de protegê-lo, ela tem um efeito ampliado na coletividade. Eu acho que essa é uma dimensão que nunca, ou muito raramente, foi abordada nas campanhas. Nós somos mães, qual é o apelo? ‘Vacine seu filho, proteja seu filho’. Não dá para juntar contextos históricos diferentes nem para dizer que o tipo de responsabilização individual que as campanhas faziam é o que está presente hoje aqui. Mas é fato que a gente tem um déficit no debate público sobre essa dimensão mais coletiva, não só do ponto de vista epidemiológico. Além da vacina, a gente pode pensar também nas campanhas de dengue, sem vínculo com o saneamento, mas que mandam tirar a água do seu vasinho...

E denunciar o vizinho, não é?

Sim, ‘denuncie seu vizinho’. O foco é na proteção individual, no bom cidadão que faz tudo: cuida do seu quintal, dos seus potinhos e ainda culpa o vizinho, que é o criminoso, desviante. E isso tudo, no caso da dengue, junto com a descrença em relação às instituições, ao Estado, à política. Tudo isso não tem contribuído para se entender, mais coletivamente, as questões que favoreceram a volta e a permanência do Aedes [Aegypti] e de outras doenças e agravos. Mas, é preciso sublinhar que a pandemia de Covid-19 e as intensas disputas sobre as formas de prevenção e controle trouxeram essa dimensão coletiva para o debate público, assim como abriram espaço na mídia para o reconhecimento da importância do SUS.

Parte da pauta que o campo da comunicação e saúde colocou ao longo desses anos – por exemplo, defendendo uma concepção mais dialógica, com mais estratégias de escuta –, se tivesse sido desenvolvida, poderia contribuir hoje para minar um pouco as bases desse ambiente de fake news, negacionismo e de movimento antivacina?

Poderia contribuir? Sim, certamente. Foi nisso que a gente investiu durante muitos anos. A questão é que a saúde não é uma ilha, ela está nesse Brasil, nessas condições de temperatura e pressão. E, com todo esse histórico autoritário que hoje se mostra claramente, eu diria que mesmo nos períodos de maior avanço dos movimentos progressistas, mesmo em todas as deliberações das conferências de saúde, conviviam vários modelos de comunicação. Assim, [a estratégia de]“escutar e se aproximar da população” no geral ou de grupos específicos foi modelada também de acordo com várias perspectivas. Coexistem e se atualizam vários modelos. A gente não superou um modelo [de comunicação] centralizador, a gente não superou o modelo de transferência de informação. E avançou com muitas limitações na ideia da descentralização como desconcentração de poder. Claro que tem uma série de avanços organizacionais, de regulamentação, e acho que precisamos reconhecer também que a via conselhista avançou. Eu sou contra quem faz uma crítica in totum a isso, mas acho que precisamos também observar que um polo da participação social foi muito transformado em fiscalização, no controle social entendido como controle da gestão das verbas. Isso também tirou um pouco de potência desses movimentos.

Comunicação é fundamentalmente relação, não é só saber de uma informação aqui ou ter um direito de falar ali

Também existe uma trajetória de desconfiança da população, com a qual todo mundo que vai fazer um trabalho de base esbarra, que é preciso considerar. O que eu estou dizendo é que há questões que estão para além do campo da comunicação e saúde, são mais amplas, mas é claro que interferem nas nossas possibilidades de avanço. Então, o que a gente tentou [no campo da comunicação e saúde] foi uma formulação de que o direito à comunicação não é só o direito à informação, é também o direito à voz, a ser reconhecido e participar no debate público. Agora, também esse direito à voz é bem problemático porque, embora haja um ‘consenso’ sobre isso entre os setores progressistas que lutam pela democratização da informação, pela ciência aberta, o direito à comunicação ficou muito enterrado nos núcleos emissores institucionais ou midiáticos. Eu acho que essas foram barreiras que a popularização e a plataformização da internet acirraram. Porque comunicação é fundamentalmente relação, não é só saber de uma informação aqui ou ter um direito de falar ali, é uma relação que se constrói em diferentes contextos. E os espaços e estratégias que poderiam favorecer essa relação foram muito contidos. Os canais de escuta foram muito traduzidos, por exemplo, na proposta de criação de ouvidorias. Elas são importantes? Sim. Mas vale pensar além dos canais de escuta especializados, que escutam e, no máximo, respondem a demandas específicas, em boa parte individuais: eles não cobrem, não podem substituir formas e espaços de participação. Isso envolve construir formas de relação inclusive de maior confiança. Além disso, se pegarmos a quantidade de demandas de comunicação, educação e informação que tem sido registrada nas conferências de saúde a partir da oitava, a gente é forçada a reconhecer que muita coisa não andou.

A comunicação não é para expelir informação, é para disputar sentidos, poder simbólico e muitas vezes não só poder simbólico mas também poder material

Hoje os meios de comunicação de massa estão fazendo um papel até progressista nesse caso de combater o negacionismo científico, por exemplo, em relação à pandemia. Outros meios, principalmente as redes sociais, têm sido espaço privilegiado do negacionismo e de fake news. E esse conjunto de outras estratégias que não passam nem pela comunicação de massa nem pelas plataformas de redes sociais e que foram defendidas ao longo de tantas conferências de saúde? Havia um meio de caminho?

A gente sempre discutiu a comunicação como relação, como transversal às demais práticas sociais. Então, não reduzia a comunicação à mídia, embora reconhecesse o papel estratégico dos meios de comunicação que hoje são ditos tradicionais, corporativos. Temos essa visão mais transversal, que defende que a comunicação não é para expelir informação, é para disputar sentidos, poder simbólico e muitas vezes não só poder simbólico mas também poder material. Os conselhos de saúde, por exemplo, nunca tiveram apoio para as suas estratégias de comunicação e isso diminuía muito a capacidade de disputa desses segmentos mais progressistas. Disputa quer dizer terreno de concorrência, quer dizer que há uma arena em que você não é o único a falar, por mais autoridade sanitária e científica que tenha. Aqui se coloca, aliás, essa questão da crise das instituições modernas que autorizavam um certo discurso sobre o real. Isso está em crise pelo menos desde o final da segunda guerra, desde a bomba atômica. O questionamento é: o que faz a ciência? Faz bem? Faz mal? Os meios de comunicação, no Brasil pelo menos, têm uma aliança com a ciência, não necessariamente com a política, com os políticos ou as autoridades: é uma aliança no sentido de reconhecer, de fazer eco [ao que a ciência produz], embora em muitos momentos tensionados com esse parâmetro jornalístico de ouvir os dois lados. Há estratégias da indústria do tabaco, e mesmo do movimento antimudança climática, que não são exatamente de negar, mas de semear a dúvida, dizer que aquela conclusão não está consolidada, que a metodologia tem falhas – e os meios de comunicação, principalmente nos Estados Unidos, mas na Europa também, deram espaço a isso, ecoaram, deram legitimidade. No Brasil, embora tenha existido um ou outro questionamento, essa não me parece ter sido uma linha forte da cobertura dos meios em relação à ciência. 

Existe também uma disputa específica de reafirmar o jornalismo como a instituição confiável para dizer as coisas que vão no mundo. O jornalismo também está reafirmando o seu poder de dizer a verdade, não é só a ciência. Quando eu falei que devemos usar a expressão fake news entre aspas, é porque é preciso perguntar quem é que diz o que é fake ou não. Qual é a instância? Mesmo agora nas supostas tentativas de conter a desinformação nas redes, seja o Google ou o Facebook, eles devem ter esse poder de definir o que deve ou não ser publicado? O que eles têm feito (quando fazem)? Contratam as agências de checagem. Quem são essas agências de checagem? É claro que se afirma uma concepção de verdade, de news, que quem pode enunciar é o jornalismo, como se o jornalismo também estivesse acima de qualquer suspeita.

Mas, historicamente, o campo da comunicação e saúde também apontou um conjunto de outras estratégias de comunicação mais pontuais, que não passavam propriamente pela mídia empresarial, seja ela massiva ou as atuais plataformas digitais. Em relatórios de conferências de saúde aparecem, por exemplo, propostas para fornecer informações sobre o SUS e de campanhas de saúde nos contracheques, conta de luz, entre várias outras. O que dizer sobre isso?

Eu acho que são estratégias importantes, mas episódicas, que não resolvem muito porque se perdem nesse campo maior de disputa. Acho que essa questão das ações tópicas que não têm continuidade têm um poder limitado. Um exemplo: a gente consegue uma importante matéria [jornalística], coloca um sanitarista [na pauta] e fica superfeliz, mas logo afunda de novo. Claro que isso é necessário, claro que é importante, mas em termos de uma estratégia de mais amplo alcance, eu acho limitada. E não substitui a necessidade de outras estratégias. Acho que isso é importante para fortalecer aqueles que já estão engajados, mas não são talvez as estratégias mais adequadas para chamar gente nova para essa discussão. E, além dessa questão de serem ações tópicas e espasmódicas, eu acho que ainda há o problema de elas terem como vetor principal essa ideia de transmitir a informação. Eu boto o SUS no contracheque e a gente nem discute muito o que é SUS, basta dizer que é saúde e é importante. Mas de que saúde a gente está falando? Combinado com outras ações, isso pode funcionar, mas isoladamente, tenho dúvidas.

Do ponto de vista da comunicação, que outras ações poderiam ter sido experimentadas? Que ‘ausências’ no campo da comunicação podem ter contribuído para o cenário que a gente tem hoje no caso da vacinação?

Acho que a crítica mais geral tem a ver com essa questão da relação com os movimentos sociais, os movimentos de base. Há toda uma mudança no mundo do trabalho, as formas de organização mudaram e estão sendo esvaziadas, mas eu acho que nós também tivemos dificuldade de acompanhar e participar. Acho que a luta por ocupar espaços institucionais consumiu boa parte das energias dos movimentos progressistas envolvidos na construção do SUS. Agora, eu não quero opor esse tipo de atuação que envolve uma inserção mais cotidiana no contexto de vida desses grupos sociais às estratégias de comunicação no mundo digital. Inclusive porque a extrema direita se apropriou desse espaço com muito mais força. A polarização é parte da lógica dos conglomerados no mundo digital. Quem acreditou no mito de que a internet seria pró-democracia hoje já teria mais cuidado. Obviamente os movimentos sociais também se mobilizam lá, mas as redes não são um espaço neutro em que todos concorrem em igualdade de condições. Elas têm lógicas que propiciam mais alguns discursos do que outros. E também é fato que muitas vezes as instituições de saúde usam esses espaços como murais eletrônicos para informar o que fazem e não como espaços de relação. Usam como espaços de divulgação e não como um convite que estimule as pessoas a se aproximarem. Então, eu acho que tem um campo a ser desbravado. E eu não estou me referindo só à saúde ou às forças políticas progressistas, estou dizendo que faltam interações face a face, lá onde as coisas estão acontecendo. Porque não é só uma questão de informação, não é só questão de fazer um inquérito, é preciso ouvir e entender o está acontecendo, contribuir para ampliar essa interlocução. A pesquisa que a gente está desenvolvendo sobre a Covid-19 nas mídias traz uma dimensão política mais geral, que envolve [a percepção sobre] as autoridades, as ciências, o jornalismo, enfim, em quem se confia e de quem se desconfia, mas também destaca todo esse campo da afetividade, das relações subjetivas. A gente costuma trabalhar muito com uma matriz racionalista, que tem a ver com essa perspectiva de transmissão da informação e parece que com isso a gente vai levar a verdade. Não é só uma questão de explicar direitinho, usando as palavras que as pessoas entendam.

Eu queria que você analisasse a situação da comunicação em saúde hoje, as campanhas que estão sendo desenvolvidas e a própria ausência de campanhas, apontada como um problema principalmente quando se trata da Covid-19.

Eu acho muito difícil não dar ênfase a essa questão do contexto político mais geral no qual a pandemia foi usada como um cabo de força. Desde o início há essa polarização, esse estressamento, que não é uma questão de um debate de posições distintas, é a coisa do cabo de guerra mesmo, porque o outro é o inimigo a ser eliminado e desqualificado. Eu acho muito difícil pensar as campanhas de comunicação contra a Covid fora desse contexto. Porque a ausência [de ações de comunicação] é um projeto. Tem um posicionamento aí. Essa ausência é eloquente. Ela marca uma posição que agora pode estar um pouco mais atenuada, mas que ao longo da pandemia era de negar sua gravidade, sua importância e mesmo sua existência. Lembra aquela campanha ‘O Brasil não pode parar’? Era uma campanha contra a prioridade da pandemia, ou pelo menos, contra as recomendações sanitárias, da OMS e da ciência. Então, eu acho que a ausência das campanhas marca esse posicionamento não só contra os consensos científicos, mas contra a vacina e, no lugar da vacina, o governo havia chamado tratamento precoce. Eu realmente acho que foi uma decisão política não fazer campanha [para enfrentar a Covid-19]. 

Outro problema apontado por analistas é que, no caso da Covid-19, mesmo quando houve ações de comunicação, muitas vezes o discurso estava em descompasso com a atitude, o exemplo concreto, de várias autoridades políticas e sanitárias. Qual a consequência disso, do ponto de vista da comunicação?

Eu acho que essa questão da relação entre discurso e realidade nos tempos que a gente está vivendo está muito transfigurada. Justamente porque a disputa não está mais nessa base do real, do acontecimento. Não há nenhum pudor em desqualificar as evidências científicas ou factuais, basta ver a quantidade de inversões e transmutações que são feitas. A gente conhece muito pouco sobre como é que isso acontece para a maior parte da população – e eu não gosto de reduzir isso a uma questão de educação formal ou de indicadores sociodemográficos porque tem muita coisa que eles não captam e também acho que a gente tem que ter cuidado de estabelecer essas relações assim muito automáticas. Mas o fato é que, embora a gente não saiba como e por que, para uma parcela da população isso faz sentido. Isso faz parte desse cenário que eu estava chamando de polarização, que não é só uma polarização política, porque desqualifica acordos tácitos que nos davam um certo patamar comum de interpretação. Eu acho que essa fissura que a gente está vivendo, que faz parte desse projeto ultraliberal, de extrema direita, é nacional e internacional e pega na própria base, no chão. Eu acho que isso é mais um desafio para a gente não só focar na informação de qualidade, crível ou contextualizada, porque existe um campo minado de muita descrença e polarização que vai exigir da gente outras formas de atuação e muitas outras pesquisas.

*Esta entrevista foi produzida para subsidiar a matéria de capa da Revista Poli nº 83, sobre queda das coberturas vacinais

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No momento em que instituições, pesquisadores e profissionais de saúde se mobilizam para reverter as baixas coberturas vacinais, que trazem o risco de retorno de doenças já controladas ou mesmo eliminadas do país, como o sarampo e a poliomielite, esta entrevista relembra as dificuldades e o êxito da primeira grande campanha de vacinação brasileira, contra a varíola. É verdade que naquele remoto início do século 20 a população do Rio de Janeiro se insurgiu contra a vacinação obrigatória, mas a pesquisadora Tania Maria Fernandes, da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz), lembra que esse não foi um movimento apenas contra a vacinação: estava presente ali a indignação de parte da população com um ambiente de opressão, expressando uma insatisfação social que ia muito além da vacina. Além disso, ressalta, num tempo em que não havia internet e a maior parte da população brasileira sequer sabia ler, as estratégias de informação e conscientização eram mais difíceis mas, embora houvesse boatos que amedrontavam, nada era comparável às atuais fake news. A entrevista foi realizada como parte da reportagem de capa da Revista Poli nº 83, sobre a queda das coberturas vacinais no Brasil.
‘Reconquista das altas coberturas’: esse é o nome de um novo projeto coordenado pela Fiocruz, em parceria com a Secretaria de Vigilância em Saúde (SVS) do Ministério da Saúde, e dá dimensão do tamanho desafio - o país precisa, urgentemente, voltar a ter taxas de vacinação que protejam o conjunto da sociedade e evitem a volta de doenças já controladas ou mesmo erradicadas. Há dez anos, a cobertura vacina média no Brasil era de 96,5%, enquanto, em 2021, caiu para menos de 68%. Um dos profissionais à frente dessa empreitada é Akira Homma, pesquisador de Bio-Manguinhos, Fiocruz. Nesta entrevista, produzida para a matéria de capa da revista Poli nº 85, ele explica as situações em que há diferença na imunização de crianças e adultos, ressalta as sequelas que doenças para as quais já existem vacinas podem provocar e garante que as vacinas aplicadas no Brasil são seguras. Sobre a iniciativa que vai tentar ampliar as coberturas vacinais no país, destaca que o esforço principal tem sido ir até os municípios, sentar para dialogar com todos que atuam na saúde daquele território e entender que os protagonistas dessa ‘reconquista’ são os profissionais locais.