Serviços 
O conteúdo desse portal pode ser acessível em Libras usando o VLibras
Entrevista: 
Francisco Menezes

‘Não estaremos satisfeitos enquanto houver um brasileiro com situação de fome’

Com a experiência de quem, nos anos 1990, participou da Ação Cidadania contra a Fome, a maior campanha de mobilização da sociedade civil contra a insegurança alimentar grave de que o país tem memória, e, mais recentemente, foi presidente do Consea, o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, Francisco Menezes analisa o cenário brasileiro atual. Nesta entrevista, ele mostra a trajetória de piora da segurança alimentar antes e depois da pandemia, enumera as políticas públicas que podem ajudar a melhorar a situação e defende a criação de uma renda básica que garanta dignidade à população mais pobre.
Cátia Guimarães - EPSJV/Fiocruz | 21/07/2021 13h56 - Atualizado em 01/07/2022 09h42

O senhor pode fazer um pequeno histórico da situação de insegurança alimentar e de fome, especificamente, no Brasil recente, marcando, sempre que possível, as diferenças entre o cenário do campo e da cidade?

Embora a pandemia possa ter trazido um agravamento desse quadro, já era nítida a situação de retrocessos que nós estávamos prevendo. A grande mídia costumava colocar: ‘a crise econômica levou a essa situação de crescimento da pobreza e do aparecimento novamente da fome’. E eu sempre enfatizava, já em 2015, 2016, 2017, quando a mídia colocava essas manchetes, que isso era uma meia verdade, porque precisávamos falar das escolhas que foram feitas para o enfrentamento da crise. De fato, o IBGE [Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística] com a POF, Pesquisa de Orçamento Familiar, mostrou, usando a metodologia da Escala Brasileira de Insegurança Alimentar [EBIA], que havia uma reversão nas curvas. Antes, se você tinha uma situação de crescimento da segurança alimentar e redução da insegurança alimentar, que a pesquisa de 2013 e 2014 mostrou, quando se realiza a pesquisa em 2017, 2018, se confirma o que a gente já previa: que teríamos novamente a volta da insegurança alimentar em números mais graúdos e, ao mesmo tempo, da insegurança alimentar grave, que é similar à fome. E isso apareceu em função das escolhas que haviam sido feitas, sobretudo, a partir de 2016.

Nós sempre realçamos muito os efeitos dessa opção pelo que foi a Emenda Constitucional 95, do teto de gastos, com restrições orçamentárias muito graves sobre as políticas públicas de saúde, educação e assistência social, mas também da segurança alimentar, puxando o tapete da proteção social no Brasil. Então, as consequências não poderiam ser diferentes: a insegurança alimentar e a fome são uma manifestação dessas escolhas agora. Ao lado disso, o enfrentamento da crise econômica cobrou um preço muito alto sobre a população mais vulnerável, particularmente na questão do mercado de trabalho. Porque a fome está muito associada à pobreza, seja urbana ou rural. Se você tomou medidas que fizeram aumentar a extrema pobreza, você vai ter a manifestação dessas situações [de insegurança alimentar], seja por redução do poder aquisitivo para adquirir alimentos, sobretudo nas populações urbanas onde a fome cresceu, seja em função da dificuldade de produzir para sua própria subsistência – e aqui estou falando mais do espaço rural, ou seja, para os agricultores familiares conseguirem vender parte de sua produção e produzirem para o autoconsumo.

Inclusive, um outro fator que eu tenho realçado é  esse aspecto das políticas anti-ambientais que vêm sendo praticadas com um impacto muito grande sobre as populações tradicionais, povos indígenas... Então, é um conjunto de fatores, que levaram ao empobrecimento e à desproteção social, e que impactam tanto o meio urbano quanto o meio rural.


E a pandemia teve também seu papel?

Evidentemente, a epidemia da Covid-19 no Brasil aguçou essas questões, mas que já estavam em marcha. Então, também não gostamos simplesmente da manchete ‘A pandemia levou à fome’, que é outra meia verdade, assim como dizer que a crise econômica tinha levado à fome. São meias verdades, porque ela aguçou processos mostrando as desigualdades e as políticas públicas que deixaram de ser dirigidas para construir uma condição de segurança alimentar para a população. Na realidade, o que se viu na questão da pandemia foi um aguçamento das desigualdades.

Há aí um fator que precisa ser ponderado, que é a questão do auxílio emergencial, discutindo seus diferentes momentos. O auxílio emergencial foi uma proposta trazida por movimentos sociais e aprovado no Congresso Nacional num valor contra a vontade do atual governo, que propunha, inicialmente, R$200,00 de transferência de renda. De abril até agosto, ele teve um papel importante no sentido de acudir sobretudo aquelas pessoas que ficaram sem atividades, com sua renda muito diminuída em função da epidemia. Se tivesse sido feita uma pesquisa naquele momento [sobre insegurança alimentar], nós teríamos números melhores. As pesquisas da Rede Penssan e da Universidade de Berlim foram feitas já no período em que o auxílio tinha sido reduzido à metade e já captaram, obviamente, uma situação grave. Elas tiveram, eu acho, o mérito de captar o que já se sentia na redução do auxílio à metade. Por causa da nossa ligação com movimentos sociais que trabalham diretamente nas bases, nós captávamos isso, tanto na área rural quanto nas áreas urbanas. Já em março do ano passado, quando apareceu a Covid no Brasil e as atividades foram interrompidas ou muito diminuídas, houve ali uma situação muito aguda de fome porque aqueles mais vulneráveis se viram subitamente sem condições de obter alguma renda ou até mesmo realizar sua produção. Lembro a você que as escolas foram suspensas, ficaram fechadas, e aqueles que produziam na agricultura familiar tendo o direito de fornecer, no mínimo, 30% da alimentação escolar tiveram interrompido esse canal que era muito importante. Ao lado disso, nas cidades, uma maioria de população mais pobre, que eram ambulantes ou diaristas, se viram subitamente sem renda nenhuma. Essa foi uma situação muito aflitiva que o auxílio emergencial veio sanar, ao lado de todo movimento que organizações da sociedade faziam para acudir aqueles que estavam em situação mais grave, através de cestas básicas, distribuição de kits de alimentação, etc, que perdurou durante a pandemia. O auxílio teve uma importância grande. Quando ele é reduzido à metade em setembro, já começamos de novo a captar isso - inclusive algumas organizações que trabalhavam na distribuição de alimentos, disseram: não estamos dando conta, está começando a vir novamente uma demanda de pedidos, formam-se filas. Me lembro que conversei com um companheiro que atende aquela favela de Heliópolis, em São Paulo, e ele disse: “em janeiro nós sempre tínhamos uma situação em que as coisas ficavam meio paradas, com pouca atividade, agora está formando fila aqui na porta da nossa associação, de gente pedindo comida”. De janeiro a março ficou sem auxílio, um grau de irresponsabilidade total da maioria do Congresso Nacional, que estava discutindo, sobretudo, a eleição das presidências na casa, e também do governo federal, que deixou uma população completamente desassistida, sem nada. Foram três meses de muita miséria. No final de março, veio um novo auxílio, que não dá conta, que tem valores que eu diria ridículos em relação às necessidades. Só para ter uma ideia, com esse valor, uma pessoa individual vai ter R$ 5 por dia para sobreviver se estiver sem renda nenhuma. É um valor ridículo: R$150 por mês ou R$ 250 para uma família ou R$ 375 para uma mãe com filhos, que tem que alimentar essa família. Nós continuamos a viver numa situação muito grave, com muita preocupação, porque a política de transferência de renda, que é esse auxílio emergencial, é completamente insuficiente.


Quando você fala do enfraquecimento de políticas de proteção social, pode me dar exemplos concretos de políticas públicas que garantiam uma situação um pouco menos grave de insegurança alimentar e foram sendo descontinuadas ou esvaziadas etc?

Em primeiro lugar, de uma maneira geral, a gente precisa dar importância ao papel da assistência social. Às vezes nós, da segurança alimentar, nos esquecemos disso. Por que ela é importante? Porque tem condição de acessar a população de maior vulnerabilidade. Todos os municípios do Brasil têm centros de referência de assistência social, uma criação da década dos anos 2000. A assistência social, considerando o ano de 2020 em relação à situação imediatamente antes de ser instituído o teto de gastos, teve um corte de 67% no seu orçamento para os serviços. Então, isso trouxe um impacto.

Agora vamos às políticas de segurança alimentar. Nós tínhamos programas muito estruturantes, como é o caso do Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar, o PAA, que comprava da agricultura familiar e distribuía esses alimentos para organizações da sociedade mais vulneráveis, e também veio sofrendo cortes seguidos. Ele chega a 2020 com um orçamento mínimo. Na urgência, foi feito um repasse de R$ 500 milhões no ano passado, mas os valores orçamentários são sempre muito insuficientes. Na verdade, a gente acreditava na necessidade de um repasse, no mínimo, de R$ 1 bilhão.

Outro programa da maior importância que vinha sendo construído e tendo impactos muito significativos era o chamado Programa de Cisternas, de acesso à água no semiárido nordestino. E esse programa veio tendo cortes brutais desde o governo [Michel] Temer, um efeito também da política de teto de gastos. Nós tínhamos já a 1,2 milhão de cisternas, que era algo muito significativo. O pessoal sempre fala que se você entrar no Google Maps e tocar na área do semiárido, vai ver hoje diversos pontos branquinhos, que são das cisternas que já foram instaladas nessa região. Mas havia ainda uma demanda, se não me engano, de 350 mil cisternas para uso doméstico e 800 mil para produção, que precisavam ser construídas. Isso foi praticamente paralisado. Nós vivemos uma situação que foi dolorosa pra nós, porque, se não estou enganado, em 2018, uma organização da ONU premiou o programa de cisternas como um programa exemplar de enfrentamento da desertificação para ser seguido em todo o mundo. O irônico nessa história é que o governo brasileiro foi convidado para receber esse prêmio no momento em que estava descontinuando o programa, cortando orçamento. A gente fez uma denúncia à ONU nesse sentido, conseguimos pelo menos que a Articulação do Semiárido fosse também receber o prêmio, porque antigamente ele era dado só aos governos. E o mais triste dessa história é que um mês depois que o governo Temer recebeu esse prêmio por algo que não tinha feito, ele faz um corte orçamentário que praticamente zerou o repasse de recursos para essa política.


Esses dois programas tinham impacto muito diretamente na área rural, certo? O das cisternas para garantir plantação na área rural e o de aquisição de alimentos da agricultura familiar para garantir renda a essas famílias que produzem. É isso?

Sim, com impactos muito fortes nesse sentido. Poderia falar ainda do Programa Nacional de Alimentação Escolar, que embora não tenha tido cortes no seu orçamento, mais recentemente, no Congresso Nacional, [está tramitando] uma série de emendas para modificar a lei. Essa foi uma lei que a gente construiu muito a partir do Consea [Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional], que permitia que no mínimo 30% fosse para a agricultura familiar. Estão sendo feitas várias tentativas de mudar essa lei, no sentido de que a agricultura familiar venha perdendo o acesso a esse mercado, que é um mercado enorme: são 43 milhões de alunos todos os dias, durante 200 dias do ano, acessando essa produção, que, inclusive, garante alimentos mais saudáveis e permite o acesso a uma alimentação produzida pela agricultura familiar muito mais próxima, que não realiza aquela viagem interminável de produtos processados e já com uma manipulação industrial. Na epidemia, com as escolas fechadas, uma parte significativa desses alunos deixou de receber essa alimentação. Os municípios, sobretudo, passaram a fazer algum tipo de fornecimento às famílias, mas sobretudo com vouchers, um repasse de recursos bastante insuficiente, porque as famílias eram obrigadas a comprar em mercados e vender no local em que moravam, não tendo mais o acesso àquela alimentação produzida na escola.

De um lado, isso impactou os estudantes. Do outro lado, a agricultura familiar se viu sem capacidade de fornecimento a esse mercado tão importante. Esse é o outro lado da moeda dessa situação em que o governo federal foi bastante omisso. Porque a partir do FNDE, o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação, que faz o repasse dos recursos da alimentação escolar, ele poderia ter sido exigente no sentido de que se criassem formas como, por exemplo, manter com os devidos cuidados o fornecimento dessa alimentação a partir das escolas, continuando a receber da agricultura familiar e fornecendo de forma organizada às famílias essa alimentação. Mas não fez isso: deixou ao sabor dos municípios. Embora alguns tenham realmente mantido essa produção a partir das escolas, a maior parte deles ficou fornecendo voucher de forma insuficiente para as famílias. Essa foi uma luta que tivemos todo o tempo.

Eu queria falar ainda do Bolsa Família. Porque enquanto a pobreza crescia, o programa não foi ampliado. Se formaram, antes mesmo da pandemia, filas enormes de pessoas que já tinham sido autorizadas a receber esse repasse de recursos através do Bolsa Família e não se resolvia isso. Houve uma entrada [de beneficiários] por pressão, inclusive, do próprio Superior Tribunal Federal de que essas filas fossem zeradas, mas depois as filas começaram a se formar de novo, porque a pobreza cresce e isso tem um impacto grande em relação à situação de insegurança alimentar das pessoas.


Está bastante clara a importância desses programas, mas eu queria entender o peso que a questão da renda tem na segurança alimentar, tanto para a área rural quanto para as cidades. Há quem fale na necessidade de uma renda básica para enfrentar o problema da insegurança alimentar no Brasil. Qual a sua avaliação sobre isso?

A questão que você levanta é importantíssima. Primeiro, tenho insistido num ponto que é o seguinte: a gente está em uma situação de uma epidemia de fome. Nesse sentido, nós precisamos de medidas que requerem urgência. Então, ainda em relação ao auxílio emergencial, tem uma coisa que precisa ser dita: o auxílio emergencial foi muito mal implantado. Todos nós lembramos das filas enormes que se formaram em frente à Caixa [Econômica Federal]. Existem áreas no Brasil completamente sem acesso à internet. Então, quando faz tudo a partir de um aplicativo, você conscientemente está deixando de lado uma parcela da população que não tem acesso à internet. Tem que considerar que muita gente ficou de fora, assim como vimos que propiciou que muita gente que não precisava acessasse o auxílio emergencial. Agora, o auxílio emergencial tem a capacidade de garantir o acesso mais rápido à renda. Nesse sentido, apurando formas de fazer chegar à população mais vulnerável essa medida, a gente continua defendendo que eles retomem os R$ 600 e R$ 1.200 como valores mínimos. Porque estamos falando de urgências.

É preciso considerar, inclusive, que os alimentos tiveram alta de preços bastante maior do que a média da inflação. E isso impacta a população mais pobre, que tem nos alimentos o componente principal no seu orçamento doméstico. Esse é um ponto: precisamos rever esse valor ridículo do atual auxílio emergencial. Em segundo lugar, precisamos também prestar muita atenção nesse lado que eu falava da alimentação escolar. É preciso não deixar que a movimentação de setores ligados sobretudo ao agronegócio modifique a lei da alimentação escolar para tomar posse dessa parte que nós defendemos para a agricultura familiar. E também, na medida em que a epidemia continua em nível bastante grave, é necessário fazer com que essa alimentação escolar possa chegar às famílias de uma maneira equivalente a quando as escolas estavam totalmente abertas. Escalo assim em termos de medidas urgentes, afora a atenção sobre as comunidades tradicionais, povos indígenas, que estão hoje necessitando de uma atenção especial em função da vulnerabilidade que estão vivendo. Isso é o que a gente reivindica de urgência.

Agora, tem toda razão pensar em instituir no Brasil uma renda básica, que seria, vamos dizer, no caminho de um Bolsa Família revisto e revigorado, tanto em termos da população que precisa acessá-lo quanto em termos do valor, que precisa ser revisto. Realmente, nós defendemos uma renda básica, que ainda não vai ser universal, mas que assegure a uma parcela significativa da população uma transferência de renda que lhe garanta dignidade. Pensa num trabalhador que vai buscar um acesso a emprego, no atual momento, com tantos desocupados. Se tem uma renda básica como garantia, a capacidade de negociação de direitos que ele vai ter é completamente diferente da situação do trabalhador atual, que tem que aceitar qualquer coisa que lhe é oferecida para poder ter acesso a esse emprego. A gente vê no sentido de construção para o futuro que pretendemos para logo uma renda básica permanente, um fator de garantia, de estabilidade, de direitos, que não obriga essa população mais vulnerável a aceitar qualquer coisa que lhe é oferecida. A renda básica enquanto um projeto de cidadania é absolutamente necessária e também urgente de ser construída se a gente está pensando em reconstrução de um país.

Agora, por que eu falo reconstrução? Dado o grau de destruição de que esse país está sendo vítima. Mas é claro que tivemos políticas públicas que foram construídas no passado recente e tem que ser reconstruídas. Estamos citando diversos programas, agora, é claro que vai ter que haver criatividade dentro de um país que está hoje numa outra situação. Então, por exemplo, uma coisa que vou falar e parece algo completamente fora do tema da segurança alimentar, mas não é: o acesso à internet amplo, irrestrito, é absolutamente necessário de ser pensado para toda a população brasileira. Isso se tornou um direito que não pode ser dispensado, seja pensando a questão da educação, seja pensando a questão da saúde, seja pensando a questão alimentar. Inclusive, há a possibilidade de conexões, por exemplo, da agricultura familiar com o campo de consumidores, em que a internet já se coloca como uma via necessária, pensando modernamente. E todos têm direito a essa modernização.


Você participou da Ação Cidadania Contra a Fome, um marco na mobilização da sociedade contra a fome nos anos 1990. É possível fazer uma comparação entre aquele Brasil e o Brasil de hoje em relação a esse tema?

Sim. Se a gente tivesse acesso aos números, a partir do que as pesquisas mostram, veria que os números são muito parecidos, mas são situações diferentes. Por quê? Porque o Brasil teve uma experiência na qual aquela mobilização toda que o Betinho liderou teve muita responsabilidade, de construir políticas que agora estão sendo destruídas. Essa é a diferença fundamental. Quando o Brasil saiu do mapa da fome da ONU em 2014, é claro que foi em função dessas políticas, nas quais a participação da sociedade teve uma responsabilidade forte. Agora, o que retorna é uma situação absolutamente inaceitável, inclusive pelas condições que o Brasil tem de prover alimentação para toda sua população. E ao invés de nos orgulharmos, a gente devia ter vergonha. Não que eu, particularmente, seja contra a exportação de alimentos, mas um país que tem condição de exportar alimentos e deixa parte de sua população numa situação de fome?! Eu trabalhei e convivi com Betinho: ele estaria completamente indignado com essa situação a que se retorna. Não estaremos satisfeitos enquanto houver um brasileiro com situação de fome, uma pessoa que viva no Brasil nessa situação. Mas que o país sofreu um desmonte por escolha é importante dizer.


Queria que você me ajudasse a ‘traduzir’ o quanto esses números sobre a insegurança alimentar no Brasil atual são alarmantes. Como identificamos que uma família está em insegurança alimentar leve, moderada ou grave?

Eu estava no Consea - e depois acabei na presidência do conselho - quando foi feita a primeira pesquisa da EBIA, a Escala Brasileira de Insegurança Alimentar, que foi muito discutida dentro do Consea. A professora Ana Maria Segalll, da Universidade de Campinas, que trazia essa proposta em relação à Escala Brasileira de Insegurança Alimentar, colocava uma questão muito importante, que depois foi bastante desenvolvida: uma pessoa ou uma família que tem a memória da fome nunca esquece essa memória. Mesmo que ela não tenha passado fome, essa ameaça é uma coisa presente para essa família, no sentido de que, se ela não passou fome, seus pais podem ter vivenciado essa situação. Eu acho que todos nós, de alguma maneira, conhecemos pessoas que viveram essa situação e que trazem essa memória, por todos os impactos que isso tem nas pessoas subjetivamente. A insegurança alimentar leve é justamente esse medo de voltar a viver essa situação. É sobretudo esse medo, quando ela começa a ver que está ficando cada vez mais perto ou já está numa situação de pobreza que, a qualquer dia, pode jogá-la diante desse quadro. A  insegurança alimentar moderada, que já é o estágio seguinte, é quando as pessoas começam a experimentar situações, que são muito frequentes, que levam, sobretudo, à má alimentação. Para não sentirem a sensação de fome, elas são obrigadas a se alimentar pior, abrem mão de alimentos que sabem que são mais saudáveis. Até chegar a uma situação de insegurança alimentar grave. Isso às vezes são processos muito rápidos: ela já se vê privada de alimentação, seus filhos se veem privados de alimentação... Existem situações meio contínuas de fome.

Eu vi uma entrevista na televisão de uma moça bem magrinha, jovem, numa fila para receber um kit de alimentação, e o repórter pergunta a ela: ‘Mas como é na tua vida o dia a dia?’. E ela respondeu com uma frase forte, mas muito simples: ‘Tem dias que tem e tem dias que não tem’. É essa situação da pessoa que luta a cada dia para buscar alimento em algum lugar, ou situações mais graves, em que a gente vê até pessoas buscando alimentação no lixo. Essa é a situação de fome.

Agora, quando a gente olha os números, há movimentos que eu chamaria de migração. Quando a gente teve a fase, feliz, em que foi se reduzindo a insegurança alimentar grave, e depois a moderada, e chegou-se a uma situação maior de segurança alimentar, a pesquisa era realizada de cinco em cinco anos e a gente via que havia momentos em que a insegurança alimentar grave se reduzia, passava parte dessa população para a insegurança alimentar moderada, leve... Inclusive, de 2004 para 2009, teve uma coisa que eu acho que foi pouco percebida: teve redução da insegurança alimentar grave e moderada, mas teve um crescimento até significativo da insegurança alimentar leve. Porque essas pessoas tinham na memória de forma tão recente a situação de fome que elas tinham vivido, que, na hora de responder ao inquérito, não podiam responder que estavam confiantes que daqui para frente [teriam comida]. Essa confiança só veio se adquirindo depois, quando chega 2013, 2014, e nós temos um maior número de pessoas que acham que não vão viver mais essa situação.

Agora, tem uma coisa que vou te falar só como suposição, que estou querendo, inclusive, pesquisar mais. É sobre o perfil das pessoas que passam fome. Eu acho que existe um componente de uma classe média que margeava já uma situação de quase pobre, que subitamente perdeu as posses, o trabalho. Isso se deu, sobretudo, nos meios urbanos e, se você for colocar nas graduações, ela não passou pela insegurança leve ou moderada, mas de repente se viu sem ter dinheiro para comer, sem experiência sobre como enfrentava a pobreza. Mas isso é preciso ser pesquisado. É um fato recente, com esse crescimento colossal do desemprego, que atingiu também essas camadas, que às vezes não tinham uma poupança, viviam daquilo que estavam recebendo, e se viram também nessa situação. Com esses, talvez, se tivéssemos a capacidade de desagregar [os dados], você veria na própria insegurança alimentar grave pessoas que migraram muito rapidamente para a situação mais aguda.

Leia mais

O mapeamento dos efeitos da pandemia na alimentação e na situação de segurança alimentar no Brasil foi o objetivo de um estudo realizado pelo Grupo de Pesquisa ‘Alimento para justiça: poder, política e desigualdades alimentares na bioeconomia’, da Freie Universität de Berlim, em parceria com as universidades de Brasília (UnB) e Federal de Minas Gerais (UFMG). Os resultados, amplamente divulgados, mostram um cenário preocupante, ainda mais grave do que aquela identificado pela pesquisa da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Rede Penssan), publicizados mais ou menos na mesma época: 59,4% da população brasileira declarou algum nível de insegurança alimentar, sendo 15% em situação de fome. Feita por telefone, a pesquisa retrata os últimos meses de 2020, depois que o auxílio emergencial sofreu sua primeira redução. Nesta entrevista, Eryka Galindo, que faz parte do grupo de pesquisa da Universidade de Berlim, aponta as principais diferenças da fome na cidade e no campo, enumera as políticas que precisam voltar a ser fortalecidas e defende a importância de ações do Estado para superar esse cenário.
Ana Maria Segall é professora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e fez parte do grupo de monitoramento da Rede de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Penssan), que produziu um inquérito sobre a insegurança alimentar no Brasil no contexto da pandemia de Covid-19. Segundo os resultados, quase 117 milhões de brasileiros encontram-se em algum nível de insegurança alimentar e 19 milhões passam fome. Os dados também mostraram que, proporcionalmente, a situação é mais grave nas áreas rurais, embora, num país urbano como o Brasil, o número absoluto de pessoas nesse estado esteja nas cidades. Nesta entrevista, a pesquisadora detalha esse cenário, analisa suas principais causas e mostra que, apesar do impacto da pandemia, a piora vem de antes.
Nas aldeias e nas cidades, população indígena sofre os efeitos da pandemia na segurança alimentar, embora não haja dados para retratar essa realidade
No campo e na cidade, insegurança alimentar cresce no Brasil. Pesquisadores discutem o impacto da pandemia, mas também o cenário que já se desenhava antes da crise sanitária