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‘O governo brasileiro pretende aumentar o desmatamento’

Nesta entrevista, o presidente do Instituto Brasileiro de Proteção Ambiental (Proam), Carlos Bocuhy, fala sobre a proposta do governo brasileiro para a Cúpula do Clima, convocada pelo presidente dos Estados Unidos Joe Biden para debater metas mais robustas para a redução das emissões globais de carbono no bojo do Acordo de Paris.
André Antunes - EPSJV/Fiocruz | 22/04/2021 14h31 - Atualizado em 01/07/2022 09h42

Qual é a relevância dessa cúpula convocada pelo presidente americano e qual a sua avaliação sobre o que foi apresentado como proposta pelo governo brasileiro?

O que a gente está assistindo agora é o retorno dos Estados Unidos ao Acordo de Paris. Durante a gestão [Donald] Trump houve um atraso muito grande na agenda internacional. Na verdade, houve a retirada dos americanos do Acordo de Paris, e com isso houve uma reação dos membros da autoridade europeia, em especial a [chanceler alemã] Angela Merckel e o presidente francês, o [Emanuel] Macron, no sentido de estabelecer uma nova metodologia para discussão climática, mais independente, dos países que têm maior interesse em resolver o problema.

Com o retorno dos americanos ao Acordo de Paris, o [presidente Joe] Biden adota essa metodologia mais ambiciosa e convoca os 40 maiores emissores, e o Brasil é o 5º. O Brasil, em conjunto com outros emissores, compõe um total de 58% das emissões globais.
O que acontece? O Brasil deveria estar inserido na perspectiva de uma meta mais ambiciosa; e o Bolsonaro faz uma proposta ao Biden, manda uma carta elencando vários pontos.

Um dos primeiros pontos que ele cita na carta são os projetos de lei que tramitam na Câmara Federal. Aí ele cita o PL da regularização fundiária e o PL do licenciamento ambiental, que já tem uns 15 anos ou mais que está tramitando. E ele cita isso como uma conquista, um avanço. Mas o que ocorre é que eles são um retrocesso, principalmente para a Amazônia.

O PL do licenciamento ambiental cria facilidades pra obras de infraestrutura, e o Brasil ainda tem projetos de construção de hidrelétricas na região da Amazônia. Isso é um verdadeiro absurdo porque, com as mudanças climáticas, o fluxo de umidade da Amazônia vem mudando, então você tem uma perspectiva de pluviosidade muito menor em termos de volume hídrico pra Amazônia. O que acaba acontecendo é que qualquer obra de infraestrutura que seja construída na Amazônia, como uma barragem, por exemplo, vai funcionar a fio d’água, como outras estão funcionando hoje. As alterações climáticas mudaram a dinâmica. Esse PL do licenciamento ambiental cria facilidades pras obras de infraestrutura, então ele acaba gerando malefícios ambientais, inclusive abrindo a possibilidade  obras em terras indígenas.

No outro PL, de regularização fundiária, ele sinaliza com anistia para grileiros, porque ele permite uma série de facilidades, quem já tem terras e uma quantidade grande pode vender o seu titulo, pode regularizar, ou seja, é um estímulo a uma contínua grilagem. Essa abordagem que o Bolsonaro faz na carta dele, dizendo que as iniciativas legislativas são boas, não é verdade, as iniciativas legislativas são ruins.


E quanto às metas sobre a redução do desmatamento?

O Brasil fez uma pedalada climática, e na questão do desmatamento, o Brasil criou uma verdadeira armadilha, porque ele toma por base o próprio desmatamento que ocorreu na gestão do Bolsonaro, o que implica num cálculo de volume mínimo de desmatamento a ser atingido de 8.700 km² por ano. Isso é 16% a mais do que o Bolsonaro encontrou quando assumiu. Então o governo brasileiro pretende aumentar o desmatamento na meta dele.

E na questão do carbono, o Brasil aumenta sua emissão. Em vez de ser mais ambiciosa, ela aumenta 400 milhões de toneladas de carbono até 2030. Ao mesmo tempo que o Bolsonaro faz o discurso de sustentabilidade, o compromisso que ele coloca no papel, e é isso que vale, não é de sustentabilidade, é de poluição, é de comprometimento das florestas.

Eu acho que essas duas questões, a questão normativa e a questão das propostas do Brasil representam um grande retrocesso. E tem mais uma questão, que é o sistema ambiental brasileiro. Essa é a mais grave, porque ele é a nossa estrutura de contenção de crimes ambientais, e não está funcionando. Nós temos três situações que são muito caras para a política ambiental brasileira. A primeira delas é você ter um sistema de emissão de multa que penaliza, de fato, o infrator, porque são infrações administrativas, e para desestimular o crime ambiental, o que pesa mais é justamente você fazer com que a pessoa sinta o peso pedagógico de pagar uma multa. A segunda questão é o aparato de fiscalização, que tem que ter uma estrutura para chegar no local do crime do desmatamento imediatamente, não dá para você chegar tempos depois, porque a média de abertura de uma clareira é mais ou menos de três a quatro meses, se demorar pra chegar, esse desmatamento vai estar consolidando e ele vai criando um efeito de borda. O efeito de borda é a fragilização da floresta em temos de ecossistema, ela se torna mais frágil, ela interrompe o seu processo de vitalidade ecossistêmica e vai fenecendo, vai perdendo qualidade. Esse é o segundo ponto. O terceiro ponto é o cuidado com as unidades de conservação, e aí fica a cargo do ICMBio. Assim como o Ibama, na fiscalização, tem que ter recurso pra chegar a tempo no local, o ICMBio está nas unidades de conservação e é obrigação dele conter os incêndios florestais; e a sua verba caiu R$ 49 milhões do ano passado para esse, o órgão está praticamente paralisado.

E o Sistema Nacional de Meio Ambiente está depauperado em função de medidas que o governo tomou. No caso das multas, há um decreto de 2019 que cria uma comissão que pode perdoar multas e essa comissão não se reúne. Ou seja, automaticamente, fica tudo engavetado. E uma norma recente cria um sistema em que a multa que o fiscal emite é submetida a uma hierarquia que tem uma ascendência política, então ela pode ser perdoada, pode ser engavetada. O que acabou acontecendo é que o Sistema Nacional do Meio Ambiente ficou congelado. Ao mesmo tempo, há um aumento das agressões ambientais, como mostrou o dado divulgado essa semana do desmatamento de Amazônia. O aumento foi de 216% vezes em relação a março do ano passado. É uma situação de emergência já fora de controle.


Nesse contexto, o que se espera dessa reunião?

Os americanos estão apostando muito em redução de carbono através de inovação tecnológica, tecnologia limpa. Isso é chamado pelos especialistas como infraestrutura para a sustentabilidade. É você ter um sistema que seja voltado pra energias limpas, renováveis, e ter toda uma manutenção dos ecossistemas naturais que permitem um equilíbrio climático, o sequestro de carbono. Nós temos uma janela de tempo para implementar as medidas econômicas necessárias à reversão do aquecimento global. Se nós demorarmos para fazer isso, a conta será tão alta que a humanidade não terá recurso para fazer. Aí tem teses absurdas de geoengenharia, de inserir substâncias químicas na atmosfera, o que já vai pra uma área em que os efeitos colaterais parecem muito fortes.

O que se tem pela frente hoje é essa perspectiva de alteração das estruturas de energia nos diversos países. A China está andando nesse sentido, a Índia está andando nesse sentido, e o Brasil, por sorte, não precisa ter muito esforço nessa linha, porque ele já tem uma matriz hidrelétrica. O esforço maior brasileiro é de conter as emissões, que são emissões de fontes fixas e móveis, que são emissões veiculares e de indústria e, por outro lado, ele tem que combater o desmatamento, manter a floresta em pé. Manter a floresta em pé é metade da nossa lição de casa.


E a proposta brasileira é condicionar a redução do desmatamento ao recebimento de recursos para isso...

O [ministro do Meio Ambiente,  Ricardo] Salles fez uma proposta de 1 bilhão de dólares em 12 meses. Só que esse pessoal tem uma expertise fantástica em termos de verbas para políticas públicas, então uma proposta mal formulada pelo Brasil não passará, porque quem dá o aval final é o próprio Congresso americano. Não é fácil de se conseguir recurso nesse sistema que os americanos estão pensando se você não tiver no papel a política desenhada, com metas.

Dinheiro não resolve tanto, resolve mais é especialização e você ter um sistema normativo, como a questão das multas, em funcionamento. Essa confusão parece que está sendo colocada de uma forma proposital pelo governo, que diz que tem que ter dinheiro para combater [o desmatamento ilegal]. Mas, na verdade, o que não se tem é política, em todos os sentidos, desde o planejamento, desde a gestão. O Brasil tem inclusive desprezado o que já tinha, como o Fundo Amazônia, que era um sistema que funcionava porque é um elemento construído com requisitos de política pública, que envolve estados, municípios, comunidades, e isso faz com que a ação de pouco recurso seja muito eficiente.


O que seriam metas mais ambiciosas que poderiam ser apresentadas pelo governo brasileiro nesse momento?

O governo brasileiro tem que zerar o desmatamento. É possível criar mecanismos para fazer isso. Eu pertenço ao Observatório do Clima, do Poder Judiciário, que foi criado pelo ministro [do STF Luiz] Fux pra sugerir saídas de políticas no sentido de enfrentar o desmatamento na Amazônia. Uma das propostas que nós fizemos é você integrar todo o sistema de informação existente, não só no setor de fiscalização, que é do Ibama, mas também todos os processos que tramitam no âmbito do Ministério Público Federal, dos ministérios públicos estaduais, dos governos, das prefeituras e do Judiciário, isso tudo numa plataforma só. O que significa que você pode saber exatamente o que está acontecendo em termos de procedimento jurídico para contenção do processo de desmatamento, incluindo a reparação do dano ambiental. Porque o grande problema é o seguinte, a gente ouve falar de desmatamento todo dia, mas a gente não ouve falar da recuperação, que é obrigatória por lei. Quem desmatou não só paga multa, mas ele tem que recuperar o que danificou, ele é responsável pelo dano. Se esse sistema estivesse funcionando, nós não só deixaríamos de desmatar, mas nós estaríamos ganhando mais floresta. Se nós não tivermos um sistema voltado para uma plataforma digital que permita essa visibilidade do que ocorre hoje, a gente vai ter dificuldade de compreender o processo e não vai ter como corrigir as políticas públicas, não só integradas, de todos os setores envolvidos, mas até da eficácia do Poder Judiciário. O que se faz juridicamente com tudo isso? Qual foi a eficiência do sistema judiciário para essa recuperação ambiental? Isso é uma meta factível, é possível você reunir isso em plataformas, a tecnologia de informação avançou muito.

Por outro lado, o sistema de fiscalização por satélite, de contenção, isso está já muito bem elaborado, o sistema de mapeamento para você verificar gradualmente quais são as áreas que são mais afetadas, exatamente pra saber onde o sistema de fiscalização tem que atuar de forma mais intensa. E nós temos na Amazônia uma situação que é o arco do desmatamento. O arco do desmatamento deve ser objeto de bases por parte da fiscalização que permitam realmente enfrentar o problema. E aí tem as questões de mineração em terras indígenas, isso tem que ser contido imediatamente, e esse governo não tem sido, de fato, eficiente para isso. Pelo contrário, ele tem sido simpático à mineração, à extração ilegal de madeira e ao desmatamento para ampliação do agronegócio. Tem sido absolutamente tolerante.

O governo tem como base política o setor de degradação. É incrível como o Brasil chegou a um ponto de ilegalidade em que o próprio governo transforma a ilegalidade em sua base política, isso é notório para os casos que a gente está percebendo de facilitações. Quando o Ricardo Salles declarou naquela reunião, vamos mudar a normatização para passar a boiada, ele falou exatamente isso, vamos tirar todas as restrições ambientais.

O que acontece é que o Brasil não só retroagiu da agenda ambiental, como ele desmantelou o sistema de informação à sociedade, de transparência, de participação social. Isso é seríssimo, porque sem esse mecanismo, nenhuma sociedade funciona bem.