Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Demian Melo mostra nesta entrevista que os tempos ditatoriais deixaram vestígios. Além disso, ele marca a diferença entre as noções que vêm sendo utilizadas para se referir àquele período, "ditadura civil-militar" e "empresarial-militar", sendo esta última a nomenclatura que defende como mais adequada. O professor deixa claro ainda que a criação de empresas estatais e o incentivo a monopólios nacionais e internacionais daquele tempo tinham um único objetivo: fortalecer o capital privado, fortalecimento esse escoltado pelo regime ditatorial e às custas de diversas mortes e desaparecimentos, que estão por ser investigados até hoje. E, como ele destaca, essas empresas continuam lucrando e se desenvolvendo no país.
Como podemos caracterizar uma democracia plena? Vivemos isso hoje no Brasil?
A questão do termo democracia deve ser pensada historicamente. Ele passou a ocupar uma posição mais importante no debate político depois do contexto do início dos anos 1960, no qual o debate político mais importante girava em torno do tema da revolução. A questão da revolução tinha tanta legitimidade no debate político, não por acaso os golpistas deram esse nome ao seu ato em abril de 1964, justamente para tentar legitimar o que todos sabemos que foi um golpe de Estado.
Do ponto de vista formal, do que seria um Estado de Direito, com a existência de eleições regulares, o direito à oposição, a gente pode dizer que existiu um processo de transição da ditadura para a democracia no Brasil, que se concluiu no final dos anos 1980. Nesse sentido pode-se dizer que temos hoje um regime democrático, mas é preciso pontuar seus limites. O processo de transição do Brasil da ditadura para a democracia foi o mais longo, se formos comparar com o restante da América Latina. E ele se concluiu no momento em que a democracia no vocabulário internacional se reduzia a um procedimento de escolha dos governantes, e isso talvez seja o ponto mais importante. Deve-se comparar com como a questão aparecia imediatamente após a Segunda Guerra Mundial, quando a definição de democracia estava ligada à existência de direitos. Não só direitos civis e políticos, mas também sociais, como parte da experiência democrática. Com o processo de hegemonia do neoliberalismo, a partir dos anos 1980 e especialmente nos 1990, ganhou força uma concepção de democracia na qual os direitos sociais são apenas um detalhe. E para alguns defensores desse ideário, os direitos sociais passariam a ser apresentados praticamente como um "ataque à democracia", principalmente para aqueles partidários de um visão neoliberal hardcore, como, por exemplo, o o Instituto Millenium hoje.
Nestes termos minimalistas do que seria um regime democrático, a gente pode dizer que sim, nós temos isso no Brasil. Em suma, se consolidou no Brasil um regime liberal, e pensando em uma duração mais longa do que tem sido a história do Brasil desde a independência até hoje, nunca se viveu com tanta estabilidade esse regime. Entretanto, de junho para cá, nós temos um cenário um pouco distinto. Temos que ver até que ponto estas manifestações têm afetado a base desse regime, já que indiscutivelmente tem havido um recrudescimento do aparelho repressivo do Estado, dos dispositivos repressivos, o que não é um fenômeno apenas brasileiro, mas internacional. E não é por acaso que autores importantes como David Harvey têm caracterizado esses regimes liberais representativos atuais como democracias totalitárias .
Por que você defende que se deve chamar esse período de ditadura empresarial militar em vez de "civil"-militar?
O termo civil se presta a algumas confusões. Esse termo apareceu pela primeira vez em um trabalho do professor René Armand Dreifuss, um trabalho que considero até hoje o mais relevante para entender o que foi o golpe 1964 e o próprio sentido da ditadura, no sentido de criação de uma ordem empresarial, que dá nome, inclusive, ao título original de sua tese de doutorado (State, class and the organic elite: the formation of the entrepreneurial order in Brazil, 1961-1965, publicado no Brasil em 1981 com o título de 1964 - a conquista do Estado). Ele foi o primeiro a usar essa ideia de civil-militar para destacar a participação desses civis no processo. Mas esses "civis" no texto do Dreifuss são os capitalistas e seus "tecno-empresários", e por isso ele também cita a questão a partir do termo "empresarial-militar", que considero mais preciso. Quando eu também proponho o uso deste termo estou me referindo diretamente ao texto dele.
Por que o termo civil pode ser prestar a confusões e tem se prestado a confusões na historiografia? Atualmente, o termo civil-militar tem sido usado para tentar dizer que houve uma colaboração da "sociedade" na construção da ditadura. E a sociedade aparece como aqui como uma coisa homogênea, reificada mesmo, como se fosse uma coisa que colaborou com a ditadura, o que é uma visão eminentemente mistificadora. O que realmente tivemos em 1964 e ao longo da ditadura foi uma parcela da sociedade brasileira que foi sim colaboradora, e isso é inegável, porque uma ditadura em um país como o Brasil, com a complexidade e dimensões continentais, não existiria por mais de 20 anos sem apoio. Mas não é isso que dá o sentido histórico da ditadura, o que faz sentido é pensar quem foi que ganhou, e a quem ela serviu.
Essa ideia de civil-militar também incorpora uma ideologia corporativa dos próprios militares. São eles que têm uma visão, que é próprio de sua corporação, que separa o mundo entre eles (militares) e os "civis". Só que civis são todos os que não são militares, desde o empresário ao motorista de ônibus, os profissionais liberais ao operário metalúrgico, ou seja, é um termo muito genérico que não define nada nas propostas historiográficas mais recentes. No trabalho do Dreifuss, ao contrário, ele tinha uma concretude, pois estava se referindo a um sentido de classe do golpe. Nesta literatura mais recente, que tem usado bastante o termo, se apaga a dimensão de classe do processo e se tem usado o termo civil para significar a sociedade de uma maneira genérica. Isso é um retrocesso no ponto de vista do conhecimento, porque o termo civil no trabalho do Dreifuss que serve para esclarecer a participação da burguesia no Golpe e, inclusive na condução da Ditadura, - já que os principais postos estratégicos na área de planejamento e economia foram ocupados por estes "civis" e seus representantes diretos - aparecem agora a partir dessa ideia de que "a sociedade apoiou e aceitou a ditadura". Com esse tipo de construção, certamente mistificador, fica difícil saber contra quem essa ditadura foi feita.
Qual foi a relação entre os governos militares, os grandes grupos econômicos internacionais e o "milagre econômico"?
O "milagre econômico" foi o grande projeto que a Ditadura conseguiu implementar, um processo de aceleração da acumulação capitalista que atendeu aos interesses dos grandes monopólios do capitalismo internacional que estavam instalados no Brasil, que conseguiram lucros faraônicos, mas também dos grandes grupos privados nacionais que se fortaleceram naquele processo. Podemos dizer que a ditadura militar foi um grande negócio para o grande capital. Em síntese, além do capital mais internacionalizado que o Dreifuss chamou de multinacional associado, a gente pode pensar, por exemplo, no setor de bens de produção duráveis, a indústria automobilística, que foi o carro-chefe do desenvolvimento econômico desde o período de JK. Temos também a criação de grandes grupos bancários nacionais, como o Itaú e o Bradesco, que são hoje os maiores grupos privados nacionais, além das grandes empreiteiras Odebrecht, Camargo Correa, OAS, que hoje, inclusive, operam numa dimensão muito além das obras públicas, já operam controlando outros setores da economia. São todos "entulhos da ditadura", se pudermos tomar emprestado essa expressão, que geralmente é associada apenas aos aspectos discricionários daqueles tempos.
A ditadura, além de abrir para o capital estrangeiro, produziu uma racionalização econômica. O setor automobilístico, de acordo com o plano da ditadura, era para ser explorado pelo capital privado, e o Brasil tinha uma Fábrica Nacional de Motores do período Vargas. Nesse ramo a ditadura fez uma desnacionalização, uma "privatização" e entregou a FNM para um monopólio privado internacional, que é a Alfa Romeo. Ao mesmo tempo, criou uma legislação que dava proteção às empreiteiras, criando as condições para o surgimento (ou fortalecimento) dos grandes grupos privados a que já me referi. Isso não porque havia "nacionalismo econômico", mas porque a ditadura operou esse tipo de racionalização dos ramos econômicos: o capital privado nacional vai operar em tal setor e o internacional em outro setor. Esses são alguns dados, mas ainda há muito a se pesquisar nesse tema. Por isso nasceu, em meados do ano passado, um grupo interdisciplinar de pesquisadores aqui do Rio de Janeiro, que se articularam para empreender uma pesquisa coletiva para desvendar as relações entre esses grandes grupos econômicos e o Estado brasileiro, de 1962 até o presente. Estou integrado nessa pesquisa e, sintomaticamente, batizamos o coletivo de "Mais Verdade", numa referência às mobilizações desencadeadas pela instalação da Comissão Nacional da Verdade.
Mas voltando ao tema do desenvolvimento econômico na ditadura: o "milagre econômico", em primeiro lugar, foi o resultado da forma como o Brasil saiu da crise econômica que se instalou no contexto do Governo Jango. A partir de 1962, se iniciou um processo recessivo na economia brasileira e, quando acontece uma crise cíclica daquela magnitude, ao grande capital sempre é necessário aumentar a taxa de exploração dos trabalhadores. Derrotar o vigoroso movimento operário e popular, assim, foi uma necessidade para a recuperação das condições da acumulação capitalista. E nesse sentido a ditadura foi muito eficiente, porque ela decapitou toda a liderança combativa do movimento operário e popular, fazendo um expurgo no aparelho sindical. Além disso, implementou a primeira medida de flexibilização trabalhista no setor privado, com a lei do FGTS, que acabou com a estabilidade por tempo de serviço, o que até então era um direito, criando alta rotatividade no mercado de trabalho e, por conseguinte, contribuindo para a recuperação da taxa de lucro. Isso se deu também num ambiente internacional favorável por conta da disponibilidade de crédito, num ambiente que no início dos anos 1970 vai se modificar com a crise, mas nos anos 1960 o cenário ainda era alvissareiro. Não por acaso a fonte de crescimento econômico, que foi o financiamento externo, gerou o crescimento da dívida pública brasileira nos anos 1970, e nos anos 1980 produziu aquilo que conhecemos como "década perdida". Ao mesmo tempo, o Estado entrava como "empresário", viabilizando o ciclo industrial com a criação de grandes estatais em ramos que não interessavam ao capital privado (nem nacional, nem estrangeiro), mas que eram fundamentais para o processo de acumulação capitalista. Na base de tudo, muita exploração dos trabalhadores.
Aqueles não foram "anos de ouro pra muita gente", como pretende uma parte da historiografia que tenho chamado de revisionista, mas certamente de ouro para a burguesia e parcelas das camadas médias, como muito bem explicou o professor Francisco de Oliveira em seu ensaio Crítica à razão dualista, de 1972. Isso porque aquele modelo abriu possibilidade de ascensão social para alguns setores da classe média, tanto no setor privado quanto nas estatais. Mas não é possível perder de vista que isso foi garantido com o aumento exponencial da exploração dos trabalhadores, e não é por acaso que, mais uma vez, esta parcela da sociedade é a mais penalizada quando o modelo da ditadura, o "milagre", entra em crise.
Quais são as semelhanças e as diferenças do que estamos vivendo agora?
É interessante analisar a importância que este passado tem em nosso presente, e como aquele passado estrutura nosso horizonte de expectativas hoje. Como foi uma ditadura brutal, que também favoreceu grandes monopólios privados e operou com um aparelho de repressão muito violento, a comparação é inevitável. Quando vemos hoje grandes grupos privados se beneficiando destes megaempreendimentos feitos na base de muita repressão e do recrudescimento dos próprios dispositivos discrionários do Estado brasileiro, a gente faz inevitavelmente a comparação com a ditadura.
Por outro lado, é importante localizar o que existe de diferenças. Não existe uma estrutura sistemática de desaparecimento de pessoas por motivos políticos como havia naquele tempo, embora haja casos preocupantes, como o recente em São Paulo, em que a polícia usou bala de verdade para atingir um manifestante. Mas é preciso não esquecer que na época da ditadura as pessoas eram assassinadas em via pública. Tem uma diferença e é importante localizá-la.
Pessoas continuam sendo assassinadas em via pública, mas elas ficam em lugares ditos invisíveis, como as favelas, por exemplo...
Mas é preciso fazer uma distinção desta violência, que é a violência da repressão política, para essa que é a histórica violência do Estado contra as camadas mais pauperizadas da classe trabalhadora. O Brasil teve três séculos de escravidão. A tortura não foi certamente uma invenção da ditadura, mas ela inventou a tortura científica, com médicos para não deixar evidências ou não deixar que o preso político morresse, não por nenhum humanitarismo, mas para que pudesse dar mais informações. Por outro lado, a gente vê no caso do Amarildo um procedimento típico da ditadura. Ele foi levado para dependências do Estado, torturado, morto e desaparecido. É importante localizar que não é um crime político em sentido restrito, porque ele não era um militante político, sem querer relativizar a brutalidade do que aconteceu com ele. Casos como esse são inaceitáveis com qualquer pessoa, a pessoa não pode morrer nas mãos do Estado desse jeito. Mas a gente vê os mesmos dispositivos: ele foi submetido a choques elétricos, entre outras coisas. Essas estruturas não foram desmontadas porque a ditadura militar brasileira não foi derrubada, ao contrário das outras experiências históricas; e não seria exagerado dizer que seus agentes conseguiram conduzir o processo de transição para o atual regime democrático-representativo, por isso tantas continuidades.
Quais foram os outros resquícios? Temos a manutenção de muitos outros modelos como a polícia militarizada...
A militarização da segurança pública é resultado da ditadura. É verdade que a Polícia Militar foi criada ainda no século 19, mas a militarização da segurança pública é um resquício da última ditadura e é preciso não perder isso de vista. Mas temos outros entulhos da ditadura que precisam ser arrolados, como o monopólio no setor de comunicação no Brasil. Podemos dizer hoje que temos esses dois entulhos autoritários: um é a polícia militar e outro é a Globo, que é um filhote da ditadura. O jornal O Globo e a rádio Globo já existiam, mas na época - por conta de ter sido a capital do país durante dois séculos - havia 20 jornais diários de circulação no Rio de Janeiro, por exemplo. Ao contrário do que hoje se imagina, o jornal que tinha maior impacto nacional era o Correio da Manhã, que era o maior do país, e o próprio Jornal do Brasil era muito maior do que O Globo. Dezenas de jornais faliram durante a ditadura, enquanto outros, que colaboraram e lhe deram suporte, tornaram-se monopólios. E assim também foi se criando esse monopólio das Organizações Globo na imprensa escrita e, ao mesmo tempo, a Rede Globo, em 1965. Como se observa, a ditadura foi um grande negócio para ela. No período anterior ao golpe, obviamente o Brasil era um país capitalista - para alguns desde a chegada dos portugueses-, então nesse plano mais abstrato isso não foi certamente criação da ditadura, contudo ela operou o processo de consolidação do capitalismo monopolista no Brasil ao ter operado no fortalecimento dos grandes grupos privados, tanto nacionais quanto estrangeiros e multi-associados - muitos dos quais se fortaleceriam posteriormente nos anos 1990 com o processo de privatização. Nesse sentido, como também aponta Francisco de Oliveira, essa é a semelhança mais pronunciada com o fascismo, "que no fundo é uma combinação de expansão econômica e repressão", como escreveu na citada crítica. O regime democrático que existia antes de 1964, que era do ponto de vista democrático muito limitado - o PCB tornou-se ilegal já em 1947, então não houve liberdades democráticas plenas pelo menos até o governo JK, e os direitos sociais não chegaram no campo-, estava baseado na possibilidade de interpelação das mobilizações populares em relação ao poder, o que é bem diferente do regime democrático vigente no Brasil de hoje, e mais uma vez seria importante colocar essa questão em perspectiva internacional, pois não é uma particularidade nossa. No segundo ano do governo do João Goulart (1962), a economia brasileira entrou em recessão e foi um período também de muita mobilização, de muita luta social, a partir daquilo que o Marcelo Badaró Mattos chama de último grande ciclo ascendente de greves. Nesse período, apesar da crise geral, que também era política, os trabalhadores conquistaram direitos, como o 13º salário, que era uma luta para a aprovação de uma lei parada no Congresso há uma década. Esse foi um momento em que a forma de fazer política, independente do juízo que a gente possa fazer ao João Goulart, passava por essa forma de interpelar pelo clamor das ruas. Para alguns autores, para resolver o tipo de problema que a acumulação capitalista possuía no início dos anos 1960, jogando a conta nas costas dos trabalhadores, seria necessário um regime de força.
Como você analisa a questão da criação das empresas estatais? Isso não contradiz o apoio às empresas privadas daquela época?
Na verdade, as empresas estatais no interior daquela lógica desenvolvimentista de acumulação capitalista representavam um padrão diferente do neoliberal. As empresas foram criadas em certos setores da economia, em que o capital privado que precisa de um lucro mais rápido não se interessava, mas são funcionais à reprodução global da lógica do sistema, e não em indústrias de base como, por exemplo, a Embraer. Hoje está na mão do setor privado e na época não tinha interesse do setor privado, mas era funcional para o desenvolvimento do capitalismo brasileiro de então. Naquele período, a participação do Estado na economia se dava em função de criar as condições e o ambiente necessários para a valorização do grande capital monopolista, mas o crescimento do setor estatal não se fez em detrimento do privado, ele se fez para construir as condições do desenvolvimento desse setor privado. Mas, ainda neste setor privado, os mais frágeis, os menores, também quebraram, por isso aquele foi um período de grande concentração e centralização de capital.
Por que temos países como o Chile e Argentina, que já abriram seus arquivos, já reconheceram os erros cometidos na ditadura, e o Brasil ainda não?
Isso tem a ver com a forma como essas sociedades transitaram das suas ditaduras para as democracias. Uma comparação interessante é com a Argentina. Lá a ditadura acabou porque os militares jogaram uma cartada nacionalista muito alta, que foi a Guerra das Malvinas, na qual foram derrotados. No mesmo dia em que a Argentina se rendeu à Inglaterra, o general Galtieri [Leopoldo Fortunato Galtieri Castell - 1981-1982] renunciou. E daí se tem um processo de 18 meses para entrega do poder aos civis com a eleição do presidente Alfosín [Raúl Alfonsín - 1983 -1989]. A ditadura da Argentina foi derrotada e, não por acaso, já com Alfosín, imediatamente depois da queda, houve julgamentos, os militares foram presos. Isso não é só em decorrência do nível de violência que a ditadura da Argentina teve, em comparação com a brasileira, mas também a forma como ela acabou. O grande movimento popular em combate à ditadura no Brasil foi a campanha das Diretas Já, que foi em 1984, e o movimento foi derrotado. Ele precisava do apoio do parlamento que ainda era fruto da ditadura, tinha senador biônico etc... E culmina com a transferência para o poder de um presidente civil naquele drama do Tancredo que morre, e quem assume a presidência da república é o Sarney, que ainda pouco era o líder do partido da ditadura [Arena]. É uma saída da ditadura mais pactuada, o que não quer dizer que não houve muita luta política, luta social com a emergência dos movimentos sociais desde os operários do ABC paulista, os bancários de Porto Alegre, ou os professores da rede pública no Rio de Janeiro, mas estes não foram capazes de derrotar a ditadura. É por isso que os chamados mecanismos da justiça de transição aqui são mais atrasados. Só agora temos algo como uma Comissão Nacional da Verdade, mas é preciso lembrar que já nos anos 1990 apareceu a Comissão de Anistia, que é outro mecanismo da Justiça de Transição.
E esse ponto é importante também, porque tem autores que têm defendido a tese revisionista de que a ditadura brasileira acabou em 1979, a partir de critérios absolutamente formais, que é a promulgação da primeira Lei da Anistia, o fim dos Atos Institucionais no ano anterior e a permissão da volta dos exilados. Mas será que eram loucos aqueles lutavam contra a ditadura em 1984 na campanha das Diretas se ela já havia acabado? Há teses normalizadoras ainda piores que têm circulado, em que a ditadura só começou com o AI-5. Nessa visão, a marcha dos 100 mil em 1968 só pode ter sido um "delírio coletivo"!... Já temos materiais didáticos que pontuam o fim da ditadura em 1979. Isso é uma disputa pela memória que tem óbvias implicações políticas no presente e tem gente falando e comprando isso sem problematizar.
Podemos dizer então que o fim da ditadura brasileira se deu por que não interessava mais aos grandes capitalistas, às grandes corporações?
Acredito que tenha um pouco disso também, mas é um fenômeno complexo. Em primeiro lugar uma ditadura tem alto custo político. E, por outro lado, é importante lembrar que o regime ditatorial não era um regime fascista. E dizer isso não é para embelezar a ditadura, é porque ela nunca se apresentou, pelo menos o grupo que conduziu e deu sentido a ela, como um regime que deveria se perpetuar eternamente, diferentemente do fascismo. O fascismo é contra a democracia e o liberalismo. Todos os presidentes militares prometerem fazer do Brasil uma democracia. Uma democracia muito diferente daquele modelo que eu penso como melhor, do que você pensa, do que nós pensamos do que deva ser a democracia. E podemos dizer que tem uma dose de cinismo nesse negócio dos militares sempre falarem que o objetivo é fazer uma "operação limpeza" de depois reestabelecer a democracia, mas, ao mesmo tempo, também reflete o prestígio que a idéia de democracia adquiriu no mundo ocidental após o fim da Segunda Guerra Mundial, no qual a ideia de democracia passa a ser compartilhado, inclusive, pela direita, que passa a usá-la como argumento para combater o comunismo. Isso num plano mais geral. Outra coisa é que o regime ditatorial, embora tenha tido uma relação dinâmica com o imperialismo estadunidense ao longo do tempo, não poderia se sustentar por muito tempo sem o apoio de Washington, e é preciso considerar que a partir de certa etapa a ditadura brasileira foi vista como um problema. Em síntese, se em 1964 ela se fez necessária para garantir a acumulação capitalista, a partir de certo momento era um certo inconveniente para a política de direitos humanos do governo Carter, que foi uma mudança conjuntural na forma de hegemonia do imperialismo estadunidense.