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Futuro incerto

Especialistas discutem medidas econômicas, sanitárias e educacionais que precisam ser aplicadas para que o fim do isolamento social no país seja realizado com o menor risco possível para a população
André Antunes - EPSJV/Fiocruz | 30/07/2020 12h52 - Atualizado em 01/07/2022 09h42

No momento em que esta reportagem é escrita, a questão da pertinência ou não da flexibilização do isolamento social adotado como estratégia de enfrentamento da Covid-19 no país mobiliza governos, especialistas da área da saúde e representantes dos mais variados setores econômicos, que pressionam pela reabertura do comércio e indústria. Mas se os dados epidemiológicos indicam que o Brasil não atravessou ainda o pior da pandemia, que se espalha pelo interior do país, o fato é que, neste momento, a balança começa a pesar para o lado daqueles que defendem o fim do isolamento social. Nesse contexto, há questões sanitárias e também educacionais que devem ser levadas em conta para que um processo de flexibilização se dê com a segurança necessária para a população. No plano econômico, a ampliação do período de vigência do auxílio emergencial de R$ 600 aos trabalhadores informais, anunciado no final de junho, é uma medida fundamental para mitigar os efeitos da pandemia sobre os trabalhadores mais pobres, principalmente tendo em vista que a retomada das atividades econômicas, segundo economistas ouvidos pela Poli não deve acontecer no curto prazo.  Mas não pode ser a única.

Como garantir emprego e renda em meio à crise?

Andrea Rego BarrosOs argumentos de ordem econômica são centrais no discurso a favor da flexibilização do isolamento social. Pudera: desde antes da chegada da pandemia, os indicadores apontavam um quadro bastante adverso por aqui, com um mercado de trabalho com altos índices de desemprego e informalidade. No final de junho, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgou os números da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD) Contínua relativos ao segundo trimestre de 2020, encerrado em maio, revelando os primeiros indicadores do impacto da pandemia sobre o mercado de trabalho. O percentual de pessoas ocupadas na população em idade de trabalhar caiu para apenas 49,5%, o menor nível desde 2012; o desemprego registrado foi de 12,9%, ante 11,6% registrado no trimestre anterior, sendo que o número de desalentados – aqueles que desistiram de procurar um emprego – saltou 15% em relação aos primeiros três meses do ano, chegando a 5,4 milhões de pessoas, mais um recorde na série. 
 

"Tivemos um grande número de pessoas na informalidade que foram beneficiadas pelo auxílio emergencial de R$ 600. Ampliar a vigência desse auxílio é fundamental, mas é um paliativo"
Marcelo Manzano

E o que já é muito ruim promete ficar ainda pior nos próximos meses, avalia o professor do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho da Universidade Estadual de Campinas (Cesit/Unicamp) Marcelo Manzano, para quem os dados do IBGE não revelam o quadro todo. “Tivemos um grande número de pessoas na informalidade que foram beneficiadas pelo auxílio emergencial de R$ 600. Ampliar a vigência desse auxílio é fundamental, mas é um paliativo. A tendência é que, assim que ele acabe, haja um grande aumento da taxa de desemprego, porque essas pessoas vão voltar para o mercado de trabalho sem nenhuma ocupação e sem nenhuma renda”, diz Manzano, e completa: “Mas claro que esses problemas podem ser mitigados, à medida que o governo atue de forma mais incisiva”. Ele lembra que o governo federal chegou a criar uma linha de crédito de R$ 40 bilhões para que pequenas e médias empresas mantivessem suas folhas de pagamento durante a pandemia, mas apenas cerca de 10% dos recursos foram utilizados. “Pelo programa, o Tesouro Nacional oferece 85% dos recursos como garantia e os bancos têm que entrar com os outros 15%. Mas a probabilidade de inadimplência é muito elevada porque as empresas estão perto da falência, então os bancos não querem se comprometer nem com os 15%”, avalia Manzano, para quem uma medida de curto prazo para socorrer essas empresas nesse período seria a ampliação das garantias para 100% dos recursos do Tesouro Nacional. “Foi o que fez o governo dos Estados Unidos na pandemia. Seria uma medida bem concreta e imediata que se poderia tomar”, defende, argumentando que é fundamental que o Estado utilize o gasto público como motor para retirar a economia da crise.  “Ou se usa o Estado para recuperar a atividade econômica, ou não haverá saída” alerta. 

Ele cita também o exemplo da Alemanha, que ainda em março anunciou um programa de gastos públicos da ordem de 750 bilhões de euros. “Todas as crianças alemãs receberam, cada uma, 300 euros por mês para enfrentar esse momento. O programa previa também apoio às empresas de diferentes tamanhos para que elas tivessem fôlego nesse processo de retomada”, detalha Manzano. E completa: “O Estado alemão sempre foi muito zeloso de seu equilíbrio fiscal, mas está falando com todas as letras que não é hora de se preocupar com austeridade. E é isso que me preocupa no caso brasileiro”.

Mais gastos com sistema de proteção social

É na ampliação do gasto público com os sistemas de proteção social durante e após a pandemia como uma medida essencial para mitigação dos efeitos da crise que aposta a economista Lena Lavinas. Professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e membro do Instituto de Estudos Avançados de Princeton, nos Estados Unidos, Lena defende que a pandemia precisa servir de oportunidade para promover mudanças estruturais nos mecanismos criados pela Constituição de 1988, e propõe que a discussão não fique limitada à criação de formas de transferência de renda como a que está em curso. “É claro que foi muito importante se conseguir essa renda emergencial de R$ 600, mas a pergunta é: por que através de mecanismos temporários e não do aperfeiçoamento da institucionalidade do nosso sistema de proteção social?”, questiona. Ela ressalta que, em dezembro de 2019, o Banco Mundial apontou que 25% da população brasileira vivia abaixo da linha de pobreza estipulada pela instituição, ou seja, com uma renda de menos de 5,5 dólares por dia. “Também em dezembro havia mais de 1 milhão de famílias na fila esperando para serem contempladas pelo Bolsa Família. Tivemos um aumento da pobreza sem que o benefício de proteção social para os pobres do Bolsa Família tivesse expandido e alcançado essas pessoas”, defende Lena. Ela completa com os dados do seguro-desemprego no país, que em dezembro chegavam a apenas 550 mil dos 12 milhões de desempregados no país. “Ora, vamos mudar as regras do seguro desemprego, porque assim elas estarão vigentes posteriormente; vamos ampliar, mudar os critérios de acessibilidade do Bolsa Família, expandir a cobertura, elevar a linha de pobreza, que é extremamente baixa, e vamos, sobretudo, elevar o benefício. E vamos manter assim no período pós-pandemia porque sabemos que ele será longo, até porque a nossa economia vinha se recuperando com extrema dificuldade”, alerta.

Andréa Rego Barros/PCRPara o economista e professor da Universidade Federal Fluminense (UFF) Fabio Waltenberg, a pandemia ajudou a dinamizar o debate econômico no país, reforçando a importância do papel do Estado na economia. Exemplo disso, segundo ele, é o impulso que ganhou o debate sobre a renda básica. É uma discussão que não é nova. O Brasil inclusive tem, desde 2004, uma lei instituindo uma renda básica de cidadania, que prevê o pagamento de um benefício monetário a todos os brasileiros residentes no país, não importando sua condição econômica. “Esse tema ficou adormecido durante muito tempo e agora economistas de todo o espectro político estão falando do assunto, o que eu acho positivo. Mas não sei se renda básica significa a mesma coisa para todos”, afirma Waltenberg, complementando: “Eu entendo como um pagamento periódico, em geral, mensal, que seja incondicional, universal, e calculado individualmente”. Ainda assim, ele considera que o debate está se movendo em uma direção “benéfica”. “Que é a ideia de que não faz mais sentido uma focalização tão restrita quanto a do Bolsa Família”, afirma o economista. Segundo ele, há propostas interessantes nesse sentido, como a desenvolvida por técnicos do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), que preveem o pagamento de um benefício para todas as crianças brasileiras. “É uma proposta interessante, ainda que não seja efetivamente universal. Eu entendo que não é um problema tão grave, em um primeiro momento, não falar em uma política universal. Se a gente consegue com esse movimento caminhar no sentido de ampliar, de 50 para 80 milhões de pessoas o número de beneficiários de um programa como o Bolsa Família, ainda não é universal, mas caminhou nesse sentido. Se o valor médio passa de R$ 200 para R$ 600, R$ 800, o que quer que seja, também é uma evolução”, afirma Waltenberg. Para isso, diz o economista, será necessário mexer na regressiva estrutura tributária brasileira, que penaliza desproporcionalmente mais aqueles com menor renda e patrimônio. Para Waltenberg, há indícios, principalmente do legislativo, de que esse debate também ganha corpo a partir dos efeitos da pandemia sobre a economia. 

Na nota técnica ‘Como financiar as políticas de estímulo e auxílio à economia brasileira no contexto da crise do coronavírus?’, o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) defende posição semelhante como medida de médio e longo prazo para mitigar os efeitos da crise. E cita algumas formas de tributação com alto potencial arrecadatório, que poderiam ser usadas para financiar políticas de manutenção do emprego e da renda. Uma das principais é o Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF): segundo o Dieese, caso fosse instituída a cobrança de uma alíquota de 5% adicional sobre o imposto de renda do 1% dos declarantes com renda mensal igual ou superior a R$ 60 mil – cerca de 320 mil pessoas, que detinham um patrimônio de bens e direitos da ordem de R$ 2,7 trilhões – seriam arrecadados R$ 29 bilhões por ano. Se ainda por cima fosse criado um imposto progressivo sobre seu patrimônio, esse valor seria acrescido de outros R$ 80 bilhões – no caso de uma alíquota média de 2,5% - chegando a até R$ 312 bilhões – no caso de uma alíquota média de 10%.

Mas também há medidas de mais curto prazo que poderiam ser adotadas para enfrentar a crise agravada pela pandemia, segundo o Dieese. Uma delas seriam os chamados empréstimos compulsórios, instrumentos que, assim como o Imposto sobre Grandes Fortunas, estão previstos na Constituição de 1988, mas nunca foram regulamentados. Isso pode mudar por conta da crise do coronavírus, caso seja aprovado o Projeto de Lei Complementar 34/2020, de autoria do deputado Wellington Roberto (PL-PB), que tem como objeto a instituição de “empréstimo compulsório para atender às despesas urgentes da situação de calamidade pública relacionada ao coronavírus”. O projeto prevê a cobrança de um empréstimo compulsório de até 10% do lucro líquido registrado nos últimos 12 meses das empresas domiciliadas no país com um patrimônio líquido igual ou superior a R$ 1 bilhão, cuja restituição pelo governo ocorrerá em até quatro anos a contar do fim da situação de calamidade pública.

Educação: como retomar as aulas presenciais?

As escolas são um foco de preocupação em meio às discussões sobre o fim gradual do isolamento social. Como destaca o documento de diretrizes da Confederação Nacional dos Trabalhadores da Educação (CNTE) para um eventual retorno das aulas presenciais, transitam pelas escolas do país nada menos do que 55 milhões de pessoas, ou 25% da população do país, entre estudantes, professores e demais trabalhadores nas redes pública e privada, o que faz delas um dos espaços de maior risco de proliferação da Covid-19.

No Brasil ainda há muitas incertezas sobre como e quando serão retomadas as aulas presenciais, ainda que governos federal, estaduais e municipais comecem a se movimentar para apresentar seus planos de retorno

Nesse sentido, são vários os exemplos de medidas adotadas nos países que retomaram as aulas presenciais após a paralisação por conta da pandemia. Na China, por exemplo, as aulas presenciais começaram a ser retomadas gradualmente em maio, começando pelos estudantes do ensino médio. Para isso foram realizadas mudanças na infraestrutura das escolas, com a instalação de tendas de desinfecção pelas quais os estudantes precisam passar antes de entrar, e instalação de divisórias de plástico nos refeitórios, por exemplo. Além da inspeção diária da temperatura, os protocolos previam ainda a proibição de aglomerações, o uso de máscaras em todos os espaços da escola e a manutenção de uma distância mínima de um metro entre os estudantes. Na França, as diretrizes para o retorno às aulas incluíam a obrigatoriedade de manter as janelas abertas, manutenção do distanciamento social entre estudantes e professores, garantido por marcações no chão feitas na sala de aula, e a definição de um número máximo de alunos por turma. Em vários países, como Israel, Nova Zelândia e Finlândia, houve a implementação de horários de aulas e intervalos diferenciados para cada grupo de estudantes. Em Portugal, o retorno também foi gradual, a partir de maio, começando pelo ensino médio, cujos alunos foram orientados a usar máscaras e a lavar as mãos ao entrar e sair da escola; também houve a reorganização dos espaços e horários para garantir o distanciamento. Para isso foram utilizados espaços como ginásios e teatros para aulas. No plano pedagógico, a adoção do chamado ensino híbrido, dividido entre aulas presenciais e online, foi uma opção adotada por países como Austrália, África do Sul e Coreia do Sul. 

PixabayNo Brasil ainda há muitas incertezas sobre como e quando serão retomadas as aulas presenciais, ainda que governos federal, estaduais e municipais comecem a se movimentar para apresentar seus planos de retorno. No dia 1º de julho, o Ministério da Educação (MEC) divulgou um ‘Protocolo de biossegurança para retorno das atividades nas Instituições Federais de Ensino’, ainda sem um cronograma de retorno. Recomendando que cada instituição crie uma comissão para definição de protocolos próprios, que leve em conta a análise dos dados epidemiológicos do estado e município, o MEC enumera uma série de diretrizes para a reabertura, que contempla, além de medidas individuais como o uso de máscaras, higienização das mãos e respeito ao distanciamento social de 1,5 metro, recomendações para que as instituições adotem o trabalho remoto no caso dos trabalhadores do grupo de risco, bem como priorizem a utilização de Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) para realização de reuniões e eventos à distância. O documento traz ainda recomendações específicas à conduta que deve ser adotada nos laboratórios das instituições, onde devem ser utilizadas, além das máscaras, toucas descartáveis cobrindo todo o cabelo e orelha, além de jaleco; o MEC recomenda ainda que sejam disponibilizados tapetes com hipoclorito na entrada, onde deve também ser realizada a aferição da temperatura de quem entra nos locais, que por sua vez devem ser limpos a cada duas horas. O protocolo orienta ainda as instituições da rede federal a considerar atividades laborais ou de ensino à distância no caso de trabalhadores e alunos acima de 60 anos, portadores de doenças crônicas, como hipertensão e diabetes, gestantes e lactantes, que estejam em tratamento com imunosupressores ou oncológicos e também aqueles responsáveis pelo cuidado de pessoas com suspeita ou confirmação de diagnóstico de Covid-19 ou vulneráveis a doença. Outra diretriz é que as instituições realizem o monitoramento dos trabalhadores e alunos para sintomas da Covid-19, com relatórios de situação quinzenais. O protocolo recomenda, por fim, que os laboratórios de informática das instituições sejam disponibilizados aos estudantes que não possuem acesso à internet ou computadores, que sejam fornecidas aulas e materiais de apoio nos ambientes virtuais de ensino e que sejam disponibilizados outros meios para o acesso aos conteúdos educacionais.

Entre os estados, o mais avançado nessa discussão é São Paulo, onde o governador João Dória apresentou, no final de junho, um breve documento com diretrizes para o retorno às aulas nas escolas públicas e privadas, marcado inicialmente para o dia 8 de setembro. O cronograma da reabertura está condicionado às fases de flexibilização do chamado Plano São Paulo, de retomada da economia no estado. Segundo o governo, isso só acontecerá se 100% dos Departamentos Regionais de Saúde do estado permanecerem por 28 dias no que o governo chama de fase 3 – a terceira menos restritiva segundo critérios de capacidade hospitalar e progressão da pandemia. Nesse primeiro momento, devem retornar no máximo 35% dos alunos em cada unidade escolar, da educação infantil ao ensino superior, mantendo distanciamento de 1,5 metro – inclusive nas aulas de educação física – e com revezamento dos estudantes por dia. Caso uma região regrida na classificação, as aulas serão suspensas ali.

O governo paulista também recomenda a adoção do ensino remoto combinado com o retorno gradual das atividades presenciais; a organização de horários de entrada e saída de modo a evitar aglomerações, bem como dos horários de recreio; proibição de feiras, palestras, assembleias e eventos esportivos. O plano ainda prevê, como medidas de higiene pessoal, a disponibilização de álcool gel, distribuição de equipamentos de proteção individual (EPIs) aos funcionários, o uso obrigatório de máscaras nas escolas e no transporte escolar, e o fornecimento individualizado de água potável ou copos para cada um dos estudantes. Na área da sanitização, o plano prevê a higienização de banheiros e vestiários antes da abertura, após o fechamento e no mínimo a cada três horas, remoção do lixo três vezes ao dia, manutenção das janelas e portas abertas para garantir a ventilação dos ambientes e a higienização frequente das superfícies que são tocadas por muitas pessoas, como carteiras, puxadores de porta e corrimões. Entre as medidas de comunicação, estão a disponibilização de canais digitais para o atendimento da população. Por fim, o plano paulista fala ainda em medidas de monitoramento, como não permitir a permanência de pessoas com sintomas de Covid-19 nas escolas e a determinação de que alunos e professores que façam parte dos grupos de risco fiquem em casa e realizem atividades remotas.

“Como pretendem elevar uma rede de escolas com infraestrutura precária, que sofreu cortes de recursos e recebeu cada vez menos investimentos nos últimos anos, à condição de escolas limpas e seguras no aspecto sanitário é um dilema que não está respondido. Além da compra de EPIs prometida, serão ampliados os quadros de funcionários de limpeza, conservação e segurança?”
Salomão Ximenes

Para o professor Salomão Ximenes, da Universidade Federal do ABC (UFABC), o maior problema atualmente é a falta de informações sobre como o estado planeja garantir as condições materiais de sua realização. “Como o estado vai operacionalizar o chamado ‘ensino híbrido’ no atendimento diário parcial dos alunos? Como o mesmo professor ou professora que acompanhará os alunos nas escolas cuidará da continuidade das atividades não presenciais? Isso exigiria mais que um esforço de planejamento interno, mas a mobilização de mais recursos pedagógicos e mais pessoal, aspectos que não estão no plano apresentado”, destaca Ximenes, que alerta para a ausência de menção aos recursos financeiros que serão necessários para que o plano saia do papel. “Como pretendem elevar uma rede de escolas com infraestrutura precária, que sofreu cortes de recursos e recebeu cada vez menos investimentos nos últimos anos, à condição de escolas limpas e seguras no aspecto sanitário é um dilema que não está respondido. Além da compra de EPIs prometida, serão ampliados os quadros de funcionários de limpeza, conservação e segurança? Diante da redução da arrecadação [tributária], o estado terá recursos suficientes para isso ou espera que cada escola resolva o problema individual e voluntariamente?”, questiona o professor da UFABC. A reportagem da Poli entrou em contato com a assessoria de imprensa da Secretaria de Educação do Estado de São Paulo, mas não obteve resposta.

As questões levantadas por Ximenes estão entre as principais preocupações que hoje mobilizam o debate sobre a reabertura no interior dos movimentos sociais e entidades sindicais que acompanham esse processo em nível nacional. “Fala-se muito em deixar as janelas e portas abertas para ventilação, mas em várias escolas as janelas das salas de aula simplesmente não abrem”, destaca a coordenadora da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, Andressa Pellanda, para quem os problemas crônicos de infraestrutura das escolas públicas no Brasil são um claro obstáculo para o cumprimento das medidas necessárias para um retorno às aulas nesse contexto. “Não adianta falar que a gente tem que manter um metro e meio de distância se não tem infraestrutura que comporte essa distância”, afirma. Segundo ela, a alta taxa de alunos por turma nas escolas públicas brasileiras dificulta o processo de volta às aulas com segurança sanitária. “Para reduzir o número de alunos por turma, não tem outra forma a não ser ampliando os espaços da escola e contratando professores Mas não há previsão de recursos para investir em contratação, para ampliar os espaços das escolas, para garantir que haja recursos humanos e produtos de limpeza disponíveis para fazer a higienização contínua da escola”, denuncia.
Movimentação no Congresso

O Congresso Nacional se movimenta para aprovar legislação que regulamente o retorno das atividades educacionais presenciais no país. Um deles é o PL 2.949/2020, apresentado no final de maio, de autoria de vários Pixabaydeputados do PDT, PSB, PT e Cidadania, encabeçados pelo deputado federal Idilvan Alencar (PDT-CE), que foi o autor do projeto original. O projeto dispõe sobre a estratégia para o retorno às aulas na educação básica e cria instâncias para que União, estados e municípios, em regime de colaboração, pactuem princípios, diretrizes e protocolos para o retorno das atividades presenciais nas escolas de todo o país. Esse trabalho ficaria a cargo de comissões que seriam formadas em âmbito nacional, estadual, local e também em cada instituição de ensino. “As decisões precisam ser tomadas com base em evidências científicas e nos dados disponíveis, com transparência, para que as pessoas saibam qual é a decisão, quem a está tomando e quais são os motivos de cada decisão”, diz o texto que justifica o PL.

Heleno Araújo, presidente da CNTE, acredita que, em termos de conteúdo, o PL é satisfatório, trazendo vários aspectos destacados pela própria confederação em seu documento de contribuições para as diretrizes da educação escolar durante e após a pandemia. “O PL traz o cuidado com a questão sanitária, com a estrutura das escolas, com os números de estudantes por escola e por sala de aula. E traz também a necessidade de se formar comissões para debater coletivamente em cada município, em cada estado. Acho que esse é o principal ponto”, afirma. Mas ressalta: “Agora, se ele for aprovado sem ajuda financeira aos estados e municípios, é mais uma lei que vai ficar só no papel”.

Por conta disso, a Confederação vem se mobilizando também pela aprovação de outro projeto, de autoria de vários parlamentares também encabeçados por Idilvan Alencar, o PL 3.165/2020. Ele prevê um “auxílio emergencial” de R$ 31 bilhões a ser transferido pela União ao Distrito Federal, estados e municípios – com base no número de matrículas na educação básica -, via Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE). Esses recursos seriam utilizados para despesas relacionadas à estratégia de retorno às aulas. De acordo com levantamento da Consultoria de Orçamento e Fiscalização Financeira da Câmara dos Deputados, o valor corresponde principalmente ao rombo estimado nos recursos do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e Valorização dos Professores (Fundeb) devido à queda na arrecadação de estados e municípios em meio à pandemia, principalmente o ICMS, de competência estadual, cuja arrecadação deve cair em 15% este ano em relação a 2019, segundo o Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz). “As escolas deverão ter materiais de higiene para os alunos, tais como água e sabão, álcool em gel, equipamentos de proteção individual, como máscaras, dentre outras necessidades específicas”, justifica o texto do PL.

Outro convívio social

PixabayPara além do ambiente escolar, há também medidas relacionadas à biossegurança adotadas no enfrentamento à pandemia que, segundo especialistas na área, devem permanecer por algum tempo com a retomada do convívio social nas cidades brasileiras. Pelo menos até que seja desenvolvida uma vacina ou medicamentos eficazes contra a Covid-19, o que não tem prazo para acontecer.

Em meio aos planos de retomada da economia em várias partes do país, o Ministério da Saúde divulgou uma portaria no dia 18 de junho com orientações gerais visando à prevenção, controle e mitigação da transmissão da Covid-19. “É importante que os setores de atividades elaborem e divulguem protocolos específicos de acordo com os riscos avaliados para o setor, considerando os ambientes e processos produtivos, os trabalhadores, os consumidores e usuários e a população em geral”, afirma o texto.

O professor-pesquisador da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) Silvio Valle defende o que, no contexto de reabertura institucional, ele chama de “biossegurança positiva” – em que as práticas tradicionais da biossegurança passam ser aplicadas para todos os setores da sociedade, abarcando todas as dimensões do convívio social. Segundo ele, é importante que as autoridades sanitárias somente permitam a reabertura de estabelecimentos após cada setor específico apresentar um Procedimento Operacional Padrão, o chamado POP, com a construção de um Mapa de Risco Biológico para o vírus causador da Covid-19. “O POP é um documento que prevê em detalhes os procedimentos que devem ser adotados no retorno das atividades. Por exemplo, cada setor precisa ter um POP para aquisição, confecção, utilização, manutenção e descarte de máscaras”, explica Valle, e completa: “Já o Mapa de Risco é um procedimento de saúde do trabalhador. É basicamente um mapa do estabelecimento em que iremos apontar os principais pontos críticos dos riscos biológicos para o Vírus SARS-CoV-2”.

A portaria do Ministério da Saúde não chega a apresentar orientações com esse nível de aprofundamento. Na seção com cuidados gerais e medidas de higiene a serem adotadas para todos os setores de atividade, o texto fala que cada setor deverá apresentar um “plano de ação” para retomada das atividades; disponibilizar estrutura adequada para higienização das mãos, lavatórios, água, sabão líquido e álcool gel; estimular o uso de máscaras e/ou protetores faciais em todos os ambientes e incentivar a lavagem das mãos ou higienização com álcool gel antes de manusear alimentos e objetos compartilhados, antes e após a colocação das máscaras e após tossir, espirrar ou manusear dinheiro. O documento também fala em medidas de distanciamento social que devem ser adotadas por todos os setores. Também fala na priorização de canais digitais para atendimento ao público e na adoção, sempre que possível, do trabalho remoto no processo de reorganização do trabalho, especialmente para os integrantes de grupos de risco. O ministério recomenda ainda que seja feita a triagem antes da entrada nos estabelecimentos, com aferição de temperatura e aplicação de questionários, encaminhamento de pessoas sintomáticas aos serviços de saúde, bem como o estabelecimento de procedimentos para o acompanhamento de casos suspeitos e confirmados de Covid-19. A portaria traz também orientações quanto ao uso do transporte coletivo, incluindo a adaptação do número máximo de pessoas por veículo de modo a manter o distanciamento social, o estímulo ao uso de máscaras e a utilização de ventilação natural, bem como a realização frequente de limpeza e desinfecção dos veículos.

Os ambientes de trabalho foram objeto de outra portaria, também de 18 de junho, publicada em conjunto pelos ministérios da Economia e da Saúde. O texto estabelece parâmetros para a elaboração de orientações ou protocolos para prevenção, controle e mitigação da transmissão de Covid-19 nos ambientes de trabalho, diretrizes para a conduta em relação aos casos suspeitos e confirmados, manutenção do distanciamento social e higienização dos trabalhadores, orientações quanto ao procedimento para com os trabalhadores de grupos de risco, bem como sobre a utilização de EPIs e a reorganização dos espaços de convívio, como refeitórios e vestiários. “Acho que o documento está compatível com o de outros países e com o que vem da OMS [Organização Mundial de Saúde]”, aponta Claudio Mafra, professor da Universidade Federal de Viçosa (UFV) e presidente da Sociedade Brasileira de Biossegurança, para quem as portarias devem garantir estabilidade jurídica no contexto da reabertura. “O que estava acontecendo é que havia muita incerteza sobre como as agências locais de vigilância sanitária e o Ministério Público, por exemplo, deveriam atuar. As portarias vêm para dar uma orientação”, avalia Mafra.

Não que sua implementação vá ser fácil. A grande preocupação, inclusive em outros países, continua Mafra, tem sido em relação às atividades que vão significar maior movimentação de pessoas e maior aglomeração. “Aí incluo as escolas, universidades, mas também bares, restaurantes, academias. Esses são pontos críticos”, avalia o pesquisador, que afirma estar contribuindo na elaboração de protocolos em diversos setores. “Ter um cinema, por exemplo, funcionando significa várias pessoas fechadas numa sala com ar condicionado por duas horas. Além do distanciamento maior entre as poltronas, a grande questão ali vai ser a troca de ar, então será necessária a instalação de sistemas de insuflação e exaustão do ar”, exemplifica. O mesmo se dá em bares e restaurantes, diz o especialista em biossegurança, que são lugares em que as pessoas permanecem por algum tempo com algum nível de contato social. “Eu acho que algumas atividades não vão poder retornar de imediato, para que haja tempo para realizar as adaptações de infraestrutura necessárias”, avalia.
Outro gargalo, segundo ele, são os prédios públicos no Brasil. “Nós não temos sistema de insuflação e exaustão adequados. Boa parte dos ambientes públicos trabalham com sistema de ar condicionado, modelo fechado. Você tem prédios, inclusive novos, que foram construídos onde os vidros das janelas são aparafusados e não tem como abrir”.

Outro desafio importante é com relação ao transporte coletivo, também locais de grande aglomeração, principalmente nas capitais brasileiras, onde ônibus e metrôs frequentemente circulam lotados, com muitos passageiros em pé. “Quando eu determino que não podem transportar pessoas em pé, eu tenho que lembrar que a matriz de cálculo de passagem em cidades como São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte foi toda feita considerando o ônibus transportando pessoas em pé, então vai ter que ser considerado o impacto econômico disso para as empresas”, afirma. Por outro lado, diz ele, a indústria também começa a se adaptar a esse novo cenário. “Tem uma empresa que está desenvolvendo um ônibus com uma fileira de cadeiras só de cada lado, e uma única no meio, com dois corredores, então ao invés de transportar quatro pessoas por fila, você transporta três”, ressalta. Um setor que segundo ele tem avançado na elaboração de protocolos para a reabertura é o hoteleiro. “Na semana passada eu li o manual de recomendações da associação hoteleira de São Paulo e eles criaram uma regra de que para pessoas que ficam três dias ou mais nos hotéis, a limpeza do banheiro é feita uma vez só a cada três dias. Com isso eles minimizam inclusive a exposição do funcionário da limpeza”, diz Mafra, complementando:  “Temos um desafio pela frente que vai demandar grandes investimentos de recursos que não temos. O Brasil tem várias questões que já deveriam ter sido resolvidas há décadas e não foram, como a falta de saneamento básico, o transporte público nas grandes cidades, entre outras”.

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