Maria Eduarda Alves da Conceição, de 13 anos, aluna da Escola Municipal Daniel Piza, em Acari, na Zona Norte do Rio de Janeiro, morreu no dia 30 de março após ser baleada dentro da própria unidade de ensino. Duda, como era chamada pelos amigos, cursava o 7º ano do segundo segmento do Ensino Fundamental, e participava de uma aula de educação física na escola quando foi atingida durante um tiroteio entre bandidos e policiais. O fim trágico da adolescente repercutiu na mídia nacional e internacional e evidenciou o grave problema da violência que atinge milhares de alunos país afora todos os dias. A Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV), instituição pública federal de ensino e pesquisa da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), não fugiu à regra: localizada na região de Manguinhos, Zona Norte do Rio de Janeiro, ficou 15 dias sem aula no Ensino Médio Integrado aos cursos técnicos de saúde e outros 11 dias na Educação de Jovens e Adultos (EJA), contados a partir de 24 de março. Soma-se a isso mais alguns dias sem aula na pós-graduação e nos cursos voltados para trabalhadores do Sistema Único de Saúde (SUS). Isso sem contar os muitos momentos em que as aulas foram interrompidas por conta dos tiros.
Essa é apenas uma pequena parte da rotina de medo, risco e adoecimento a que 12 mil moradores da região de Manguinhos está submetida regularmente. O público da Escola, que envolve também a população local, sofre duplamente os efeitos da intensificação da violência. Shirley da Silva, aluna do turno da noite da EJA da EPSJV e moradora da região há 20 anos, desabafa: “No mês passado, nós estávamos lanchando e começou a sair muito tiro e a gente teve que se deslocar para o pátio. Teve outra ocasião em que estávamos saindo da Escola e começou o tiroteio. Fiquei sem saber se eu deveria correr do tiro ou se parava, porque os carros estavam passando, e todos querem fugir desse confronto, pois a sensação é de que a bala vai atingir você”. Para Danielle Cerri, coordenadora e professora da EJA da EPSJV, esse tipo de violência prejudica a possibilidade de se pensar uma educação transformadora e propositiva. “Ficamos muito tempo sem ter aulas e, quando tinha, era necessário liberar mais cedo. Enfim, o impacto percebido não é somente sobre a educação formal, em sala de aula, mas sobre como essas pessoas e sujeitos conseguem lidar com suas vidas, o seu ir e vir, algo que é provocado pela violência”, sublinha.
Thamires Soares, aluna do 4º ano do Ensino Médio Integrado da EPSJV e moradora da Maré, região próxima a Manguinhos, revela que a interrupção das aulas foram muito prejudiciais, mas o problema não é vivido apenas na Escola. “As pessoas têm mais medo de quando a polícia entra do que quando os bandidos estão lá. Quando o bandido está atirando, em conflito, ele tem um alvo, mas quando a polícia entra, ela atira em qualquer um”, expressa. A aluna lembra, ainda, que ficou um bom tempo sem ter aulas às sextas-feiras, por conta dos frequentes tiroteios: “Os professores tiveram que fazer outro planejamento de aula. Com isso, a gente acaba perdendo o conteúdo”. Para ela, a desmilitarização da polícia e a revisão da política contra as drogas poderiam reduzir – ou até mesmo extinguir – muitos problemas gerados pela violência armada.
O medo e as preocupações de Thamires encontram justificativa no caso de Evangelista Cordeiro da Silva, de 71 anos, morto na comunidade onde morava, localizada exatamente ao lado do campus da Fiocruz, após uma inesperada operação policial. Testemunhas e exames preliminares apontam que a bala saiu da arma da polícia.
Cenário de medo
No dia 17 de abril, não havia nenhum sinal de confronto, porém em uma das janelas de uma sala de trabalho da EPSJV havia o sinal mais evidente dessa violência: um buraco feito por uma bala perdida. Ninguém se feriu, mas nesse e em outros dias de tiroteios intensos, vários profissionais da Escola precisaram ser encaminhados ao centro de saúde por causa da instabilidade emocional. A EPSJV e a Fiocruz como um todo precisaram se mobilizar na atualização do seu plano de contingência e na construção de outras estratégias para garantir a segurança de alunos e trabalhadores.
As ações ultrapassam também os muros da instituição, como explica Danielle Cerri: “Fazemos parte da Comissão Contra a Violência em Manguinhos. A partir dessa iniciativa, outras favelas que têm conflitos quiseram aproximar-se e formou-se a Comissão de Favelas Contra a Violência, que promove encontros com a Secretaria de Segurança do Estado, com uma mobilização mais efetiva”. O professor-pesquisador da EPSJV, Alexandre Pessoa, explica: “A Fiocruz tem uma responsabilidade fundamental, porque essas comunidades não estão simplesmente no entorno da Fiocruz. Na verdade, pertencemos a esse mesmo território”.
Todas essas articulações se desdobraram num Ato contra a Violência em Manguinhos, com a participação de trabalhadores, estudantes, moradores e movimentos sociais da região. “O ato não foi um fim em si mesmo, implicou compromisso assumido por todos. A articulação entre as escolas do território pode ser uma ação efetiva que precisamos pensar em fazer”, defende Pessoa.
Rotinas comuns
A menos de um quilômetro da EPSJV, a Escola Estadual Professor Clovis Monteiro, uma das mais antigas da região, recebe alunos do ensino médio vindos majoritariamente das comunidades de Manguinhos, Jacarezinho e do conjunto de favelas do Alemão — regiões com os mais baixos Índices de Desenvolvimento Humano (IDH) do Rio de Janeiro. O cotidiano dos 1.300 alunos não é diferente da realidade do entorno: salas superlotadas; merenda insuficiente; e falta de professores e segurança. O episódio mais recente nesse sentido foi evidenciado no dia 17 de junho, quando as aulas do curso de pré-vestibular foram interrompidas pelo intenso tiroteio ocorrido na comunidade. “Tinham uns 40 alunos, muitas mães, e todos tiveram que sair da sala de aula em busca de um lugar mais seguro. Sugeri ligar o ar condicionado para tentar camuflar o barulho dos disparos”, lembra a diretora Andreia Queiroz.
Com a extinção da função dos porteiros, a escola ficou sem vigilância para o movimento de entrada e saída de pessoas. A sugestão para o problema foi a automatização do portão, porém a localização geográfica não permite que a escola trabalhe de portas trancadas. “Muitos carros da polícia saem em alta velocidade e iniciam as operações sem nenhum aviso prévio. Como organizaríamos a entrada e a saída dos alunos em momentos críticos como esse se o nosso portão fosse automático?”, questiona a diretora. Localizada a poucos metros da Cidade da Polícia, a escola também sofre com a falta de isolamento acústico, fazendo com que o barulho ocasionado pelos treinamentos de tiro interrompa as aulas.
Os grupos de mensagens simultâneas são, para esta escola, também ferramentas importantes para evitar que alunos e trabalhadores fiquem expostos aos tiroteios. “As mães criaram um grupo no WhatsApp e me incluíram. Há, ainda, diversos grupos de alunos e professores da escola que moram na localidade. Se for um tiroteio que está acontecendo muito cedo, o professor que mora perto já avisa”, revela Andreia. Outro canal de comunicação que antecedeu os grupos de mensagens é a página Família Clovis Monteiro, no Facebook . Lá os alunos relatam os conflitos e já alertam o corpo docente da escola. “Também usamos um megafone para alertar sobre situações de risco e realizar a evacuação para os locais mais seguros da escola”, pontua. Mas, apesar de todos os esforços, Andreia não tem esperança de grandes mudanças. “Infelizmente, estamos num estado falido. O processo educacional fica completamente prejudicado. A ausência do aluno ocasionada pelo conflito não consegue ser solucionada apenas com a reposição da matéria”, orienta. A diretora explica que o plano de aula da escola precisou sofrer ajustes para se adequar à realidade local. “Temos um pré-vestibular em sistema de aulões, que não preconizam o conteúdo clássico. Dessa forma, se o aluno perder a aula por conta dos conflitos, ele não terá uma perda significativa em seu processo de aprendizagem”, conta.
No Rio de Janeiro, são incontáveis as escolas que sofrem diariamente com os efeitos da violência. O professor Marcelo Melo, que se divide entre a EJA na EPSJV e a rede estadual de educação de Caxias, na Baixada Fluminense, conta que trabalha em uma escola com muita vulnerabilidade social, com a milícia de um lado e o tráfico do outro. “O fator mais agravante é o processo de naturalização dessa violência. É comum ver alunos circulando vídeos que mostram alguém serrando o pé de outro ou a cabeça que apareceu em algum lugar. É sobre assuntos assim que as crianças desde o Fundamental até o Ensino Médio falam com muita tranquilidade”, exemplifica, acrescentando que um aluno seu foi assassinado no ano passado e, quando ele foi fazer a chamada, um dos colegas veio com o celular para mostrar a foto do menino com a cabeça estourada. Morador e professor e da rede municipal de ensino em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, Daniel Vieira, que também é coordenador da EJA na EPSJV, concorda que a violência afeta o processo de aprendizagem e causa um impacto subjetivo. “A criança acaba reproduzindo e reconstruindo a violência nos espaços em que ela atua, na escola, na turma, na relação com os colegas e, inclusive, na forma como enxerga o mundo”, atenta. Daniel lembra que já foram, aproximadamente, 15 dias perdidos do ano letivo de 2017 por conta de conflitos na região. Para ele, não é possível quantificar o impacto na aprendizagem do estudante, mas observa a escola como um espaço de reflexão coletiva para mudanças. “Esse semestre discutimos com as minhas turmas a questão do racismo e o quanto essa violência tem um recorte de raça”, ressalta. Ele reconhece, porém, que, “com muros”, a escola acaba, infelizmente, virando algo que não faz parte do território.
Rio de violência
Para o pesquisador do Laboratório de Análise de Violência da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), Eduardo Ribeiro, a violência urbana, sobretudo a violência armada e a de grupos armados organizados, impacta as escolas de diferentes formas. Ele destaca que, além dos confrontos, as escolas podem ser forçadas a fechar as portas por “ordem” de traficantes, por exemplo. Assim, o tempo de aula em territórios conflagrados costuma ser menor, sobretudo nas áreas onde tais confrontos são mais recorrentes.
“Os tiroteios não afetam as escolas apenas diretamente”, afirma. Para o pesquisador, mesmo que as instituições não fechem suas portas, os alunos podem não aparecer por conta de confrontos em outras áreas, perto de sua residência ou no trajeto casa-escola. Além disso, há sempre a expectativa de ocorrência de novos confrontos. “São comuns os relatos de mães que não deixam os filhos irem à escola depois de uma noite conflituosa ou em situações de confronto iminente”, acrescenta. Ele conta que também são comuns os relatos de professores e diretores de escolas sobre o crescimento do abandono escolar, após uma escola permanecer fechada vários dias consecutivos por conta da violência.
Eduardo explica que estar em uma área conflagrada impacta bastante o cotidiano escolar e a organização do trabalho nessas instituições, bem como reduz consideravelmente a capacidade de atrair novos alunos e professores. “As paralisações e o risco no entorno marcam algumas das escolas com um estigma de ‘escola ruim’ em relação a outras escolas da rede”, exemplifica. Outro aspecto negativo é a rotatividade dos docentes que tende a ser maior, além dos pedidos de licença crescentes. “Há relatos de professores que afirmam que as crianças rendem menos porque chegam com sono por conta de tiroteios ouvidos durante toda a noite”, revela Eduardo. Segundo o pesquisador, a exposição à violência provoca estresse, traumas e problemas psicológicos ou comportamentais, nos professores e alunos, atrapalhando todo o processo de ensino-aprendizagem.
Brasil afora
Assim como no Rio de Janeiro, centenas de colégios no país enfrentam o mesmo desafio de conviver com o impacto da violência. Divulgada em maio deste ano, uma pesquisa exclusiva feita pelo Movimento Todos Pela Educação revelou que 85,2% dos jovens entre 15 e 19 anos consideram a segurança como o atributo mais relevante em uma escola de ensino médio e 29,6% dos estudantes classificam a segurança como insatisfatória nas unidades de ensino. Além de questionar as expectativas dos jovens sobre a escola, o estudo ‘Repensar o Ensino Médio’ analisou a opinião de 1.551 entrevistados sobre o ensino técnico, os professores e a participação social.
Pesquisadora do Centro Latino-Americano de Estudos de Violência e Saúde da Fundação Osvaldo Cruz (Claves/ Fiocruz), Maria Cecilia Minayo afirma que a violência urbana impacta as escolas e a educação das mais diferentes formas. “Em primeiro lugar, sua reincidência cria um ambiente cultural de naturalização, medo ou descaso com a formação, tanto por parte dos professores quanto dos estudantes”, examina, apontando a escola como lugar de resis tência. “A escola tem um papel indelegável, por sua possibilidade de diálogo no lugar da arma, de negociação no lugar do confronto, de inclusão dos mais vulneráveis no lugar do isolamento e de ampliação das oportunidades e da solidariedade no lugar do estímulo à competição e à chamada seleção dos melhores”, conclui.
As estatísticas mostram-se cada vez mais distantes desse ideal. Segundo dados do Atlas da Violência 2017, realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), no Brasil, foram registrados, em 2015, 59.080 homicídios. Isso significa 28,9 mortes a cada 100 mil habitantes. O estudo analisou os números e as taxas de homicídio no país entre 2005 e 2015 e detalhou os dados por regiões, unidades da Federação e municípios com mais de 100 mil habitantes. A cidade de Altamira, no Pará, lidera o ranking de violência, na região esse problema também tem afetado a rotina das escolas. No município, com 108 mil habitantes – que correspondem a 0,65 por quilômetro quadrado – a violência parece diretamente relacionada à recente construção da Usina de Belo Monte. Mônica Brito, professora e represente do Sindicado dos Trabalhadores em Educação Pública do Pará, confirma os dados da pesquisa com tristes acontecimentos de jovens alunos assassinados em frente a escolas da região. A construção da usina, para ela, é um fator crucial para o aumento da violência e do tráfico de drogas. “Houve um remanejamento de alunos das áreas que seriam atingidas pela construção de Belo Monte, abarrotando outras escolas que não estavam preparadas para recebê-los”, conta. Segundo a professora, no bairro de Jatobá, por exemplo, as turmas têm em média 30 alunos, cada. Com as disputas territoriais e de traficantes de drogas, muito alunos moradores dessa comunidades são recrutados e acabam se tornando vítimas dos atravessadores. Sem nenhum tipo de segurança, a escola fica exposta, e, quando há indício de guerras entres as gangues, as aulas são suspensas. Em 2016, foram assassinados 16 alunos, e 11 deles tinham envolvimento com o tráfico de drogas. “Alunos e professores vivem bastante angustiados e inquietos. É mais seguro suspender as aulas e evitar que as brigas dentro da escola acabem em morte”, lamenta.
A questão do transporte a Belo Monte é outro problema. Um projeto definiu que a empresa deveria oferecer de forma gratuita o transporte desses alunos, principalmente para os que estudam à noite. No entanto, os usuários sofrem com a constante ameaça de corte do serviço. Enquanto isso, o transporte público cobra R$ 3,80 por passagem e as famílias de baixa renda não têm condições de pagar. “Altamira ficou com uma geopolítica de um bairro para outro muito distante, então isso dificulta o percurso, facilitando a marginalização e a criminalização dos alunos que moram nessas periferias que não têm espaço cultural, nem espaço de participação educativa”, realça Mônica. Apesar da total ausência do Estado, a professora, que também é militante do Movimento de Mulheres Negras na cidade, afirma que os movimentos sociais resistem e cobram incansavelmente por respostas e soluções.
Apesar dos esforços, o horizonte é obscuro. Atualmente, a cidade conta com apenas uma delegacia e uma viatura, o que inviabiliza um trabalho de acompanhamento, investigação e prevenção. A gestão atual fechou a Secretaria de Cultura, de Esporte, da Agricultura e a Secretaria Constitucional de Altamira, com a justificativa de redução de gastos. “Vivemos sem esperança. As gestões estadual e municipal parecem não ter interesse e comprometimento com a política social. Para eles, se morrer um jovem ou se matarem uma mulher, é apenas mais uma estatística e assunto de polícia”, desabafa.
A crítica de Mônica encontra bases na pesquisa de 2017, que revela que mais de 318 mil jovens foram assassinados no Brasil entre 2005 e 2015. Apenas em 2015, foram 31.264 homicídios de pessoas com idade entre 15 e 29 anos, o que representou uma redução de 3,3% na taxa em relação a 2014.Os homens jovens continuam sendo as principais vítimas: mais de 92% dos homicídios acometem essa parcela da população. A cada 100 pessoas assassinadas no Brasil, 71 são negras. De acordo com informações do Atlas da Violência, os negros têm mais probabilidades (23,5%) de serem assassinados se comparados a outros grupos étnicos, já descontado o efeito da idade, da escolaridade, do sexo, do estado civil e do bairro de residência. “A inclusão pela educação é fundamental para que haja outros ‘possíveis sociais’ – termo usado por Sartre para falar da variedade de escolhas possíveis para um indivíduo dentro da realidade em que vive”, orienta.
A violência sexual nas universidades
A violência sexual é um problema central na educação e tem ganhado cada vez mais visibilidade a partir da atuação de coletivos feministas, principalmente nas universidades. Divulgada em dezembro de 2015, uma pesquisa realizada pelo Instituto Avon e o Data Popular revelou que quase 70% das universitárias afirmaram já ter sofrido algum tipo de violência em espaços acadêmicos, incluindo a sexual. O levantamento ouviu 1.823 universitários das cinco regiões do país, sendo 60% de mulheres. Das entrevistadas, 67% já sofreram algum tipo de violência (sexual, psicológica, moral ou física) no ambiente universitário. Entre os homens, 38% dos estudantes admitiram já ter praticado pessoalmente algum tipo de violência contra mulheres em espaços acadêmicos.
Na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), em Seropédica, município da Baixada Fluminense, só em maio deste ano duas meninas foram atacadas ao pedirem carona no fim da aula. Alunas contam que uma das vítimas foi abordada em um carro por um homem armado e foi espancada. A prática de pedir caronas no local para retornar para casa, no Centro de Seropédica, tornou-se habitual por causa dos horários reduzidos de ônibus universitários que oferecem transporte gratuito para os estudantes. Quem deseja frequentar as aulas e não tem dinheiro para pagar a tarifa diária das vans que transitam entre o campus e o centro, se vê obrigado a optar entre duas alternativas: ir e voltar andando, numa ciclovia sem iluminação, ou pedir caronas a desconhecidos.
As duas jovens ficaram com medo de fazer a denúncia na delegacia. “Enquanto o processo está rolando, os violadores continuam na universidade, frequentam os mesmos espaços que as meninas, e elas sentem-se retraídas em trazer o problema a público por causa disso”, conta Vitória Barenco, aluna de Ciências Sociais da UFRRJ e integrante do grupo Me Avisa Quando Chegar. O movimento foi organizado pelas mulheres da universidade em 2016.
Na Universidade de São Paulo (USP), o cenário se repete. “A cultura do estupro na USP se expressa de maneira muito semelhante com o restante da sociedade. Temos a ilusão de que, por estarmos em uma universidade, estamos imunes ao machismo e à lógica de objetificação da mulher”, observa Mariana Ribeiro, do Diretório Central dos Estudantes (DCE) e aluna de psicologia da universidade. Foi na USP que ocorreu um dos casos mais emblemáticos de violência sexual no país. Em 2012, já cursando medicina, Daniel Tarciso da Silva Cardoso foi acusado de estupro. Na denúncia apresentada pelo Ministério Público e aceita pela Justiça, a vítima conta que tomou um copo de bebida alcoólica. Daniel colocou uma droga no copo e, logo depois, ela perdeu quase totalmente os sentidos. A vítima afirmou, ainda, que Daniel disse
que era policial militar e praticava judô, e que ele usou a “absoluta superioridade física” para imobilizar a estudante. Daniel foi policial militar de 2004 a 2008. Ele foi processado por homicídio depois de matar com oito tiros Danilo Bezerra da Silva em uma briga durante o carnaval, em 2004. A Justiça considerou legítima defesa e, por isso, ele recebeu uma pena de um ano de detenção, que acabou sendo anulada. Mesmo após uma série de denúncias e de acusações, Daniel conseguiu o registro de médico no Conselho Regional de Medicina de Pernambuco.
Na tentativa de não deixar impune os graves crimes, os movimentos feministas fazem as mesmas reivindicações: melhorias do campus universitário. “São medidas que vão desde uma melhor iluminação até a abertura da universidade, inclusive nos fins de semana. Porque não é a ocupação do espaço que gera estupro, é justamente o campus estar vazio e abandonado que deixa as mulheres em situação mais vulnerável”, defende Mariana. A aluna reclama por maior efetivo feminino na guarda universitária e melhor treinamento para conseguir acolher esses casos de violência, além da criação de um Centro de Referência Interdisciplinar dentro da universidade, que possa receber e acolher vítimas de violência sexual e encaminhá-las para atendimento ginecológico e psicológico.A UFRRJ já caminha nesse sentido e está elaborando um novo Código Disciplinar Discente, que terá mais abertura para as denúncias de violência sexual, já que o código em vigência foi criado na época da ditadura empresarial-militar e sem nenhuma consulta à comunidade. De acordo com Vitória, este tipo de violência estará classificado como grave ou gravíssimo. “O aluno acusado de estupro e comprovadamente culpado poderá ter uma pena que compreende desde a prestação de serviços para a comunidade, podendo chegar ao afastamento”, revela.