Serviços 
O conteúdo desse portal pode ser acessível em Libras usando o VLibras

Parir e nascer no SUS

No Brasil, o modelo de atenção ao parto é intervencionista, hospitalocêntrico e medicalizado, mas taxas de mortalidade materna e neonatal seguem altas e sem sinais de que irão diminuir. Conheça algumas experiências que dão certo no SUS
Raquel Torres - EPSJV/Fiocruz | 27/03/2014 08h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h44
Casa de Parto David Capistrano Filho, única no Rio de Janeiro Foto: Tânio Rego / Agência Brasil

É uma sala ampla, com janelas abertas e muitas almofadas espalhadas pelo chão. Sentadas em círculo estão cerca de dez gestantes acompanhadas por suas mães, tias, filhos, maridos ou namorados. “Como e onde vocês nasceram?”, pergunta a enfermeira que conduz o grupo. Entre os mais jovens, a imensa maioria diz ter nascido no hospital, por cesariana. “E os pais de vocês?” Eles se dividem. Alguns afirmam que os nascimentos se deram por parto normal e outros por meio de cirurgias, mas quase todos no ambiente hospitalar. “E os avós?” Agora a resposta é unânime: em casa, parto normal.

O pequeno questionário inicia uma reunião de acolhimento na Casa de Parto David Capistrano Filho, em Realengo, Rio de Janeiro. Com uma equipe formada majoritariamente por enfermeiras obstétricas (EOs) – e sem médicos –, a Casa é voltada para gestantes de risco habitual (as chamadas de baixo risco). Qualquer intercorrência identificada durante a gravidez ou trabalho de parto leva à transferência, em tempo hábil, para um hospital próximo já pronto para receber a gestante. O encontro, que ocorre uma vez por semana na Casa de Parto, é obrigatório para quem deseja realizar o pré-natal lá e é sempre dirigido por Leila Azevedo ou por Edymara Medina, que coordenam a instituição.

No cenário descrito aí em cima, é Edymara quem está à frente. Ela questiona: “Nos últimos 60 ou 70 anos, o que será que aconteceu para que nós, mulheres, deixássemos de acreditar que somos capazes de parir sem grandes intervenções externas?”. Ela diz que o ideal não é simplesmente ‘voltar ao passado’ e deixar que as mulheres tenham seus filhos sem assistência adequada ao parto, mas sim rever certos procedimentos que se mostram ineficazes e desnecessários.

Os visitantes se apresentam e contam como decidiram conhecer o estabelecimento. “Eu comecei a fazer o pré-natal com o meu médico, do plano, mas ele disse que eu teria que fazer cesariana porque sou pobre. Disse que parto normal deixa a gente ‘larga’ em baixo e precisa fazer cirurgia plástica depois, e pobre não tem dinheiro para fazer plástica... Mas eu não acreditei muito, por isso vim”, expõe uma das mulheres, recebendo olhares perplexos das demais pelo absurdo da história descrita.

A situação brasileira

Pode ser absurda, mas não é a única história ‘mal contada’ que leva gestações perfeitamente saudáveis a terem a cesariana como desfecho. Artigos como ‘Unwanted caesarean sections among public and private patients in Brazil’, de Joe Potter e outros autores, mostram que entre 70% e 80% das brasileiras que passaram pela cesárea desejavam, na realidade, partos vaginais. Porém, hoje, apenas 48% das mulheres do país conseguem efetivamente dar à luz por essa via.

Enquanto a Organização Mundial de Saúde (OMS) preconiza que uma taxa de cesarianas razoável giraria em torno de 15%, o Brasil tem a maior do mundo: 52,3% – no setor público são 38% e, no privado, mais de 80%. Em algumas cidades, os números do setor privado são ainda mais alarmantes. No município do Rio de Janeiro, de acordo com a Secretaria Municipal de Saúde, 93% dos nascimentos ocorridos em hospitais particulares se dão por via cirúrgica. Na prática, isso significa que as gestantes cariocas têm apenas 7% de chances de conseguirem um parto normal fora do Sistema Único de Saúde (SUS).

O número elevado de cesarianas é apenas um dos problemas do nosso modelo. Os partos vaginais realizados no país ainda têm como característica, em sua maioria, o abuso de intervenções violentas ou o tratamento inadequado às gestantes. A pesquisa ‘Mulheres brasileiras e gênero nos espaços público e privado’, publicada pela Fundação Perseu Abramo em 2010, revelou que 25% das mulheres relatam algum tipo de violência durante o atendimento ao parto – atitudes que vão desde xingamentos, gritos e o impedimento da presença de um acompanhante (o que, em tese, é garantido por lei desde 2005) até a realização de procedimentos dolorosos sem aviso ou consentimento. Na rede pública o panorama é pior: a violência obstétrica foi referida por 74% das mulheres.

Além disso, o Brasil não é, nem de longe, o país mais seguro do mundo para se parir e nascer, apesar de o sistema ser altamente medicalizado e centrado nos hospitais – mais de 95% dos nascimentos ocorrem dentro dessas instituições. A razão da mortalidade materna, segundo dados do Ministério da Saúde (MS), é hoje de 78 a cada 100 mil nascidos vivos. Parece pouco, mas, para se ter uma ideia, no Canadá, Alemanha, Holanda e Suécia esses números são, respectivamente, 12, 7, 6 e 4. Em relação à mortalidade neonatal, a situação também não é boa. Em 2011, de acordo com a OMS, a taxa brasileira foi de dez mortes para cada mil nascidos vivos, bem distante dos valores de países como Reino Unido (3), Canadá (4), Holanda (3),  Suécia (1) e Japão (1).

O problema das 'desnecesáreas'

Ao perceber a preocupação do Ministério da Saúde e da OMS com altos índices de cesarianas, talvez você se pergunte: mas, afinal, que mal há nisso? Bom, ao contrário do que muita gente acredita, a cesariana é menos segura que o parto vaginal. Segundo a obstetra Carla Polido, professora na Faculdade de Medicina da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), em gestações de baixo risco, mulheres que passam pela cesárea têm três vezes mais chances de morte e seis vezes mais chances de complicações graves no pós-parto. Além disso, os bebês têm no mínimo duas vezes e meia mais chances de morrer.

Para a também obstetra Vera Fonseca, conselheira do Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro (Cremerj), e ex-membro da Comissão de Parto Normal do Conselho Federal de Medicina (CFM), uma das razões para o aumento do número de cesáreas é financeira, especialmente no setor privado. “Sabemos que um trabalho de parto pode levar mais de 12 horas. Em geral, os planos pagam R$ 300, R 400 ou até menos para o médico acompanhar um parto, enquanto, na cesárea, ele ganha praticamente o mesmo valor para no máximo duas horas de trabalho”, reconhece.

Carla Polido acredita que outro fator pode ajudar a explicar o boom de cesarianas nos planos de saúde: a ausência de uma regulação efetiva por parte da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). “Não há medidas para coibir o excesso de cesáreas. Não há fiscalização, não são feitas auditorias de parto para compreender as indicações da cirurgia, não são exigidas justificativas”, critica.

Além disso, ela afirma ser complicada a noção de que cada mulher deve ter o ‘seu’ obstetra. “Uma gestante normalmente terá seu bebê entre as 37 e as 42 semanas de gravidez. Se o médico tem quatro gestantes por mês – e, normalmente, há muito mais que isso –,não tem um fim de semana em que pode tomar uma cerveja, viajar, porque qualquer uma delas pode entrar em trabalho de parto. E o médico é um ser humano: come, dorme, viaja, tem família. É claro que, mesmo sendo uma conduta errada, ele vai acabar tentando acomodar o parto dentro de sua própria agenda”, reflete. Para ela, tanto o SUS como a saúde suplementar deveriam disponibilizar sempre equipes de plantão para atendimento, baseando o cuidado ao parto em profissionais à disposição 24 horas por dia, e não apenas naquele que fez o pré-natal.

Como dar conta disso?

Segundo a obstetra Carmen Diniz, em sua tese de doutorado ‘Humanização: os muitos sentidos de um movimento’, o uso “irracional” da tecnologia no parto impede muitos países de reduzir a morbimortalidade materna e perinatal. Ela conta que, em 1979, um Comitê europeu criado para estudar maneiras de reduzir essas taxas no continente concluiu que o aumento das intervenções gerava mais custos sem melhorar em nada os resultados. A partir daí, iniciaram-se os estudos da medicina baseada em evidências, propondo que por trás de toda prática médica deve haver respaldo científico – o que nem sempre acontece. Em paralelo a isso, surgiu um movimento internacional com o objetivo de “priorizar a tecnologia apropriada, a qualidade da interação entre parturiente e seus cuidadores e a desincorporação de tecnologia danosa”. Com nomenclaturas distintas ao redor do mundo, é este o movimento que no Brasil ficou conhecido como ‘humanização do parto’. E, para muitos especialistas, essa é a saída para melhorar os indicadores gerais do país nessa área.

Melania Amorim, também obstetra e professora da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG) e do Instituto de Medicina Integral Professor Fernando Figueira (Imip), revela que passou por um longo “movimento interno” até incorporar definitivamente a medicina baseada em evidências e as práticas da humanização. “Tive uma formação intervencionista, como a maioria dos colegas. Quando entrei no mestrado, comecei a estudar profundamente práticas que vinha exercendo há muito tempo. Precisei ‘sair’ um pouco da medicina e estudar antropologia e filosofia para entender isso”, conta.

Um procedimento desnecessário emblemático para Melania – e que ela própria realizava no passado – é a episiotomia, conhecida popularmente como ‘pique’. Trata-se de um corte feito no períneo da mulher para, teoricamente, facilitar a saída do bebê e evitar lacerações naturais nos genitais da mãe. Hoje, a intervenção é realizada rotineiramente na maior parte das maternidades brasileiras. “Fui estudar como esse procedimento surgiu e me assustei ao descobrir que ele nasceu de forma arbitrária, sem nenhuma evidência de que fosse efetivo, e passou a ser difundido no século 20 com base na crença de que nosso corpo é essencialmente defeituoso e há a obrigatoriedade da intervenção”, aponta.

Experiência internacional

Ao analisar países com os melhores indicadores, descobre-se que eles adotam justamente modelos muito menos intervencionistas. Na Holanda, por exemplo, cerca de 20% dos partos de baixo risco são domiciliares. Uma pesquisa publicada na British Medical Journal analisou 150 mil holandesas que pariram entre 2004 e 2006 e mostrou que, em casa (com partos assistidos por profissionais), ocorreu uma complicação a cada mil nascimentos, enquanto, no hospital, foram 2,3 por mil. A assistência obstétrica no país é realizada por parteiras – cuja formação, no Brasil, corresponderia à de obstetrizes ou EOs – que só encaminham a parturiente para o cuidado médico em caso de complicações. A taxa de cesarianas no país é de aproximadamente 15%.

O acompanhamento do pré-natal e parto por parteiras também é a regra na Suécia como conta Sara Terviño, sueca que teve sua filha em 2013. Ela diz ainda que não são feitos muitos exames de rotina: “Fazemos alguns exames de sangue e urina, aufere-se a nossa pressão e normalmente são realizadas apenas uma ou duas ultrassonografias”.  Cerca de 17% dos nascimentos no país acontecem por via cirúrgica.

Camila Winter, brasileira que vive no Canadá, conta que ficou satisfeita com o acompanhamento que recebeu em Quebéc em 2013, quando teve sua filha. Apesar de se tratar de um país já mais medicalizado e intervencionista e com taxas de cesarianas mais altas (atualmente, 28%), considera-se que a assistência ao parto e ao nascimento por lá seja bastante humanizada. “A gestante de baixo risco pode ser acompanhada por um ginecologista-obstetra ou por uma parteira, numa casa de parto. Escolhi a segunda opção. Com o acompanhamento médico, o parto é sempre hospitalar. Com parteiras, pode ser na casa de parto, em domicílio ou no hospital. Eu tive na minha casa”, relata.

Observando realidades como essas e as recomendações da OMS, o Ministério da Saúde (MS) tem desenvolvido, desde os anos 1990, algumas iniciativas com o objetivo de melhorar os indicadores nacionais. A mais recente é o programa ‘Rede Cegonha’, lançado em 2011. De acordo com a coordenadora da Área Técnica de Saúde da Mulher do MS, Esther Vilela, a primeira questão a ser resolvida é a própria noção de rede. “O trabalho entre os diferentes pontos de atenção ainda é fragmentado”, reconhece. Exemplo disso é o fato de as gestantes quase nunca saberem em que maternidade terão seus bebês. Hoje, elas em geral fazem uma ‘peregrinação’ em busca de vagas quando entram em trabalho de parto. Uma das propostas é que a vinculação a uma maternidade de referência seja feita desde o início do pré-natal.

Outra proposta é investir na qualificação de profissionais. Em ‘O papel das obstetrizes e EOs na promoção da maternidade segura no Brasil’, Nádia Narchi, Elizabete Cruz e Roselane Gonçalves citam uma pesquisa realizada pela Universidade de Oxford que afirma: “nenhum país conseguiu reduzir a mortalidade materna sem investir na formação de EOs e obstetrizes para a atenção primária ou comunitária”. Esther diz que o Ministério pretende incrementar tanto a qualificação como a inserção desses profissionais na assistência.

Mas o que poderia explicar as diferenças nos resultados perinatais quando gestantes de baixo risco são acompanhadas por enfermeiras e obstetrizes e não por médicos? Para Melania Amorim, a chave está na formação. “Elas desenvolvem uma visão mais fisiológica do parto. Já nós, médicos, temos uma formação voltada para a patologia e normalmente fazemos estágios e residências em locais em que o alto risco está sempre presente, o que produz um medo muito grande do parto. Como resultado, a tendência é acharmos que toda grávida é uma bomba-relógio prestes a explodir”, analisa.

Dulce Gualda, também obstetra, concorda com essa visão, Além de médica, ela é doutora em enfermagem e ajudou a elaborar o curso de obstetrícia da Universidade de São Paulo (USP), que atualmente é o único do  Brasil. A graduação havia sido extinta no país na década de 1970, mas foi recriada na USP em 2005. Com duração de quatro anos e meio, o curso traz, em sua grade curricular, disciplinas como Psicologia, Antropologia, História e Sociologia.  “Essa base faz toda a diferença”, acredita. Já as EOs são graduadas em enfermagem e fazem uma especialização em obstetrícia.

As casas de parto

Marcelo Camargo / Agência BrasilComo você viu, a atuação de EOs e obstetrizes é fundamental nas Casas de Parto, que não contam com equipe médica. Essas instituições começaram a ser vistas como um caminho possível para a humanização do parto no Brasil ainda em meados da década de 1990: a Casa mais antiga vinculada ao SUS é a de Sapopemba, no município de São Paulo, fundada em 1998.

Em sua tese, Carmen Diniz afirma haver estudos comprovando que as Casas de Parto são um recurso seguro e com boa aceitação pelas mulheres. No Brasil, pesquisas têm mostrado que os desfechos, tanto para mãe quanto para o bebê, são bastante positivos. Normalmente, cerca de 10% das gestantes precisam ser transferidas durante o trabalho de parto devido a intercorrências. Nos casos restantes, as intervenções são mínimas – a taxa de episiotomias, por exemplo, é de 8% na de Sapopemba e de menos de 3% na de Realengo.

Conselhos de Medicina contra as evidências

As mudanças que o Brasil vem tentando implantar têm sido alvo de intensas críticas por parte de Conselhos de Medicina de todo o país, que consideram perigoso o parto realizado fora do ambiente hospitalar. “Essa ideia é inconcebível. A equipe que pode realmente dar segurança às grávidas é composta por, no mínimo, dois médicos obstetras, um anestesista e um pediatra. A necessidade é de criar mais hospitais”, opina Vera Fonseca. De acordo com ela, tanto o Cremerj como o CFM são contrários a que o acompanhamento, mesmo nos casos de baixo risco, seja feito por profissionais não médicos.

Em relação às evidências de que essa estratégia funciona e às próprias indicações da OMS, que recomenda sua adoção, Vera é taxativa: “A OMS não tem muita certeza... Ela dá essas ‘ordens’ porque lá na África eles estão longe de ter um médico para cada milhão de habitantes. Então a OMS acaba falando isso, que pode ter qualquer um para ajudar no parto [Na realidade, a OMS considera profissionais qualificados para atender ao parto: médicos com formação específica em obstetrícia (como obstetras ou médicos de família com especialização), EOs e obstetrizes]. Ela não está preocupada com países ricos, desenvolvidos, mas com o que acontece na África”.

E, com relação ao fato de que países ricos e desenvolvidos também adotam as parteiras, ela afirma: “Sim, mas não podemos comparar Finlândia e Suécia com o Brasil. Primeiro pela própria quantidade de nascimentos, que é menor. E segundo porque a estrutura dos lugares onde se faz isso [Casas de Parto ou domicílios] é muito melhor, tem o fator da proximidade do hospital. Imagina sair com uma urgência aqui da Casa de Parto em Realengo até o hospital de referência, quanto tempo demora? [São sete quilômetros, percorridos em poucos minutos pela ambulância, que fica de prontidão 24 horas por dia]. No Brasil tem engarrafamento. Como é o trânsito na Suécia?”, questiona.

No entanto, questionada sobre a existência de pesquisas ou artigos que comprovem a maior segurança do parto hospitalar em relação àqueles realizados em Casas de Parto ou em domicílio, ela vacila. “Eu não teria isso para te fornecer, não teria”, diz, informando que também não saberia indicar outra pessoa que pudesse fornecer esses dados.

Centros de parto normal

Devido a esse tipo de conflito, as Casas de Parto de base comunitária – totalmente fora do ambiente hospitalar, como a de Realengo e a de Sapopemba – não foram para frente. No entanto, para Esther Vilela, é fundamental que o sistema deixe de ser centrado nos hospitais. “O hospital é um ambiente gerador de estresse, o que comprovadamente atrapalha o trabalho de parto. Por isso, o MS propõe que se adequem os ambientes intra-hospitalares e que se criem ambientes mais acolhedores bem ao lado das maternidades. São os Centros de Parto Normal (CPN), que podem ficar a até 200 metros do hospital e são conduzidos por EOs ou obstetrizes, com a retaguarda da equipe médica da maternidade”, explica. Nesse caso, o pré-natal é realizado nas unidades básicas de saúde. A assessoria de comunicação do MS informou que, até o fim deste ano, o Ministério pretende implantar 280 CPN em todo o país – porém, não soube dizer quantos Centros e quantas Casas de Parto existem hoje.

Um bom exemplo de unidade já em funcionamento é a do hospital Sofia Feldman, em Belo Horizonte, uma das maiores referências para parto humanizado no país. Segundo João Batista Lima, diretor clínico da instituição, o CPN realiza cerca de 70 partos por mês e nenhuma intervenção médica é feita rotineiramente.Marcelo Casal / Agência Brasil

Maternidades humanizadas

Alguns municípios já têm maternidades alinhadas com os princípios da humanização. Além do Sofia Feldman, há outras experiências em curso, como um projeto experimental realizado em Campina Grande, Paraíba. Lá, na Maternidade Instituto de Saúde Elpídio de Almeida (Isea), Melania Amorim coordena desde 2007 um projeto de humanização de assistência ao parto. O Isea em si opera sob a ótica intervencionista – para se ter uma ideia, a taxa de cesarianas é de cerca de 65%. Porém, o projeto coordenado por Melania tem taxas como menos de 10% de cesáreas, uso de analgesia em apenas cerca de 5% das mulheres e nenhuma episiotomia realizada até hoje; isso com um grau de satisfação das parturientes de 95% e sem fazer distinção entre partos de alto ou baixo risco. Todos os profissionais envolvidos no projeto – residentes de medicina e graduados ou estudantes de medicina, enfermagem, fisioterapia e psicologia – são voluntários e trabalham em plantões semanais. Eles entram em contato com mulheres que já estão em trabalho de parto na maternidade, apresentam o projeto, as propostas e os objetivos, e elas aceitam ou não participar.

No Rio de Janeiro, a grande referência tem sido a Maternidade Maria Amélia (MMA), inaugurada em 2012. “Lá, os resultados no cuidado ao parto são muito próximos daqueles que identificamos nos melhores serviços do mundo, como baixas taxas de cesarianas (menos de 20%), poucas episiotomias (em torno de 8%) e taxas muito pequenas asfixia em recém-nascidos (1,2 a cada mil)”, declara Maria Auxiliadora Gomes, superintendente de Maternidades e Hospitais Pediátricos da Secretaria Municipal de Saúde. Para efeito de comparação, a Revisa Poli procurou duas das mais conhecidas e caras maternidades particulares do país em busca desses mesmos dados – a Perinatal, no Rio, e a São Luiz, em São Paulo. Porém, por meio de suas assessorias de imprensa, as instituições disseram que não disponibilizariam tais informações.

Paula Inara Melo teve seu filho na MMA há menos de dois anos. Embora estivesse sendo acompanhada pela Casa de Parto de Realengo durante o pré-natal, precisou ser transferida durante o trabalho de parto; chegou a ir para a maternidade de referência, onde quase foi encaminhada a uma cesariana desnecessária. Mudou seus planos em pleno trabalho de parto e considera ter sido muito bem atendida na Maria Amélia. “Quando comecei a pesquisar sobre gravidez, não entendia quase nada sobre parto. Na minha cabeça, parto normal era o que aparecia na televisão – eu ia me deitar, alguém ia me cortar e me mandar fazer força”, diz. Ela conta que, pesquisando, descobriu que existiam doulas e, ao mesmo tempo, “todo um universo que era a humanização”.

A partir de então, conheceu a Casa de Parto e grupos de apoio a gestantes em busca de parto normal. “Eu achava que apoio eram essas coisas de ‘rico’. A grávida vai para a aula de yoga com aquelas mulheres todas moradoras da Zona Sul [área nobre do Rio] fazendo exercício bonitinhas e pronto. Eu sou negra, moradora da baixada fluminense, não tenho plano de saúde, sou usuária do SUS. Eu acreditava que essas coisas não eram para mim. Só que, na verdade, apoio é muito mais que isso. E, sim, é para mim também”, afirma. Paula conta que, quando chegou à MMA, logo lhe pediram seu plano de parto – um documento ainda pouco conhecido pelas gestantes, mas importante ferramenta para o exercício do seu protagonismo. Por meio dele, a mulher indica como quer que ocorra o parto, detalhando quais procedimentos deseja, aceita ou refuta. “Quando ouvi o pedido, entendi na hora que ali eu seria respeitada”, lembra Paula, que teve seu bebê após cerca de 30 horas de trabalho de parto.

Pré-natal de qualidade: mais um desafio

Mas ter maternidades alinhadas com a humanização é insuficiente. O modelo intervencionista de assistência está tão consolidado que práticas desnecessárias ou contraindicadas, como a episiotomia e o uso rotineiro do soro (com medicação para acelerar o trabalho de parto), são tidas como normais por boa parte da população. Assim, não é incomum que gestantes atendidas em serviços de excelência se sintam, paradoxalmente, violentadas. Experimente fazer uma busca na internet por opiniões sobre a MMA ou o hospital Sofia Feldman. Há inúmeros relatos de mulheres que se sentiram mal tratadas porque “não aplicaram o soro”, “o médico não quis fazer o corte (episiotomia)”, ou “o trabalho de parto durou mais de dez horas”.

Para Wallace da Silva, diretor técnico da MMA, essa é uma questão complicada na maternidade. “Precisamos, no momento da admissão, fazer com que a gestante entenda os benefícios da nossa linha de trabalho e as evidências que nos apoiam. Mas, para isso, seria necessária uma trajetória longa desde o pré-natal. Se, durante a gravidez, a mulher entende o que é o trabalho de parto, compreende as mudanças que ocorrem no seu corpo, é informada sobre a hora de ir para a maternidade, há grandes chances de tudo dar certo. Caso contrário, ela de fato chega apavorada, normalmente cedo demais e se sente negligenciada quando informam que ela não está em trabalho de parto, por exemplo”, afirma. Carla Polido acredita que uma das alternativas para se trabalhar isso no serviço público seria a formação de grupos de gestantes nas próprias unidades básicas de saúde. “Eles poderiam ser organizados pela própria enfermeira da unidade ou pelo agente comunitário de saúde”, propõe.

Mas a médica vai além: em sua avaliação, hoje o pré-natal no Brasil é de qualidade ruim não só pela falta de informação e acolhimento, mas também tecnicamente. “Ainda há negligência no diagnóstico de determinadas situações, como a sífilis – doença fácil de ser diagnosticada e tratada – e a pré-eclâmpsia – que, junto a síndromes hipertensivas de modo geral, é a maior causa de morte materna no país. Isso é inaceitável”, declara.

Classe média em maternidades públicas

A dificuldade em se conseguir um parto normal por meio de planos de saúde tem feito com que mulheres de classe média, usuárias do sistema suplementar, vejam-se divididas entre duas alternativas: pagar equipes particulares por fora do plano ou buscar opções no SUS. Nas cidades em que já existem Casas de Parto, CPN e maternidades públicas humanizadas, essa escolha tem sido cada vez mais recorrente.

De acordo com João Batista, no Sofia Feldman é bastante comum receber gestantes que têm plano de saúde. No Rio não é diferente. Quando a alemã Lea Nagel se descobriu grávida no Brasil, não tinha ideia de como funcionava nosso sistema. “Comecei a ver que quase todas as minhas conhecidas haviam passado por cesarianas; mesmo as estrangeiras, que eu sabia que nunca optariam por isso”, diz Lea, que levou outro susto ao verificar a estrutura das maternidades particulares que visitou. “Foi um choque. Eu nem sabia o que era um berçário, e todas elas tinham. Nunca entendi por que é que alguém deveria levar meu bebê saudável embora, mas, nessas maternidades, isso faz parte do protocolo e é impossível fugir”, conta. 

Lea acabou escolhendo a MMA e se mostra satisfeita. “Não foi perfeito. A hora da admissão foi ruim e demorada, e, no pós-parto os profissionais entravam na enfermaria para me examinar e não se apresentavam. Mas o parto em si foi ótimo, respeitaram meu plano de parto na íntegra. Mesmo com os problemas, considero que minha assistência foi excelente”, analisa.

Daniella Talarico, que também escolheu a MMA, teve uma trajetória no mínimo dramática antes de optar pela maternidade. Após passar por cinco obstetras do plano de saúde e encontrar um que ‘parecia’ apoiar seu parto, precisou abandoná-lo na última semana de gestação. “Ele foi o verdadeiro obstetra ‘fofinho’: me tratava muito bem e sempre disse que faria o parto normal. Mas, no fim, comecei a ter algumas alterações de pressão e a indicação para a cesariana foi feita, mesmo eu sabendo que não era uma indicação verdadeira. E agendamos uma cesárea ‘de urgência’, num hospital privado, para dali a três semanas! Ainda me pergunto que urgência era essa...”, ironiza. Daniella foi conhecer a MMA no dia exato em que faria a cirurgia; foram realizados procedimentos para induzir o parto normal e, 20 horas depois, ela pariu sua filha. Assim como Lea, Daniella tem suas críticas. “Algumas coisas me incomodaram. Por exemplo, eu engravidei com obesidade mórbida e ouvi comentários de uma enfermeira sobre o fato de eu ser gorda, estar ‘enorme’, o que me magoou. Sei que nem todas as equipes da maternidade são humanizadas. Mas fui bem esclarecida em relação às minhas dúvidas e incertezas e considero ter sido muito respeitada”, conclui.

"Devolver o parto às mulheres"

Na teoria, deveria parecer simples fazer com que o parto fosse encarado como aquilo que de fato é: um evento natural. No entanto, o que tem se observado é justamente o caminho inverso. No livro ‘O renascimento do parto’, o cirurgião e obstetra francês Michel Odent diz que “a história da obstetrícia é fundamentalmente a história da exclusão das mães do seu papel central no processo do nascimento”. Odent é conhecido por, na década de 1960, ter introduzido num hospital público francês uma série de mudanças – como a valorização do papel das parteiras, a quase total eliminação do uso de medicamentos nos partos vaginais e a introdução do conceito de que uma sala de parto deve ser acolhedora, remetendo ao ambiente caseiro. Com esse trabalho, realizado ao longo de mais de 20 anos, conseguiu reduzir drasticamente o uso de procedimentos médicos e cirúrgicos mantendo baixas taxas de mortalidade perinatal. No livro citado acima, ele escreve que “devolver o parto às mulheres não é uma ambição pequena”. Mas sua experiência – e as outras que você leu nesta reportagem – mostram que também não é uma ambição impossível.

Leia mais

No Brasil, o modelo de atenção ao parto é intervencionista, hospitalocêntrico e medicalizado, mas taxas de mortalidade materna e neonatal seguem altas e sem sinais de que irão diminuir. Conheça algumas experiências que dão certo no SUS.