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Pátria vacinada?

Vacinação contra a Covid-19 enfrenta graves obstáculos. Em cenário de escassez mundial de vacinas, fragmentação nacional nas ações gera iniciativas de estados e municípios. Correndo por fora, o setor privado busca entrar no jogo. Conheça as dificuldades, riscos e necessidades da imunização e das ações de combate à pandemia
Leila Salim - EPSJV/Fiocruz | 03/05/2021 14h00 - Atualizado em 01/07/2022 09h42
Foto: Tomaz Silva - Agência Brasil

Comparações podem ser tão injustas quanto inevitáveis. Se feitas sem os métodos apropriados, conduzem a conclusões equivocadas e superficiais. Ao mesmo tempo, podem funcionar como uma provocação inicial para que se investigue mais profundamente alguma questão. Vamos aos fatos: mais de um ano depois de seu início, a pandemia de Covid-19 se desenvolve de maneiras bem diferentes ao redor do mundo. Brasileiros acompanham as notícias e constatam: enquanto, segundo dados da organização Our World in Data, o vizinho Chile já aplicou a primeira dose da vacina em 71,78 pessoas a cada 100; o Reino Unido, em 64,69 a cada 100; e os EUA abriram a oferta de vacinação para toda a população acima dos 16 anos, o Brasil atingiu, em 26 de abril, a tímida marca de 13,96% da população tendo recebido a primeira dose da vacina, ou 29.554.723 pessoas, segundo dados do Consórcio dos Veículos de Imprensa. Se falarmos da população efetivamente vacinada (ou seja, que recebeu as doses prescritas de cada imunizante), no mesmo dia o Brasil passou dos 6% de imunizados, ou 13.127.599 pessoas representando 6,2% da nossa população.

Ainda vacinamos, em diferentes ritmos a depender do município, os chamados grupos prioritários, composto por idosos, indígenas, pessoas com comorbidades, profissionais de saúde, profissionais de educação e outros, estabelecidos pelo Plano Nacional de Operacionalização da Vacina contra a Covid-19, lançado pelo governo federal e que ainda gera desentendimento e discrepâncias no país.

Na medida em que a realidade pressionava e vidas seguiam sendo perdidas, novas alternativas entraram em cena: em 23 de fevereiro, o Supremo Tribunal Federal autorizou estados e municípios a comprarem e fornecerem vacinas contra a Covid-19 à população, quando houver insuficiência de doses ou descumprimento do Plano Nacional de Vacinação pelo governo federal. Duas semanas depois, em 11 de março, entrou em vigor a lei 14.125, aprovada pelo Congresso Nacional e sancionada com vetos por Jair Bolsonaro. Proposta pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), a lei permite que estados, municípios e também a iniciativa privada adquiram vacinas, desde que as doses sejam integralmente doadas ao Sistema Único de Saúde (SUS) enquanto a imunização dos grupos prioritários estiver em curso. Ao fim desta etapa, o setor privado poderá ficar com 50% das vacinas compradas (a outra metade deve ser enviada ao SUS), e aplicá-las, desde que o faça gratuitamente.

Soluções novas para uma conjuntura inédita ou um risco para a garantia da equidade nos serviços de saúde? Celebradas por uns e criticadas por outros, as medidas colocam de forma nova a divisão de responsabilidades em saúde entre os entes federados e a iniciativa privada. Mas quais são os problemas reais que podem explicar a nossa situação e precisam ser enfrentados? De quem são as responsabilidades, dentro do desenho federativo do SUS, e quais medidas têm sido propostas para enfrentar essa conjuntura tão nova quanto premente?

O cenário, segundo especialistas, pesquisadores e agentes públicos ouvidos pela Poli, é complexo e precisa ser entendido em suas múltiplas causas: combina a demora do governo federal para o fechamento de contratos para a compra de vacinas com as empresas farmacêuticas produtoras dos imunizantes com a escassez global na oferta de imunobiológicos, somando ainda um descompasso entre as ações de vigilância e assistência em saúde, diferentes campos que deveriam andar juntos e integradamente. Nesta reportagem, a Poli traça um diagnóstico dos obstáculos atuais à imunização e ações de combate à pandemia, chamando atenção para como a atual disposição de peças nesse complicado tabuleiro afeta a vida de milhões de brasileiros.

Vacina: tem, mas não tem

“Hoje, vemos uma total desorganização do processo de vacinação. Cada município já define um grupo etário, e assim alguns ainda estão vacinando população de 80 anos e outros já chegaram à população de 65 anos. Alguns já vacinaram todos os profissionais de saúde enquanto outros sequer completaram os profissionais de saúde da rede privada. Algumas cidades já anunciam que vão vacinar profissionais de educação e força de segurança, outras não. Isso confunde a população”. O diagnóstico é de Carla Domingues, epidemiologista, doutora em medicina tropical e ex-coordenadora do Programa Nacional de Imunizações (PNI), função que desempenhou entre 2011 e 2019. Lembrando situações anteriores, como surtos de sarampo e outras doenças, Domingues destaca que o SUS tem experiência na coordenação nacional associada à regionalização dos processos de vacinação – o que, segundo ela, teria sido fundamental para organizar o processo de imunização atual.

A pesquisadora não acredita que o problema enfrentado atualmente seja fruto de um erro ou falha de coordenação do PNI, mas sim o resultado de uma política de governo que não foi capaz de antever a gravidade da pandemia, antecipar a compra de imunizantes e, ao mesmo tempo, organizar o processo de vacinação em conjunto com outras medidas de enfrentamento ao vírus. “Em julho de 2020, muitos países entenderam que precisariam assumir riscos e investir em vacinas que ainda estavam na fase 3 de testes, com estudos demonstrando que seriam promissoras. Quem começou a vacinação em dezembro e janeiro foram justamente os países que ousaram e acreditaram que precisariam de vacina”, avalia. “Os países que se aproximavam de um discurso negacionista insistiam que não era tão grave e que a própria doença poderia prover uma imunidade coletiva, o que é uma coisa absurda. Queremos imunidade de rebanho com vacina, com a maioria das pessoas protegidas, e não doentes e indo a óbito”, completa, apostando que essa decisão prévia é uma das principais causas do problema atualmente enfrentado pelo Brasil.

Mas Carla Domingues vai além. Segundo a epidemiologista, além do atraso nos contratos, a organização do Plano Nacional de Operacionalização da Vacina contra a Covid-19 deixou de observar pilares fundamentais do próprio Programa Nacional de Imunizações (mais antigo que o SUS, formalizado em 1976) que miram na garantia da equidade. A pesquisadora defende que, no atual contexto, a regionalização da utilização de vacinas teria sido essencial para a organização do processo. “Segundo o próprio PNI, no Brasil sempre houve uma política de vacinação definida nacionalmente, com os estados e municípios seguindo essa orientação. Hoje, temos duas vacinas sendo utilizadas, com intervalos diferentes entre as doses, o que também confunde o processo de vacinação e joga a responsabilidade para o vacinador que está na ponta do sistema. Se, no começo, não houve regionalização no sentido de distribuir mais doses às regiões mais necessitadas, poderia se pensar, pelo menos, em distribuir para cada região uma das vacinas, uniformizando o processo”, aponta. Uma matéria da ‘Folha de São Paulo’ feita a partir de informações do DataSUS confirma o problema: segundo o jornal, até o início de abril pelo menos 16,5 mil pessoas haviam sido vacinadas erroneamente com uma dose de cada imunizante no país.

Como mostramos na matéria de capa da edição nº 75 da Poli, o Brasil conta com um desenho bem delimitado que divide as responsabilidades do processo de vacinação entre governo federal, estados e municípios. A base desse desenho é a combinação entre verticalização e descentralização. A verticalização corresponde à coordenação nacional, que é uma responsabilidade do Ministério da Saúde. Já a descentralização estabelece as atribuições de estados e municípios. Aos estados, cabe o recebimento e distribuição das vacinas a todos os municípios de seu território, a compra de seringas e a formação dos profissionais que atuarão na aplicação dos imunizantes. Aos municípios, o processo de vacinação propriamente dito, o que inclui a contratação dos profissionais, o armazenamento e conservação dos imunizantes, a distribuição das vacinas para todas as áreas dos municípios e a aplicação das doses, além de toda a parte administrativa e de registros do processo.

É justamente esse desenho do PNI, com responsabilidades baseadas em uma estrutura tripartite, que se perdeu no atual momento, gerando a “desorganização” a que se refere Domingues. Com um agravante: as deficiências na coordenação nacional do processo impactaram, ainda, na separação entre as ações de assistência, imunização e de vigilância em saúde, o que é um complicador no cenário pandêmico. Ela explica exemplificando que, caso essas áreas estivessem atuando de maneira coordenada, teria sido possível concentrar ações de assistência à saúde nas regiões do país mais afetadas pela pandemia e, também, iniciar a vacinação por elas, controlando a disseminação do vírus, monitorando o surgimento de novas variantes e protegendo as populações mais vulneráveis, tudo de maneira integrada. “A vigilância está trabalhando completamente dissociada da área de imunização. E, para se ter um controle de uma pandemia dessa gravidade, é fundamental que possamos ter a vigilância traçando os moldes da vacinação, mostrando onde há maior incidência da doença e indicando uma ação mais agressiva naquela localidade”, explica. E completa: “Lembremos, ainda, que a vacinação sozinha não daria conta do problema. O Brasil precisava ter feito ações de vigilância baseadas em lockdowns nos municípios mais afetados, pensando no fechamento de fronteiras [terrestres e aéreas], rastreando contatos de pessoas infectadas para frear a disseminação do vírus etc. Vários países fizeram isso e conseguiram frear a disseminação das novas variantes, e nós poderíamos ter feito o mesmo. Nós temos inteligência epidemiológica para organizar esse processo”.

Marcelo Camargo - Agência Brasil

Quando a coordenação descoordena: onde e como atuar?

“A verdade é que enfrentamos hoje uma descoordenação. Existe um dos entes que não está participando como deveria das decisões de políticas de saúde, e esse vácuo começou a ser ocupado pelas instâncias subnacionais. Mas isso acontece com conflitos permanentes”. A avaliação é de Ana Luiza Viana, pesquisadora em saúde coletiva e professora aposentada do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP). Segundo a professora, a falta de coordenação se expressa na formulação das políticas de saúde, no financiamento e na pactuação entre os entes federados, representando um “desmonte muito grave”.

Viana destaca, no entanto, que o atual processo requer que se olhe também para o período anterior à pandemia: segundo ela, a aprovação da Emenda Constitucional 95, do chamado ‘teto dos gastos’, foi definitiva para a asfixia dos recursos destinados à saúde pública, o que precisa ser levado em conta na conjuntura de hoje. Ela lembra que esse é o pano de fundo que compromete a garantia da dimensão territorial das políticas, impactando profundamente os serviços de saúde agora, na pandemia. Para a pesquisadora, o “enxugamento drástico dos recursos resultante da EC 95” foi, na prática, uma ‘desresponsabilização’ do nível federal, que passou a contribuir menos com os entes que estão na ponta do processo prestando assistência à saúde e garantindo que ela se concretize territorialmente. “O grande arrecadador, o governo federal, não se dispõe a distribuir esses recursos de forma equânime, de forma justa, para aqueles que prestam assistências, os estados e municípios. Isso é anterior à pandemia”, pontua. E explica: “A dimensão territorial das políticas de saúde não pode ser esquecida. Com a globalização, observamos um desmonte dessa estrutura e a imposição de uma dinâmica multiescalar no mundo, a despeito de fronteiras nacionais. E é essa dinâmica que impõe que a ação estatal precise ter um planejamento locossocial, locorregional e de troca com as esferas subnacionais. O desenho do SUS foi muito aplaudido e reconhecido justamente por essa arquitetura institucional de intensa parceria entre os entes federados. Mas, agora, temos um tipo de federalismo em que a União não tem se responsabilizado e sido copartícipe”, lamenta.

“Na política não existe vazio”, resume Viana. É por isso que, segundo a pesquisadora, a pandemia acabou forçando conjunturalmente estados, municípios e outros atores da política nacional a assumirem ações que não necessariamente seriam desempenhadas por eles. “Vivenciamos, com a pandemia, o caos e a descoordenação. O Supremo teve que se posicionar sobre as relações federativas e afirmar qual o espaço de autonomia de estados e municípios dentro das políticas de saúde. É por isso que os estados acabaram assumindo um papel muito forte, apesar de seu enfraquecimento do ponto de vista tributário e fiscal”, analisa.

“Vivenciamos, com a pandemia, o caos e a descoordenação. O Supremo teve que se posicionar sobre as relações federativas e afirmar qual o espaço de autonomia de estados e municípios dentro das políticas de saúde. É por isso que os estados acabaram assumindo um papel muito forte, apesar de seu enfraquecimento do ponto de vista tributário e fiscal”.

Ana Luiza Viana, pesquisadora em saúde coletiva e professora da USP

Alternativas para vacinação e combate à pandemia

Foi em 23 de fevereiro que o Supremo Tribunal Federal autorizou estados e municípios a comprarem e fornecerem vacinas, em casos em que houvesse insuficiência de doses ou descumprimento do Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação. Duas semanas depois, entrava em vigor a lei 14.125. Passados apenas dois dias, o Consórcio de Governadores do Nordeste formalizava a compra de 37 milhões de doses da vacina russa Sputnik-V, ainda sem autorização da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Em 13 de abril, o ministro do STF Ricardo Lewandowski determinou, em decisão liminar, que caso a Anvisa não apresentasse até o final de abril seu parecer sobre a importação excepcional e temporária da Sputnik-V, o estado do Maranhão estaria autorizado a importar e distribuir o imunizante à população local sob sua inteira responsabilidade. Três dias depois, inspetores da Anvisa viajaram para a Rússia para inspecionar a produção da vacina. Em 26 de abril, a agência negou a importação e uso da Sputnik-V, apontando riscos e incertezas em relação à produção do imunizante. Também impactado por essa decisão, está o Consórcio Brasil Central, formado por sete estados da região Centro-Oeste, que negocia com a Rússia a aquisição de 28 milhões de doses da Sputnik-V. Após a decisão da Anvisa, governadores participantes dos consórcios regionais do Nordeste e Centro-Oeste informaram que pretendem contestar o veto científica e judicialmente, e que aguardarão manifestação do Supremo para avaliar as negociações para aquisição do imunizante.

Enquanto isso, em 22 de abril o Ministério da Saúde anunciou a distribuição de mais 2,8 milhões de doses da vacina de Oxford/AstraZeneca, 700 mil doses de CoronaVac e, ainda, o envio para os estados de 1 milhão de doses do imunizante produzido pela Pfizer/Biontech em maio. A atualização de abril do cronograma de previsão de entrega de vacinas, publicada no dia 24 pelo Ministério da Saúde, trouxe mais uma redução nos números gerais. Em comparação com o calendário anterior, divulgado em março, houve redução de 22,55% do número de vacinas a serem entregues neste primeiro semestre. A nova previsão aponta 159,448 milhões de doses para o período, contra as 205,897 milhões anteriormente divulgadas. Para maio, o número previsto era de 46,9 milhões de doses, mas o novo cronograma indicou o envio de 32,4 milhões.

Perpassando todo esse processo, temos a relação entre o plano nacional de vacinação apresentado pelo governo federal para a pandemia de Covid-19 e o PNI. Isso porque, como você também leu na edição nº 75 da Poli, a aquisição de vacinas por estados e municípios não é exatamente novidade ou medida inédita no Brasil. “Antes de 2003 havia calendários estaduais de vacinação mais amplos que o calendário nacional do PNI, exatamente porque o governo federal, na época, não incorporava todas as vacinas já disponíveis para o SUS. O estado de São Paulo, por exemplo, introduziu a vacina para Hepatite A antes do governo federal”, lembra Alexandre Padilha, deputado federal (PT-SP) que integra a Comissão Externa de Enfrentamento à Covid-19 da Câmara. A questão é que, quando uma vacina entra no PNI, isso implica sua distribuição para todo o país, sob coordenação do Ministério da Saúde. Assim, a inclusão ou não de uma nova vacina contra a Covid-19 no PNI definirá se ela será ou não comprada pelo Ministério da Saúde, distribuída nacionalmente, de maneira equitativa e, em casos de transferência de tecnologia, produzida pelos laboratórios públicos.

A sequência de decisões aceleradas descrita acima nos ajuda a entender o complexo e dinâmico cenário da vacinação no Brasil, que ainda conta com o capítulo das investidas da iniciativa privada (leia mais na pág. 13). Complexo, dinâmico... e indefinido. Segundo os especialistas ouvidos pela Poli, ainda há muita incerteza envolvendo a compra e distribuição de imunizantes, e muita água ainda vai rolar enquanto a pandemia atinge recordes negativos no país. A impressão positiva de Ana Luiza Viana acerca das soluções é compartilhada por Carla Domingues, que destaca ainda que a entrada em cena dos estados pode ser um caminho para a regionalização das ações de combate à pandemia de maneira integrada. “Diante da omissão da União na liderança, acredito que esse pode ser um caminho: os estados se organizarem junto aos municípios para encontrar uma coesão. Desde o início, fui contra a saída de os municípios, sozinhos, tentarem resolver a questão. Isso não é possível, já que estamos falando de um problema nacional e internacional. Ou teremos uma visão do todo ou isso não vai ser resolvido. Os consórcios de estados e municípios podem ser uma saída”, aposta.

Alexandre Padilha também está entre os que acreditam que a participação de estados e municípios é uma alternativa que pode gerar bons frutos. “A postura do governo federal gerou um ambiente que estimulou governos locais a procurarem iniciativas capazes de furar esse bloqueio. Infelizmente, a falta dessa coordenação nacional gerou um conjunto de iniquidades que se aprofundaram. Muitas das respostas positivas que temos hoje são fruto de posturas e reações construídas por governos locais, sejam os governos municipais ou esforços de articulação como o do Consórcio de Governadores do Nordeste”, opina.

Tânia Rego - Agência Brasil

Soluções também trazem riscos

A avaliação, no entanto, não é consensual. O Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems) publicou nota defendendo a aquisição de vacinas de forma centralizada pelo Ministério da Saúde, via PNI. Reconhecendo a gravidade do momento e a urgência de se garantir a vacinação para todos, a entidade chamou atenção para os riscos envolvidos nas ações de aquisição de imunizantes por estados e municípios. “A compra centralizada em maior escala permite obter preços mais favoráveis à administração pública. A aquisição de vacinas por outros entes federativos de forma concorrente com o governo federal promoveria a iniquidade, já que daria acesso apenas para a população dos municípios com maior poder aquisitivo, que são os que teriam condições financeiras e operacionais de adquirir vacinas. Isso causaria ainda intensas migrações e deslocamentos de pessoas para esses locais, em tempos em que estamos orientando medidas sanitárias preventivas como o distanciamento social” diz a nota.

Assessor técnico do Conasems, Alessandro Chagas explica que a primeira preocupação envolvida é justamente a discrepância orçamentária entre estados e municípios, o que conduziria à iniquidade na compra de vacinas. “O município que tem mais recurso vai conseguir adquirir, enquanto aquele que vive do fundo de participação municipal – caso da grande maioria– não vai ter como comprar”, explica. Ele destaca ainda que a defesa do SUS não pode ser flexibilizada diante da conjuntura. “Não é porque alguém não está cumprindo o que tem que fazer que iremos descaracterizar o sistema de saúde. Nós precisamos é que o ente responsável por essa função a exerça, de acordo com o que determina a Constituição”.

O assessor do Conasems chama atenção, ainda, para uma outra questão. Segundo ele, na base da proposta de aquisição de imunizantes por estados e municípios está uma prerrogativa equivocada: a de que o principal problema enfrentado atualmente seria o fato de o governo federal não comprar ou não ter dinheiro para comprar vacinas. “Isso pode ter sido um problema no ano passado, quando o governo teve a oportunidade de investir mais em imunizantes e não o fez. Essas coisas mal conduzidas no ano passado geraram um número menor de vacinas disponíveis neste ano”, reconhece, explicando, no entanto, que agora o gargalo não é mais esse. Diante da escassez mundial na oferta de imunizantes, Chagas acredita que os entes subnacionais sequer conseguirão avançar em sua política. “Os consórcios ou municípios vão comprar vacina de quem? O Butantan tem o compromisso de entregar 100% das vacinas para a União, pelo PNI. A Fiocruz também. Nos contratos até existe a previsão de que o excedente pode ser vendido, mas, historicamente, laboratórios públicos chegam no combinado quanto ao número de doses. Nunca vi alcançarem um excedente para ser vendido”, analisa.

Lembrando ainda que a entrada dos entes subnacionais em negociações com as farmacêuticas pode gerar concorrência e afetar as condições de compra, ele questiona: “Para uma empresa farmacêutica não vender prioritariamente para a União, o governo federal tem que rejeitar a compra – o que é pouco provável. Ainda assim, na hipótese de as farmacêuticas venderem para quem ofertar mais, como vamos explicar aos órgãos de controle que uma empresa não quis vender para a União pelo preço de tabela e um consórcio regional comprou por um preço maior, pagando mais com dinheiro público? Os entes subnacionais só comprarão se a União deixar e, nesse caso, pagando mais caro”, diz.

Também para Ligia Bahia, médica sanitarista e professora--pesquisadora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), as ações isoladas podem agravar a situação: “Temos um enorme processo de fragmentação, de individualização e de falta de projeto. Contra a fragmentação, para a qual estamos sendo empurrados, temos que ter propostas que sejam o contrário: de aglutinação. Precisamos é de um consórcio nacional de vacinas”, analisa. Ela reforça ainda que, hoje, o problema não é falta de dinheiro para aquisição de imunizantes, e por isso os aportes financeiros de estados, municípios e iniciativa privada não resolveriam a questão. “É claro que não falta dinheiro para a União. O Brasil aprovou uma medida provisória de R$ 2 bilhões para comprar vacina pelo governo federal”, diz, referindo-se à MP 1004, de 2020.

Iniciativas locais podem conduzir à integração nacional

Do lado dos que apostam nas iniciativas regionais, no entanto, acredita-se que as ações dos entes subnacionais podem pressionar o governo federal e, também, caminhar no sentido oposto da fragmentação, estimulando a construção de uma coordenação nacional efetiva para o processo. Wellington Dias (PT), governador do Piauí e presidente do Consórcio do Nordeste, lembra que a proposta apresentada pelo grupo de aquisição da vacina Sputnik-V é intermediada pelo Ministério da Saúde, justamente com o objetivo de que o imunizante passe a integrar o PNI e seja distribuído para todos os estados brasileiros. “Na prática, estados e municípios e o setor privado passam a ter o direito de iniciativa de ir atrás de imunizantes, de poder até comprar, mas já na fase do recebimento, a orientação é redistribuir, para que toda vacina que chegar ao Brasil seja entregue na base de armazenagem do Ministério da Saúde”, destaca, lembrando que as negociações e o entendimento com o Fundo Soberano Russo partiram dessa premissa, assim como os diálogos com o setor privado: “Conversamos com o movimento empresarial União por Vacinas e eles tiveram o entendimento da importância de trabalharmos numa mesma linha. Setor público – municípios, estados e governo federal – e setor privado, juntos entendendo que toda vacina será destinada para o Plano Nacional de Imunização”, resume.

É o que também destaca Thiago Campos, subsecretário do Consórcio do Nordeste e diretor regional do Instituto de Direito Sanitário Aplicado (Idisa). Ele explica que a perspectiva de uma integração nacional sempre esteve nas diretrizes do consórcio regional, e exemplifica lembrando que o Nordeste foi palco de estudos para a fase 3 de todas as vacinas testadas em território nacional. “Quando, mais recentemente, o consórcio entabulou diálogo com diversas embaixadas, foi porque avaliou que havia uma falha na coordenação nacional, mas isso também foi feito no esforço de colaboração para tentar somar-se à coordenação nacional na busca por soluções de aquisição de vacina”, pontua.

Flávio Serafini, deputado estadual (PSOL-RJ) que atuou pela aprovação na participação do estado do Rio de Janeiro em iniciativas regionais de aquisição de imunizantes, tem avaliação semelhante: “Através do projeto de lei 3.246 [aprovado pela Assembleia Legislativa e posteriormente vetado pelo governador em exercício do estado, Cláudio Castro (PSC)], tentamos que o Rio fizesse parte dessas iniciativas, porque compreendemos a importância econômica do estado na federação e o fato de que poderia contribuir para que as negociações com os laboratórios internacionais tivessem mais peso. Além disso, caso se conseguisse a compra de vacina diretamente com esses laboratórios, queríamos garantir que isso se baseasse no princípio de manutenção da equidade”, conta. “O que a gente quer não é que o Rio de Janeiro saia na frente, e sim que o Rio de Janeiro não fique para trás e ajude o Brasil a não ficar tão para trás no acesso à vacinação. Creio que o governo federal, depois dessa iniciativa dos governadores e de muita pressão social, começou a dialogar com outros laboratórios e assinou contratos. Mas fez isso com muito atraso”, analisa.

Lembrando que, também para outras frentes de combate à pandemia, é necessária coordenação nacional, Renato Casagrande (PSB), governador do Espírito Santo, reafirma que a participação do estado nas iniciativas subnacionais compreendia o papel da integração das ações. “O lockdown, por exemplo, precisa ser entendido como uma medida extrema, que se faz quando não há mais meios de evitar um colapso no sistema de saúde. E precisa estar associado a outras medidas, com a compreensão da importância de se manter isolamento social, de se usar máscara, de se higienizar adequadamente. Tudo isso precisa ser feito em conjunto. Também para isso, precisamos de uma coordenação nacional, porque se essas ações forem feitas apenas em alguns municípios ou um estado elas não terão sucesso”, aponta, explicando que o fechamento de uma região pode acabar sobrecarregando áreas ou municípios vizinhos caso a ação seja fragmentada. E completa: “Mais do que isso, o elemento central para qualquer sociedade que adotou lockdown é a garantia de condições socioeconômicas para as pessoas suportarem o período de isolamento e de fechamento das suas atividades. No Brasil, temos lidado com o aumento da fome e da miséria, e se não olharmos para isso para promover ações de isolamento ou lockdown, apenas vamos causar mais problemas à população. Também para essas medidas serem eficazes, é necessária uma coordenação nacional”.

Entre os municípios, a Frente Nacional dos Prefeitos (FNP) lidera o Consórcio Nacional de Vacinas das Cidades Brasileiras (Conectar), que hoje conta com a participação de cerca de 2 mil municípios, segundo o website do grupo. Segundo Gilberto Perre, secretário-executivo da FNP, há uma aposta na potência de interlocução internacional de municípios brasileiros para acelerar o processo de imunização da população. Concretamente, o Conectar buscava negociar diretamente com o Fundo Soberano Russo a aquisição de 30 milhões de doses da vacina Sputnik-V e também atuar junto à Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) para alterar os critérios de distribuição das vacinas previstas pelo consórcio internacional Covax Facility, considerando a situação da pandemia no Brasil. “É preciso lembrar que os prefeitos brasileiros têm trânsito internacional. No sentido colaborativo, estamos buscando adensar esforços, como verificar junto aos Estados Unidos a possibilidade de um empréstimo de vacinas. Já houve reuniões no âmbito técnico entre secretários municipais e a equipe técnica do embaixador dos EUA para construir essa agenda”, aponta Perre.  Após a negativa da Anvisa para importação e uso da Sputnik-V, o Conectar informou que intensificaria as negociações com outras farmacêuticas para a compra de vacinas.
Apesar de reafirmar a necessidade de integração da iniciativa ao PNI, documento disponibilizado pelo Conectar aponta que a compra de imunizantes pode ser financiada através de “repasses de verbas federais; doações nacionais e internacionais e, eventualmente recursos dos próprios municípios consorciados”. No último caso, de utilização de dinheiro próprio, não fica claro como a distribuição seria feita – de maneira equitativa ou proporcional ao dinheiro investido. O documento apenas cita que “o tema será definido na Assembleia Geral do Consórcio, em consonância com o Plano Nacional de Imunização, no âmbito do SUS, e de acordo com a legislação em vigor”.

Um Consórcio Nacional

Quanto às iniciativas do governo federal, destaca-se a criação do Comitê de Coordenação Nacional para Enfrentamento da Pandemia. Segundo o decreto que institui o organismo, sua duração será de 90 dias, contados a partir de 25 de março, data de sua criação, podendo ser prorrogada caso se avalie necessário. A intenção, segundo o governo federal, é promover uma instância de discussão entre os poderes da República e estados para a articulação das ações de combate à pandemia. No entanto, governadores e consórcios regionais e municipais não participam do comitê, que é coordenado pelo presidente da República e composto pelos presidentes do Senado e da Câmara, além de uma autoridade designada pelo Conselho Nacional de Justiça, como observadora. Podem ser convidadas para as reuniões representantes de entidades públicas e privadas, assim como especialistas.

Ligia Bahia reforça a necessidade de ampliação e aponta que o momento exige integração, combate à concorrência e formulação de propostas concretas: “Precisamos de um Consórcio Nacional de Vacinas que inclua todas as universidades, laboratórios, a rede de vigilância genômica [responsável pelo monitoramento das mutações e surgimento de novas variantes do vírus] e trate das perspectivas de vacinação. Não é possível que a gente se conforme de ser um elemento fragmentado e entre numa concorrência, que é absurdamente autofágica”, finaliza.

Procurado pela reportagem, o Ministério da Saúde não respondeu à solicitação de entrevista até o fechamento desta edição.

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