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Precarização, participação social e formação dos trabalhadores em saúde em debate

Conferência Livre temática aprovou diretrizes e propostas para serem debatidas na etapa nacional
Juliana Passos - EPSJV/Fiocruz | 13/12/2024 09h37 - Atualizado em 13/12/2024 10h40
Técnicos de saúde são essenciais no acompanhamento domiciliar dos usuários do SUS Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil

Na Atenção Básica, os técnicos são os principais responsáveis por atuar na promoção da saúde, tanto no posto de saúde quanto nas visitas domiciliares. São também esses trabalhadores que estão atentos aos territórios para indicar se há focos de dengue ou outras doenças em terrenos baldios e avaliar a qualidade da água, por exemplo. Nas emergências, são os primeiros a entrar em contato com os pacientes recém-chegados aos hospitais. Em termos quantitativos, dos 3,3 milhões de trabalhadores ativos no Sistema Único de Saúde (SUS), segundo o Cadastro Nacional dos Estabelecimentos de Saúde (CNES), 1,2 milhões são técnicos, superando os 1,1 milhões dos trabalhadores de ensino superior. Mas, apesar de comporem a maior parte da força de trabalho do SUS, muitas das demandas desses trabalhadores são invisibilizadas, eles têm pouco espaço de participação social e mais dificuldades de serem inseridos em programas de formação profissional, seja pela pouca oferta pública dos cursos, seja pela falta de liberação dos serviços. Foi para ajudar a pautar as questões relativas a esses trabalhadores na 4ª Conferência Nacional de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde (CNGTES), que será realizada entre os dias 10 e 13 de dezembro, em Brasília, que a Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV), da Fiocruz, realizou a Conferência Livre ‘Formação e trabalho em saúde: por uma concepção ampliada dos técnicos no Sistema Único de Saúde – SUS’. Trata-se de uma modalidade de participação social que, junto as etapas municipais e estaduais, discute e elabora propostas e elege delegados para a etapa nacional.

Os invisíveis

“A proposta é dar visibilidade aos invisíveis”, diz Geandro Pinheiro, um dos organizadores da Conferência e membro da coordenação colegiada da vice-direção de Gestão da EPSJV/Fiocruz, destacando que as especificidades dos trabalhadores técnicos são pouco debatidas nas conferências nacionais e, quando estão presentes, são inseridas em pautas mais amplas. Uma evidência concreta desse processo é o próprio documento orientador da 4ª CNGTES, que não possui nenhum item específico sobre os técnicos, embora cite a necessidade de formação desses trabalhadores quando trata também de categorias de outros segmentos – para efeito de comparação, vale citar que, em relação à formação, o texto traz, por exemplo, debates e propostas específicas para os níveis de mestrado e doutorado.

Mas o campo da saúde abriga trabalhadores ainda mais invisibilizados: entre os motoristas que conduzem as ambulâncias, copeiros, maqueiros, vigias ou profissionais de manutenção que atuam nas instituições de saúde, existe uma gama de profissionais que, muitas vezes sem ocupação reconhecida nem formação na área, são fundamentais para o bom funcionamento dos serviços. Foi a partir do olhar para esse universo que a EPSJV/Fiocruz propôs um conceito ampliado de técnico em saúde, que englobe “trabalhadoras e trabalhadores que atuam na área da saúde, com escolaridade variada – ensino fundamental, médio e superior – e formação profissional técnica ou superior tecnológica, como também aquelas(es) que atuam sem formação profissional na área, com saberes adquiridos no e pelo trabalho”, como explica o texto da nota conceitual produzida pelo Observatório dos Técnicos em Saúde sobre o tema, em junho de 2024. Os dados numéricos dão uma ideia da diferença que essa concepção ampliada pode promover: de acordo com as informações de agosto de 2024 do CNES, a maioria dos técnicos em atuação no SUS hoje são da área de enfermagem, com mais de 800 mil trabalhadores entre técnicos e auxiliares. Se considerarmos apenas as categorias identificadas como da área de saúde e ambiente no Catálogo Nacional de Cursos Técnicos, em seguida, estão os agentes comunitários de saúde, que somam um total de quase 300 mil profissionais. Já pelo critério ampliado, na sequência dos técnicos de enfermagem, as categorias presentes nos serviços de saúde com o maior número de trabalhadores no SUS são os 387 mil trabalhadores de serviço de manutenção.  No total, os técnicos em conceito ampliado significam dois terços dos trabalhadores do SUS. “Esse conceito busca fortalecer esses trabalhadores enquanto uma categoria autoconsciente e auto-organizada nessa luta por direitos”, defende Ialê Falleiros, professora-pesquisadora da EPSJV/Fiocruz e uma das autoras do documento que propôs essa ampliação.

E foi a partir desse conceito mais inclusivo que se estruturou a Conferência Livre ‘Formação e trabalho em saúde: por uma concepção ampliada dos técnicos no Sistema Único de Saúde – SUS’, que elegeu seis delegadas que agora participarão da etapa nacional com a missão de pautar as necessidades dos trabalhadores técnicos discutidas coletivamente. O encontro produziu um documento final, que propõe uma diretriz para cada um dos três eixos definidos pelo documento orientador da Conferência Nacional. Ao todo, foram aprovadas 12 propostas, das quais elegeram-se nove prioritárias – três para cada diretriz –, que foram encaminhadas para o Conselho Nacional de Saúde, como contribuição para o encontro que acontecerá em Brasília. No primeiro eixo, foram aprovadas proposições relacionadas ao estímulo à participação dos técnicos nos espaços de controle social. O segundo trata das condições dignas de trabalho e defende a Carreira Única no SUS, jornada de trabalho de 30h e condições dignas de trabalho que levem em conta questões de gênero, étnico-raciais e de vulnerabilidade social. Em relação ao terceiro, o foco é o fortalecimento da educação profissional e da educação permanente para os trabalhadores técnicos diante do diagnóstico da necessidade de maior financiamento das instituições públicas.

Eleitas na Conferência Livre como delegadas para a etapa nacional, Simone Quintella, assistente administrativa do Centro da Saúde do Trabalhador (CST) da Fiocruz e Solange Belchior, presidente da Associação Brasileira de Enfermagem (Aben), lembram que, para fazer valer as decisões tomadas nas conferências, é preciso amplificar e divulgar os documentos, principalmente entre sindicatos e entidades que não estiveram presentes, mas têm interesse que as decisões sejam colocadas em prática.


Controle Social

Para alcançar uma maior presença dos técnicos nos espaços de controle social, os integrantes da Conferência Livre aprovaram uma diretriz que trata da “defesa, garantia e valorização da participação e representação” desses profissionais em conselhos de saúde, comitês gestores e fóruns e mesas de negociação.
A presidente da Aben, que representa tanto os profissionais de ensino superior quanto técnicos, Solange Belchior, atribui a baixa participação dos técnicos às jornadas extenuantes e à descrença em coletivos e entidades sindicais. “Esses trabalhadores, em grande parte possuem dois vínculos de trabalho e não têm como prática atuação sindical, sequer se filiam ao sindicato. E, dificilmente, não estando em coletivo, o cidadão sozinho entra no espaço do controle social. Porque são espaços representativos”, reflete a delegada eleita no segmento de usuários e movimentos sociais.

Simone Quintella, assistente administrativa no CST da Fiocruz, entende que a defesa da participação dos técnicos nos espaços de controle social é importante para validar uma vontade que já existe, mas esbarra na dificuldade de esses trabalhadores conseguirem liberação no trabalho. “A aprovação da primeira diretriz do documento pode ajudar essa participação a sair do papel e ir realmente para a realidade”, avalia Quintella, que também é conselheira de saúde no Conselho Gestor Intersetorial de Manguinhos, zona norte do Rio de Janeiro.

Entre as propostas aprovadas na Conferência para que essa diretriz seja implementada, está “assegurar estratégias de formação e informação” para o fortalecimento dos conselhos e conferências de saúde, uma ação que deve ser acompanhada da “transparência dos processos decisórios para a garantia da democracia”. Um passo concreto nessa direção, citado por Geandro Pinheiro, é a ampliação do percentual de técnicos nas formações relativas à participação social oferecidas pelo CNS por meio da Comissão Intersetorial de Educação Permanente para o Controle Social no SUS (CIEPCSS). “O CNS já possui essa preocupação, mas precisa ser ampliada”, diz. Essa formação também precisa ser fortalecida nas próprias instituições de ensino. De acordo com o texto aprovado, é preciso dar destaque aos conteúdos relacionados ao tema da participação social nos currículos das escolas técnicas e de educação profissional e demais instituições públicas para promover “formação crítica e política, educação permanente e popular, e mobilização das(os) trabalhadoras(es) técnicas(os) para a atuação nas diversas instâncias do SUS”. Por fim, também foi aprovada a adoção da proporcionalidade entre profissionais de ensino superior e técnicos nos conselhos gestores das unidades de saúde.

Larissa Guedes - EPSJV/Fiocruz


Precarização do trabalho

Relacionada ao eixo dois da etapa nacional, a diretriz aprovada na Conferência Livre enfatiza o reconhecimento da formação e atuação dos técnicos para que se avance no sentido de “relações de trabalho sustentadas pela negociação coletiva”. Entre as propostas priorizadas para que essas condições dignas de trabalho sejam alcançadas está a contratação exclusiva por concurso público, a construção de uma carreira única e a jornada máxima de 30 horas semanais sem redução de salário para todos os trabalhadores da saúde.

O texto para este eixo tem como proposta que a contratação dos trabalhadores da saúde se dê exclusivamente por Regime Jurídico Único (RJU) ou Emprego Público – quando o vínculo é CLT, mas diretamente com o poder público. O objetivo é superar “as formas de terceirização e privatização no SUS que geram insegurança, instabilidade, alta rotatividade, visando assegurar as condições de exercício do trabalho digno”. “O horizonte, ainda que exista um período de transição, é de que os trabalhadores do SUS sejam todos concursados”, vislumbra Pinheiro, argumentando a importância dessa mudança para conferir maior garantia de direitos aos trabalhadores e a de continuidade do trabalho realizado.

Em relação à necessidade de concurso, os participantes da Conferência chamaram a atenção para a quase ausência de vagas para cargos técnicos, embora a demanda exista. Uma amostra disso é a relação de candidato por vaga existente no Concurso Nacional Unificado, também conhecido como ‘Enem’ dos Concursos. Com apenas um bloco destinado a cargos de nível médio – em várias áreas e não apenas na saúde –, o Bloco 8 tinha a maior concorrência, com mais de mil candidatos por vaga, o que era o caso do perfil de ‘Técnico de Laboratório’, solicitado pelo Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa) que contemplava quem tinha formação em cursos técnicos como de Biotecnologia, Análises Clínicas e Farmácia. A concorrência mais elevada entre os blocos de nível superior estava no 4, com uma média de 340 candidatos por vaga.

A contratação direta pelos três entes federativos também está relacionada com a proposta de criação de uma Carreira Única com carga horária de 30 horas semanais para todos os trabalhadores da área. O termo ‘Única’ nesse modelo está relacionado à forma de financiamento e distribuição de responsabilidades de todos os entes federativos (município, estado e União), que nesse caso passam a operar pelas mesmas regras, apesar da proporcionalidade do investimento de recursos. O texto final da Conferência Livre também propõe que a proposta “contemple a concepção ampliada de trabalhadoras(es) técnicas(os) assegurando mecanismos legais de qualificação, mobilização, representação, negociação permanente”.

Outro ponto priorizado nesta diretriz é a necessidade de levar em conta que as condições dignas de trabalho devem ser consideradas a partir de critérios de gênero, étnico-raciais e de vulnerabilidade social. Nesse sentido, uma das principais questões levantadas foi o grande contingente de mulheres negras entre os trabalhadores técnicos e a maior necessidade de creches para atender às suas necessidades. Para Simone Quintella, ficou evidente que deve ser papel do Sistema Único de Saúde demandar das prefeituras a ampliação do número de creches. “Esse é um problema muito sério porque essas mães precisam de tranquilidade para trabalhar e o SUS precisa dar conta [disso] junto às prefeituras de cada município”, afirma.


Educação Profissional e Educação Permanente

O fortalecimento da Educação Profissional e da Educação Permanente mediante políticas públicas construídas em rede e a valorização das instituições públicas com base nos estudos e pesquisas relacionados à educação, saúde e trabalho está na diretriz aprovada pela Conferência Livre no eixo relativo à Educação. Isso significa maior destinação de recursos para as instituições de educação profissional, tanto as Escolas Técnicas do SUS quanto as Escolas Públicas de Saúde (ESP) e os Institutos Federais. A proposição parte da constatação de que 87% dos trabalhadores técnicos da área de Saúde e Ambiente trabalham no Sistema Único, mas em 80% dos casos são formados por instituições privadas, segundo dados do Observatório dos Técnicos em Saúde.

Com o anúncio da ampliação da Rede Federal de Educação Tecnológica feito pelo governo federal em fevereiro de 2024, a professora-pesquisadora da EPSJV/Fiocruz Ialê Falleiros projeta a possibilidade do aumento de cursos na área de Saúde e Ambiente. Em relação às Escolas Técnicas do SUS, principais responsáveis por atuar com a Educação Permanente, Falleiros, que também foi eleita delegada, explica que há maior necessidade de destinação de recursos para a construção de estruturas próprias para que os trabalhadores tenham um espaço de referência para reflexão do trabalho realizado.

Também nesse eixo, o texto da Conferência Livre propõe aumentar o financiamento especificamente para Escolas Técnicas do SUS, Escolas de Saúde Pública e Rede Federal (Institutos Federais e Escolas Vinculadas) como forma de estruturar uma rede pública de cooperação responsável por “realizar a formação e a qualificação de trabalhadoras e trabalhadores técnicos, assim como, a formação dos docentes, contextualizadas com as necessidades e as diretrizes do SUS”, como diz o documento. E para isso o texto identifica que são necessárias iniciativas como o aumento do número de vagas das formações já existentes e a garantia da liberação do trabalho para essa formação.

Esses são alguns dos desafios enfrentados pela delegada eleita Mariane de Paula Gomes, Coordenadora do Núcleo de Educação Permanente em Resende, no sudoeste fluminense. Ela relata que a maioria das ações conduzidas pela secretaria são demandas vindas do governo do Estado ou do próprio Ministério da Saúde e existe dificuldade de realizar ações pautadas nas necessidades do município. Essas ações muitas vezes estão vinculadas à chegada de uma nova vacina ou às campanhas por cores, como ‘outubro rosa’, em referência ao controle do câncer de mama em mulheres e o ‘novembro azul’, para estimular que os homens cuidem de sua saúde. Para além das campanhas, ela afirma que as formações são oferecidas sob demanda dos trabalhadores, mas ressalta que os técnicos dificilmente apresentam propostas. Os profissionais responsáveis por ministrar essas formações são trabalhadores do próprio município e não há parcerias formais com instituições, apenas convites pontuais.

Em complemento ao aumento de recursos para a ampliação de vagas nas instituições públicas, a Conferência aprovou uma proposta que defende a maior articulação entre Ministério da Educação e Ministério da Saúde para que  os cursos técnicos e tecnólogos aliem a formação geral com a educação profissional em saúde, “com vistas ao aumento da escolaridade e a profissionalização e qualificação dos trabalhadores técnicos, integrando os saberes tácitos e técnicos, científicos, históricos, culturais, éticos e políticos, baseados em teorias críticas, considerando as interseccionalidades presentes na realidade brasileira”. Ialê Falleiros diz que essa articulação passa pela ampliação do Catálogo Nacional dos Cursos Técnicos em que está detalhada a estrutura mínima das instituições de ensino, como biblioteca e laboratório. A avaliação das diretrizes curriculares é outra ação que tem o potencial de interferir na qualidade dos cursos técnicos iniciada este ano pela Comissão Intersetorial de Recursos Humanos e Relação de Trabalho (CIRHRT) vinculada ao Conselho Nacional de Saúde. “Esse é um espaço importante. E com o conjunto de instituições públicas preocupadas com a formação dos técnicos em saúde vamos conseguir construir um currículo que sirva de referência, inclusive para as escolas privadas mudarem a sua forma de trabalhar. O SUS é o grande empregador dessa força de trabalho e os estudantes precisam conhecer o sistema”, diz.

Essa construção coletiva mencionada por Falleiros deve estar amparada em estudos da área, como prevê outra proposta para este eixo, em que se sugere “a criação de uma agenda coletiva de pesquisa sobre formação e o trabalho dos técnicos em saúde, em sua concepção ampliada”, sob corresponsabilidade das ETSUS, Escolas Públicas de Saúde e Rede Federal, aliado ao financiamento da Rede de Observatório de Recursos Humanos em Saúde. Além da formação, esses dados devem subsidiar políticas públicas como um todo para a área e as organizações dos trabalhadores.

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