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Demandas históricas voltam ao foco do debate

Após 18 anos da edição anterior, 4ª CNGTES discute precarização do trabalho e estratégias para promover o trabalho decente
Juliana Passos - EPSJV/Fiocruz | 23/09/2024 11h18 - Atualizado em 23/09/2024 11h18
Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/ABr

A próxima Conferência Nacional de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde, que será realizada entre os dias 10 e 13 de dezembro, .em Brasília, promete aprofundar alguns debates antigos, que nunca saíram da agenda mas foram bastante enfraquecidos nos últimos anos, diante da flexibilização crescente dos direitos trabalhistas e das formas de contrato. Segundo o diagnóstico apresentado pelo documento orientador do encontro – com o qual todos os entrevistados desta reportagem concordam – o Sistema Único de Saúde (SUS) se desenvolve hoje num cenário de “trabalho precário e instável, sem vínculo reconhecido, portanto, inseguro; temporário, com inserção parcial involuntária porque é dependente da demanda; com renda insuficiente ou inexistente e instável, em face à retirada de direitos e de proteção”.

Bruno Almeida, diretor do Degerts, o Departamento de Gestão e Regulação do Trabalho em Saúde, que integra a Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde (SGTES), concorda com o panorama traçado pelo documento da Conferência e aposta na retomada da agenda da área para modificar esse cenário. “A gente não conseguiu ao longo dos anos sistematizar uma Política Nacional de Gestão do Trabalho na Saúde e, mais recentemente, houve uma fragilização dessas pautas”, diz. Em uma das primeiras medidas para colocar o tema em debate, em dezembro de 2023, o Ministério da Saúde lançou o Centro Nacional de Informações do Trabalho em Saúde (Cenits), plataforma que reúne dados sobre a força de trabalho no SUS por categoria profissional. “A plataforma foi lançada diante do entendimento de que há uma grande dificuldade em se ter acesso aos dados relacionados ao trabalho na saúde. Então, no Cenits temos ofertado para os estados painéis da força de trabalho, painéis da segurança e saúde do trabalhador e análises epidemiológicas”, diz o diretor do Degerts/SGTES/MS.

De acordo com dados da SGTES enviados à Poli, 39,3% dos trabalhadores do SUS são funcionários públicos concursados, sendo a maioria estatutários e uma quantidade menor de empregados públicos; 24% são contratados via CLT e 35,5% por vínculos diversos

Vínculo com o SUS

Outra preocupação de Almeida é a análise das diversas modalidades de contratação e vínculo adotadas por estados e municípios. De acordo com dados da SGTES enviados à Poli, 39,3% dos trabalhadores do SUS são funcionários públicos concursados, sendo a maioria estatutários e uma quantidade menor de empregados públicos; 24% são contratados via CLT e 35,5% por vínculos diversos, que incluem contrato temporário ou por tempo determinado, pessoa jurídica, estagiário, residente, cooperado, cargo comissionado e voluntariado. Segundo os mesmos dados, o SUS tem hoje 2,5 milhões de trabalhadores, embora a soma do número absoluto de tipos de pessoas em cada forma de contratação totalize 2,7 milhões, já que muitos desses profissionais têm mais de um vínculo.

Para aqueles que não são servidores públicos, a intermediação do contrato acontece por variadas formas jurídicas, como as Organizações Sociais (OS), Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscips), fundações ou empresas de terceirização. Esses são alguns exemplos das variadas formas de contratação existentes no SUS, que estão sendo mapeadas pela pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP/Fiocruz) Márcia Teixeira, por encomenda do Degerts. O objetivo do departamento, diz Bruno Almeida, é fazer um mergulho nas formas de contratação para estruturar caminhos de regulação e garantir condições de trabalho decente. A pesquisa ainda está em andamento, mas Teixeira adianta que uma forma de vínculo até então pouco usual tem chamado a atenção: o credenciamento.

Essa forma de contratação está prevista na portaria nº 2.567/2016 e no ‘Manual de Orientações para Contratação de Serviços de Saúde’, lançado pelo Ministério da Saúde em 2017. O texto do manual reconhece que a modalidade não está expressamente prevista em lei, mas é aceita pelos tribunais de contas. Como nas outras formas de terceirização, o credenciamento pode ser adotado quando estados e municípios entenderem que há uma demanda por equipamentos de saúde e trabalhadores maior do que a disponibilidade e, para isso, permite a contratação direta de pessoas físicas ou jurídicas, como clínicas médicas e profissionais especialistas em determinadas áreas. A preocupação da pesquisadora é dupla: por ser mais uma forma de vínculo instável e por dificultar a regulação do dinheiro destinado, uma vez que as diretrizes para realizar as contratações são bastante vagas. “As regras trabalhistas vão variar de acordo com cada contrato de gestão porque as legislações são omissas em relação a salários, número de equipes de saúde, não há detalhamento. Os gestores municipais e estaduais deveriam propor regras mais específicas para não permitir reduções salariais de um contrato para outro nas mesmas funções e número de equipes”, defende Teixeira. Esses questionamentos, na verdade, valem para todas as formas de terceirização que prevalecem na Saúde. O principal argumento utilizado por estados e municípios para adotar contratos de terceirização é a necessidade de fugir das penalidades da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), que limita o gasto com a contratação de trabalhadores em 54% da receita corrente líquida do Executivo municipal.

Tomaz Silva / ABr

Carreira em debate

O documento orientador da 4ª CNGTES também destaca a importância de um Plano de Cargos e Carreiras para o SUS. Recentemente, a criação de uma carreira única interfederativa foi aprovada também entre as propostas da 17ª Conferência Nacional de Saúde, realizada em julho de 2023, cujo relatório foi enviado para o Ministério da Saúde como contribuição para a elaboração do Plano Plurianual e para o Plano Nacional de Saúde. A proposição aprovada prevê o “financiamento tripartite, piso salarial nacional para todas as categorias profissionais, com contratação exclusiva por concurso público”. Em artigo de 2017 em que também defende a carreira única interfederativa, o professor da Universidade de São Paulo (USP) Paulo Capel Narvai explica que esse modelo estabelece uma definição nacional de todos os perfis profissionais necessários para o SUS e garante que eles seguirão as mesmas regras de progressão salarial. Para além da estabilidade do sistema e dos trabalhadores, Narvai advoga, no texto, que o modelo irá melhorar a capacidade de atendimento, pois ao se tratar de vínculos que não estão restritos a fronteiras municipais, é possível realizar um planejamento regional “com vistas à constituição de redes regionais de atenção à saúde”. Historicamente, estão em debate também outros modelos de carreiras para o SUS, como a divisão de carreiras por áreas temáticas e uma carreira específica para os médicos, por terem médias salariais mais altas do que os demais profissionais.

Na verdade, os indicativos para estruturação de uma carreira no SUS são recorrentes em todos os documentos das Conferências desde 1986, mas o debate tem avançado pouco. Em relação à 17ª, o encaminhamento dado pelo MS em relação a essa proposição foi a criação da Comissão para Discussão e Elaboração de Proposta de Carreira no Âmbito do Sistema Único de Saúde (CDEPCA/SUS), por meio da Portaria nº 3.100/2024, com o prazo de um ano para a elaboração do texto. A previsão é de que a proposta seja concluída no segundo semestre deste ano, mas o diretor do Degerts, responsável por coordenar esse processo, não confirma que o texto esteja pronto para ser apresentado na Conferência Nacional em dezembro.

Um dos pontos de partida para a elaboração da nova proposta é o Protocolo nº 6, produzido pela Mesa Nacional de Negociação Permanente do SUS em 2006 e que traça orientações das previsões que devem constar em um Plano de Carreira, Cargos e Salários (PCCS) no SUS. De acordo com o documento, o plano precisa garantir a universalidade, de modo que todos os trabalhadores do Sistema sejam contemplados com a proposta, e a “equidade de oportunidades de desenvolvimento profissional em carreiras que associem a evolução funcional a um sistema permanente de qualificação, como forma de melhorar a qualidade da prestação dos serviços de saúde”.

De modo geral, explica Márcia Teixeira, a ampliação de uma carreira de servidores públicos no SUS é uma forma de trazer estabilidade para a vida pessoal dos trabalhadores e qualidade do serviço prestado à população. “A sociedade passa a contar com um corpo de profissionais que possuem um histórico daquela comunidade. Se a rotatividade é alta, você não gera um acúmulo de experiência e não consegue compreender as mudanças do perfil epidemiológico de uma região ou cidade”, ilustra.

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